XVIII

Os dous lirios penderão suavemente para as caixas de laranginhas que acabavão de abrir.

Brilhavão nos olhos a flamma, e nos labios o sorriso da alegria de Irene e Ignez.

Erão limões de cheiro brancos, verdes, rubros, amarellos, de todas as cores e nuanças possiveis......

— Tão bonitas: diz Irene; que faremos delles?....

Ignez fez um momo e respondeu:

— Tu me molharás e eu te molharei...... eis ahi tudo.

A nobre mãe das duas meninas tinha parado junto dellas e as contemplava e ouvia risonha.

Irene tornou:

— Se pudessemos molhar mais alguem........

— Nhanhã; disse Ignez; meu padrinho me deu licença para molhar a todos...... e, se não fosse meu pae, eu era capaz.....

— De que?...

— De molhar, de quebrar limões em meu padrinho que deu licença para isso.....

A senhora Ignez não se pôde vencer, rio-se da idéa da filha e de modo que as meninas se voltarão para ella.

— Mamãe ouvio?

— Ouvi, sim.

— E que diz?

— Vão molhar o compadre: cada uma leve dous limões, cheguem-se a elle sem mostrar os limões, e não tenhão medo.

— E meu pae?... perguntou Irene, em quanto Ignez se armava não com dous, mas com quatro limões em suas mãos pequeninas.

— Eu me acharei perto de vosso pae para dizer que vos dei licença para o que ides fazer.

As duas meninas animadas pela mãe, palpitantes de emoção, dirigirão-se á sala, escondendo, como puderão, os limões de cheiro que levavão, e se aproximarão de Antonio.

Era exactamente no momento em que, armadas as pedras, os dous amigos lançavão os dados.

— Vou dar-te um gamão cantado! exclamára o padrinho de Ignez.

Mas de subito soltou um grito: as meninas tinhão-lhe quebrado os limões de cheiro no peito.

Em vez de ralhar Jeronymo desatou á rir.

— Ah, bregeirinhas! exclamou Antonio, levantando-se e largando o taboleiro do gamão nos joelhos do parceiro.

E correndo á um moringue d'agua, que vira sobre a mesa, tomou-o, mas em vez de vingar-se das meninas, foi despeja-lo na cabeça de Jeronymo que ainda se ria.

Jeronymo deixou cahir o taboleiro do gamão, e lançando-se para o interior da casa, voltou com um prato d'agua que atirou sobre Antonio.

As meninas tornarão com outros limões e tambem a senhora Ignez que os quebrou no marido e no compadre: vendedores de limões de cheiro da casa onde os portadores de Irene e Ignez os tinhão ido comprar, prevendo o costumado fervor que succedia sempre ao começo do jogo, apparecerão no terreiro, trazendo taboleiros disfarçados em caixas fechadas; Antonio e Jeronymo comprarão todos estes, e a luta se tornou mais vigorosa e animada com a abundancia e igualdade das armas, embora houvesse desproporção entre os combatentes batentes; porque toda a familia Lirio acabava de fazer coalisão contra Antonio.

De repente e ao grande ruido que se fazia appareceu correndo agitada e temerosa a mulher de mantilha, já porém sem mantilha, e deixando ver em si uma bella moça vestida com simplicidade.

A chegada imprevista da joven fez hesitar por instante os combatentes: as duas meninas ficarão surprehendidas; Jeronymo contrariado; mas a senhora Ignez pronunciava-lhe breves palavras ao ouvido, quando tambem Antonio exclamava á bella moça:

— São quatro contra um! venha em meu soccorro, menina!...

A moça confusa e tremula não ousava avançar um passo; Jeronymo porém que ouvira bom conselho, provocou-a, arrojando-lhe limões, no que foi imitado pela mulher e pelas filhas: então ella risonha, e com vivacidade prompta, voou para o lado de Antonio, e tomou parte na acção, excedendo á todos na viveza do ataque, e na certeza das pontarias.

No fim de uma hora de amigas provocações, risadas, gritos, e alegria que novos taboleiros de limões, acudindo á mina explorada, alimentarão, o combate cessou por falta de munições e pela fadiga dos combatentes, que todos se acharão molhados da cabeça aos pés, assim como estava a sala toda inundada.

Jeronymo atirou-se em uma cadeira, dizendo:

— Eis ahi o que fizerão aquellas duas doudinhas impellidas por um velho creança!

— Cala-te ahi, rabugento! comadre, mande-nos vir aguardente de Paraty; disse Antonio.

— E basta de entrudo, ouvirão? tornou o outro fallando a Irene e Ignez; vão mudar de roupa. Quanto a senhora........ a senhora...... esqueceu-me o seu nome....

A moça respondeu, abaixando os olhos:

— Izidora.

— Peço-lhe perdão, menina Izidora; pois fui o primeiro a desafia-la á este jogo maldito: ande, vá mudar de vestidos e tranquillise-se que ninguem mais se lembrará de entrudo nesta casa.

A senhora Ignez e suas filhas entrarão para o interior da casa: e Izidora recolheu-se ao gabinete que lhe havião destinado.

Cada um dos dous velhos bebeu um calix de aguardente e forão ambos tomar outras roupas, ao mesmo tempo que alguns escravos varrião e enxugavão a sala.

Meia hora depois aquelles bons amigos achavão-se de novo em frente um do outro, rindo-se das innocentes proezas que acabavão de fazer tão contra os seus habitos e disposições, e como um pouco envergonhados ambos, não disserão palavra sobre o entrudo.

— Jeronymo; disse Antonio: estou com vontade de ensaiar uma experiencia....

— Qual ?

— Quizera ver, se ainda haveria hoje pessoa ou facto que nos impedisse jogar o gamão....

— Pois experimentemos.

E, tomando o taboleiro, sentarão-se e armarão as pedras; mas immediatamente a senhora Ignez entrou na sala, e disse:

— Compadre o nosso feijão está na mesa.

E foi á porta do gabinete chamar Izidora.

— Antonio, observou Jeronymo; sopa fria não presta.

— Has de ver, que nem á tarde conseguiremos jogar o gamão, respondeu Antonio, deixando o taboleiro sobre as duas cadeiras.