Erão seis pessoas á mesa de um excellente e variado jantar de familia rica em dia de festa; solido jantar da cozinha portugueza de mistura com os guizados especiaes da cozinha brasileira: succulenta sopa, o monumental cosido de vacca com seus numerosos accessorios, o perú recheiado, o leitão assado, o magnifico presunto, o arroz de forno, as gallinhas assadas e de molho pardo, e, além do mais, o lombo fresco e as costellas de porco, o carneiro assado, o peixe de forno, o negro feijão, e dez pratos ardentes de pimenta, enfeitiçadoras do paladar e do olfato, e de ordinario mais ou menos nocivos á saude.
Para sobremesa doces seccos e de calda, variadissimos, e superiores em numero e perfeição á quanto nesse genero ostentavão e ostentão os banquetes europêos: nos vinhos exclusivismo nacional, os do reino e nenhum outro.Erão seis pessoas em um jantar que chegaria para sessenta: ainda hoje nos dias solemnes, em que se recebem algum, ou alguns amigos de familia se observa essa pratica, especialmente nas casas ricas do interior do Brasil, onde o banquete apenas tocado pelos convivas, passa aos escravos do serviço domestico, e aos pagens dos hospedes.
Erão seis pessoas á jantar, Jeronymo á cabeceira da mesa, à seu lado direito Izidora e depois Antonio e a senhora Ignez; ao seu lado esquerdo Irene, e em seguida Ignez, ou a sinhásinha defronte do padrinho. Esta disposição indicava a exclusão systematica de toda e qualquer contiguidade das filhas, com os hospedes. A regra não se entenderia com Antonio que se sentaria, onde lhe aprouvesse, e mesmo entre as duas meninas, á quem tratava como pai; mas foi observada com rigor explicavel pela presença de Izidora, que devia aprender desde logo as leis, os costumes da casa, que aliás erão geraes na colonia.
Irene e Ignez, os dous lirios, comião pouco, tocavão nos pratos, como passarinhos em fructas ao contrario de Izidora que mostrava o melhor appetite, e mais desoccupadas que os outros á mesa, observavão a bella hospeda á quem não conhecião, nem sabião quem era: se fôra um mancebo, não ousarião levantar para elle os olhos, sendo porém do seu sexo, e moça como ellas, usavão do innocente direito de estudar-lhe as feições, os modos, e os vestidos.
Izidora era uma moça alta, esbelta, porém não bem feita de corpo: tinha o peito demasiadamente largo, e a cintura pouco delicada; mas em compensação sua cabeça era magnifica: seus cabellos castanho-claros finos e crespos perdião-se escondidos eu uma touca de máo gosto: tinha a fronte branca, alta, e espaçosa, os supercilios bastos sem exageração e separados, os olhos grandes, claros, e brilhantes; o nariz de proporcional perfeição, as faces coradas, os labios quasi grossos, levemente curvos, o superior com finissimo e franco buço côr de cinza clara, e ambos formando pequena e graciosa boca ornada de dentes iguaes e lindissimos: a ponta de seu queixo terminava, com suavidade o bello oval do rosto: seu pescoço era mais grosso que fino, e suas mãos brancas, pequenas e bonitas, como devião ser seus pés.
Em seu proceder e em seus modos Izidora dava testemunho de educação domestica desvelada, mas compromettida pelo mais confuso acanhamento de moça apenas chegada da roça; em seu trajar mais infeliz ainda, além da touca severa e funestissima para sua natural belleza, vestia-se com aquella exagerada e sinistra simplicidade que amesquinha as graças, e torna o corpo como um cabide do vestido.
Em uma palavra, Izidora era bella, mas desageitada; brilhante bruto apanhado no leito da corrente do deserto precisava que a moda lapidando-o, fizesse ostentar o seu elevado e natural valor.
Izidora era uma linda roceira com todas as confusões, acanhamento, e rudezas das solidões em que vivera e que na vida da cidade receberia o lavor, que havia de tornal-a esplendida belleza.
Foi este pelo menos o juizo que sem inveja e com espontaneidade innocente e conscienciosa fizerão sobre ella Irene e Ignez.
E' provável que Izidora desejasse tambem e muito apreciar os encantos physicos e não menos os enfeites das duas meninas da cidade; mas a pobre roceira sem duvida por vexame apenas de relance e á furto olhara algumas vezes para ellas: era em verdade moça excessivamente acanhada; tinha os olhos quasi sempre fitos, pregados ou no collo ou no prato, e se lhe fazião alguma pergunta, respondia com discripção, mas com voz tremula e sem olhar para o interlocutor; só em um ponto não sabia acanhar-se; comia como Antonio Pires ou Jeronymo Lirio que erão bons gastronomos; não bebia porém vinho, e unicamente pelo dever de saudar a companhia, fazendo successivamente a saude de cada um dos convivas, como era de uso, tocara com os labios em um calix de vinho.
Jeronymo e a senhora Ignez occupavão-se particularmente; da sua hospeda, porém com um certo constrangimento mal dissimulado, ou com inexplicaveis reservas, que todavia não incommodavão Izidora.
Antonio no intervallo de cada prato entendia com as meninas e atirava ora á uma, ora a outra pequenas bolas de miolo de pão.
O jantar prolongou-se um pouco; porque os dous velhos amigos que desde algum tempo tinhão por companheiro unico a gulosa Izidora, acabarão por deixal-a fóra de combate, e continuárão muito placida e pausadamente a atacar todos os pratos, amenisando o gozo gastronomico com historias e recordações da sua mocidade.
Emfim resolverão-se os dous velhos á passar á sobremesa, e Jeronymo, vendo retirarem os pratos do jantar, voltou-se para a mulher, e disse:
— Ah, Ignez! eu já não sei comer, como d’antes!
— É a velhice que até do appetite nos vai privando; observou Antonio.
E carregarão ambos sobre as duas columnas de compoteiras e pratos de doces que se enfileirarão na mesa; mas nesse ataque Izidora fez-lhes boa companhia até o fim.
Jeronymo deu o signal do termo do jantar: levantárão-se todos e em pó renderão graças á Deos e persignarão-se.
Immediatamente depois Jeronymo e Antonio forão dormir a sésta, e Izidora retirou-se para o seu gabinete.
Dormir a sésta era costume portuguez muito mais generalisado no clima ardente do Brasil; mas Jeronymo e Antonio não abusavão da sésta, e a limitavão á uma hora de descanso.
O primeiro que se levantou do leito foi Jeronymo, que indo á porta do quarto onde dormia o amigo, gritou-lhe:
— Acorda, velho preguiçoso! vem jogar o gamão.
Antonio acudio ao chamado.
— Deixar-nos-hão jogar? perguntou.
— Estás maniaco, Antonio?...
— E' a quarta ou quinta vez que hoje inutilmente tomamos o taboleiro.
E dessa vez nem chegarão á tomal-o ; porque ouvirão o tinir da espada de um soldado de cavallaria que subia a escada de pedra do terraço.
— Então? disse Antonio.
Jeronymo não respondeu e chegou á porta, onde recebeu da mão do soldado uma carta com caracter official.
A carta estava assignada por Alexandre Cardoso de Menezes com a designação de—ajudante official da sala do senhor Vice-Rei e dizia assim:
« Senhor Jeronymo Lirio: hoje depois do conhecimento dos insolentes, criminosos e publicos desacatos e injurias á pessoa e autoridade do senhor Vice-Rei, fixarão-se editaes, prohibindo absolutamente o jogo do entrudo sob penas que se marcarão; mas agora mesmo o senhor Vice-Rei acaba de saber com dolorosa sorpreza e vivo e justo resentimento que em vossa casa da Gambôa se ostentou escandaloso jogo de entrudo com offensa de suas terminantes ordens, e audaciosa provocação aos castigos impostos á semelhante crime de formal e manifesta desobediencia: ordenava a justiça severa que fosseis immediatamente preso e sujeito á duro castigo, como todos quantos em vossa casa concorrerão coniventemente naquelle crime; lembrando-se porém dos serviços que haveis prestado, ordena-vos o senhor Vice-Rei que amanhã ao meio dia compareçais na minha sala para dar-me explicações do vosso procedimento revoltado e de pessimo exemplo, afim de que ouvidas vossas desculpas, se as tendes, delibere depois o senhor Vice-Rei sobre a vossa muito grave responsabilidade do crime de semelhante desobediencia nas circumstancias melindrosas em que se acha a capital da colonia. »
Seguia-se a data e a assignatura. Mas dentro da carta e em uma tira de papel de marca differente lião-se em letra disfarçada as seguintes palavras.
«O official da sala obedeceu; porém o amigo que hoje não pôde conseguir mais, assevera que amanhã conseguirá tudo: venha sem falta fallar-lhe amanhã ao meio dia; pois que é isso formalidade indispensavel: o amigo lhe garante plena segurança e á todos os seus.»
Rubro e tremulo de colera Jeronymo, contendo-se por dignidade propria, disse ao soldado.
— Está entregue: beba um copo de vinho e retire-se.
Á ordem de seu senhor um escravo trouxe um grande copo de vinho do Porto ao soldado que o bebeu todo, e voltou para cidade á galope do seu cavallo.
— Que é isso, Jeronymo? perguntou Antonio.
— Toma e lê.
Em quanto Antonio lia, Jeronymo reflectia.
— Jeronymo; disse Antonio, entregando ao amigo a carta e o bilhete; isto é um attentado incrivel! os sacrarios de nossas casas não são tascas sujeitas á fiscalisação immoral de sacrilegos: as tuas e as minhas pistolas não bastão: quando a autoridade ataca as casas, é direito e dever de todos defendel-as com trabucos.
Jeronymo rio-se com um rir horrivel.
— Que rir é esse?
— Olha, Antonio; eu nunca fui citado em minha vida, e isto é citação, á que só faltou a vergonha do meirinho á porta!....
— É assim!
— Eu nunca fui injuriado por alguem, e nesta carta ha insultos, ha injurias que eu não hei de perdoar.
— Nem eu.
— Ha até ameaça de perseguição á minha mulher, á minhas filhas, e á ti!....
Antonio quiz fallar, e rugio, gaguejando uma praga.
— E ainda ha insulto maior, do que todos os que contem esta carta infernal.... ha este bilhete, e neste bilhete a extrema affronta.... ha nelle a intenção de seduzir o pai para em seguida e por conta da gratidão seduzir a filha!....
— Dá-me outra vez o bilhete.
Jeronymo entregou-o a Antonio, que o leu de novo, e disse com voz rouca:
— Tens razão; ha.
— Pois bem: quero vingar-me.
— Conta comigo.
— Sim; mas por ora te conservarás de parte.
— Não.
— Eu o exijo.
— Conforme: que vás fazer?....
— Obedecer.
— Jeronymo!
— Farei o que devo: o Vice-Rei me ordena, que me apresente á dar-lhe contas de mim, irei; mas dormir com a suspeita de um crime me é impossivel: amanhã ao meio dia é muito tarde para a minha honra: hei de ir hoje, hei de ir já: não quero desculpar-me ao official da sala, quero queixar-me do Vice-Rei ao Vice-Rei.
— E eu?
— Ficarás aqui, velando por minha familia: se eu não voltar, é que me mandarão pôr á ferros: porque vou fallar portuguez claro, portuguez do bom tempo dos nossos avós, portuguez leal, nobre e sem medo.
— E se não voltares?
— Procederás, como te aconselhar a honra e a amizade combinadas com a prudencia.
— Vai, Jeronymo.
— Antonio, tu não deixarás minha mulher e minhas filhas!...
— Vae; eu ficarei aqui; mas se te puzerem á ferros, o que é possivel, tambem tenho o meu plano.
— Qual é?
— Custe o dinheiro que custar, tua mulher e tuas filhas terão asylo seguro no convento d’Ajuda.
— E tu?...
— Depois de havel-as posto em segurança, farei com que me ponhão tambem á ferros.
— Antonio!
— Vai Jeronymo.
Esses dous homens se conhecião: cada qual mais honrado e mais teimoso, sabião ambos que era inutil toda disputa para mudar a resolução tomada por um delles: entendião-se bem: erão amigos desde o tempo da pobreza; tinhão-se relacionado sobre o mar, vindo ambos para o Brasil no mesmo barco, em cuja tolda havião dormido juntos ao relento; tinhão jurado amizade e protecção um ao outro, e com o trabalho e a economia enriquecido quasi ao mesmo tempo e em firme e constante estima reciproca. Erão amigos como dous irmãos amigos; as filhas de Jeronymo podião contar com um segundo pai em Antonio, e tanto mais que este sempre decidido e pertinaz celibatario por exagerado espirito de perfeita independencia individual, não tinha familia que lhe occupasse o coração.
Jeronymo tinha chamado um escravo e mandado sellar um cavallo para si e apromptar dous pagens, e tendo combinado com Antonio uma explicação que servisse para poupar cuidadosa mulher e as filhas que bem poderião alvoroçar-se, sabendo o verdadeiro motivo da sua ida á cidade, despedio-se da familia, e partio ás sete horas da noite.
A senhora Ignez não se illudio; mas conteve-se por amor das filhas: não dirigio pergunta alguma á Antonio; tomando porém por pretexto a possibilidade de encontros sinistros á noite no caminho da Gamboa, abrio o oratorio, fez acender as velas e ás nove horas da noite foi rezar com Irene e Ignez, sendo nesse piedoso acto acompanhada pelo velho compadre.
As duas meninas repetião as orações dictadas por sua mãe, e embora o fizessem com a maior attenção e fé, sentião-se como que receiosas de algum mal imminente; porque para ellas era extraordinaria aquella oração á horas, em que de costume já se achavão recolhidas.
Ficou dito que o gabinete, onde estava o oratorio, era contiguo ao que fôra destinado á Izidora, a qual, ouvindo a oração da familia hospitaleira, foi de manso e sem que a percebessem, ajolhear-se tambem mas um pouco afastada das tres senhoras e de Antonio, e rezou em voz baixa e sumida.
No meio da ladainha de Nossa Senhora a fadiga e a commoção tolherão a voz á senhora Ignez que a entoava; houve uma pausa de cruel anciedade para esta que se empenhava em occultar sua afflicção; logo porém uma voz de suavissimo e firme contralto se desprendeu, continuando á entoar a ladainha, e terminada esta, proseguio, dirigindo as orações.
— Rezemos um — credo —, disse emfim Izidora, pela vida, segurança e felicidade do chefe desta familia!
E rezou o credo em latim, pronunciando-o, como se fôra um padre.
Quando acabava o credo, chegou Jeronymo de volta da cidade e de joelhos como a mulher, as filhas e os hospedes, rendeu graças á Deos.
Apagadas as luzes e fechado o oratorio, a senhora Ignez foi apertar a mão do marido, e logo depois, procurando com os olhos Izidora, não a encontrou mais: dirigio-se então á porta do gabinete contiguo, e sem entrar disse em voz bastante alta para ser ouvida:
— Deos te abençoe!
— Que é? perguntou Jeronymo.
— Um soccorro opportuno e um credo que me ficárão no coração.
Irene e Ignez receberão a benção do pai e de Antonio e se retirarão seguidas pela zelosa mãe e nobre esposa que se tranquillisára, observando a serenidade e quasi a satisfação no rosto do marido.
Os dous velhos amigos ficárão sós, e velárão, conversando, até depois da meia noite.