IL

Quatro ou cinco dias depois do carnaval o conde da Cunha, tendo recebido e lido o mysterioso e anonymo relatorio da semana, passou algumas horas em febril irritação, fazendo gemer as salas do palacio sob seus passos pesados e accelerados.

Os servos, as ordenanças, os proprios empregados que trabalhavão na secretaria, tremião.

— A tempestade ronca: sobre quem cahirá o raio? dizia um.

— O senhor Vice-Rei em idas e voltas tem passeado hoje duas leguas; observava outro.

— E' a medida da sua colera; accrescentava um terceiro.

Mas a tempestade serenava sem que cahisse raio sobre alguem.

O Vice-Rei deixou de passear: a tarde correu tranquilla, e ao anoutecer Germiano foi chamado ao gabinete do conde da Cunha:

Os dous se acharão á sós.

— Escuta; disse o Vice-Rei.

E tomando a carta ou relatorio que recebera das mãos do proprio Germiano, leu-lhe uma pagina, que continha a historia de quanto se passara entre Alexandre Cardoso e Clelio Irias, e do modo porque á este havião sido roubados os tres documentos falsos.

Acabando de ler, o conde da Cunha tornou, dizendo:

— Quero saber, se isto é verdade e precizo simular ignorancia destes factos: é indispensavel interrogar o velho Clelio Irias; eu me atraiçoaria, se o fosse procurar, e só tenho confiança em ti; mas tu és mudo, e Clelio Irias está a morrer: que farás?...

Germiano ficou immovel e reflectindo: no fim de alguns minutos sorrio-se: tinha resolvido o problema.

O mudo dividio uma folha de papel em oito pedaços, correu com o dedo duas linhas do relatorio e com o mesmo dedo fingiu escrever no primeiro dos oito pedaços do papel, e assim foi igualmente fasendo com os outros.

O Vice-Rei comprehendeo Germiano tanto mais facilmente que tinha tido a mesma idea,

— Entendo: copiarei a denuncia que me dão, fazendo perguntas, cada uma das quaes escreverei em papel separado.

O mudo fez signal afirmativo.

O Vice-Rei escreveu muitas perguntas, e cada uma em um oitavo de papel.

Germiano quando vio terminado esse trabalho, e que o Vice-Rei lhe entregava os papeis, apontou com o dedo indicador para este, depois para si, e depois para a rua na direcção da casa do velho Clelio Irias.

O conde da Cunha escreveu em uma folha de papel que Germiano hia por ordem do Vice-Rei interrogar daquelle modo á Clelio Irias, como o intelligente mudo acabava de indicar-lhe, e ajuntou á isso garantia de perdão ao velho uzurario uma vez que elle não procurasse occultar a verdade, e impondo-lhe emfim ordem de absoluto segredo.

Acabando de assignar o que escrevera, o Vice-Rei leo tudo á Germiano, e perguntou-lhe:

— Queres mais alguma couza ?

O mudo fez signal que não.

— Sabes onde mora Clelio Irias?

O mudo sorriu-se.

— Até amanhã á noute dar-me-ás conta desta commissão.

Germiano curvou-se respeitosamente, e retirou-se levando todos papeis escondidos no peito por baixo da farda.

Passadas duas horas baterão á porta do gabinete do Vice-Rei.

— Quem é? perguntou este.

Nenhuma voz respondeo; mas os dedos de alguém arranhavão a porta.

— E' Germiano; disse o conde da Cunha.

E foi abrir a porta.

O mudo fez sua venia ao Vice-Rei, entregou-lhe os papeis que lhe tinhão sido confiados e ficou immovel.

O conde da Cunha examinou os papeis e no fim da maior parte das perguntas, encontrou feita á lápis uma cruz, em duas um risco passado sobre a pergunta em uma absoluta falta de signal.

— Que quer dizer a cruz ?

O mudo fez com a cabeça movimento afirmativo.

— Portanto á estas perguntas, Clelio Irias respondeu que era verdade?

O mudo repetio com a cabeça o movimento afirmativo.

— E o risco passado sobre as palavras destas duas perguntas?

O mudo moveo a cabeça em signal negativo.

— Quer dizer não; muito bem; mas esta pergunta que não traz signal de resposta?....

O mudo moveu ambos os braços em abandono, e tendo as mãos abertas, levou-as um pouco para traz.

— Não entendo; disse o Vice-Rei.

O mudo fechou os olhos, e com as mãos tapou os ouvidos.

— Queres dizer que o homem não vio, nem ouvio, e respondeo que não sabe?

Germiano sorrio-se, indicando sim.

O conde da Cunha bateu com a mão no hombro, do mudo e disse-lhe:

— Aqui como em toda parte desde que te conheço, és a fidelidade intelligente que Deus concedeu para o meu serviço e defesa. Váe dormir, meu velho amigo!

Duas grossas lagrimas correrão pelas faces rugosas de Germiano que beijou a mão do conde da Cunha, e foi dormir, como elle lhe ordenara.

Germiano orgulhoso e ufano lembrou acordado e em sonhos, dormindo, o titulo de meu velho amigo que lhe dispensára o alto senhor conde da Cunha Vice-Rei do Brasil.