LVIII

Durante dous dias, que se passarão depois da noute da serração da velha, a população da cidade do Rio de Janeiro só se occupou de dous assumptos, do attentado contra a famiiia de Jeronymo Lirio, e do encontro de Alexandre Cardoso com o carpinteiro Marcos Fulgencio no saguão do palacio: a audiencia dada pelo Vice-Rei á Emiliana foi geralmente sabida, e os factos commentados e exagerados tomarão proporção romanescas, mas em todas ou em quasi todas as diversas relações o ajudante official da sala era gravemente compromettido.

Assim nas mil historias do acontecimento do caminho da Gamboa a parte que tomara na luta o jovem Izidoro que trajava vestidos femenis, abria espaço á contos de imaginação; corria porem como certo que o attentado tinha por exclusivo fim o rapto da menina Ignez determinado por Alexandre Cardoso: relativamente a filha do carpinteiro, contavão-se diversos romances á começar da noite do incendio, e cujos ultimos capitulos se desenvolvião á custa do casamento do velho uzurario Clelio Irias com a pobre Emiliana e da energica resolução tomada por esta de ir pessoalmente dar queixa ao Vice-Rei contra Alexandre Cardoso: alem de outras invenções, pretendião uns que o conde da Cunha maltratara e despedira com desprezo cruel a pobre moça queixosa; querião outros que o conde se dispunha á castigar severamente o seu ajudante official da sala; mas que tendo na mesma occasião Marcos Fulgencio esbofeteado no saguão do palacio ao offensor de sua filha, o Vice-Rei dera este por sufficientemente castigado, e mandara embora a offendida sem reparação, e o esbofeteador com perfeita impunidade. Havia emfim quem assegurasse, que esta questão se resolvera, ajustando-se o casamento de Alexandre Cardoso com a viuva de Clelio Irias.

O conde da Cunha tinha mandado chamar Jeronymo Lirio, de quem ouvio por miudo quanto lhe acontecera, e o verdadeiro motivo do disfarce de Izidoro; garantindo ao negociante a segurança pessoal desse jovem, ordenou-lhe que o troucesse logo á sua presença.

Izidoro recebeu do Vice-Rei cumprimentos pela sua intrepidez e valor, e passou em seguida por minucioso interrogatorio, sendo até obrigado a declarar quantos golpes de espada suppunha ter acertado, e que pontos dos corpos dos salteadores, com quem se batera, acreditava ter ferido.

Infelizmente faltava um objecto que estivera em poder de Izidoro e que talvez pudesse indiciar os criminosos: a espada que o jovem arrancára das mãos de um delles, e com que combatera, tinha desapparecido, ficando esquecida no lugar do attentado.

Alem destas averiguações feitas pelo Vice-Rei, o ajudante official da sala mostrava-se muito empenhado na descoberta dos salteadores, e o juiz competente abrira devassa.

Os dias porem ião correndo, Alexandre Cardoso continuava a ser ajudante official da sala, ostentando mais influencia e poder do que nunca, e nem Emiliana, nem Jeronymo, nem a moralidade publica recebião satisfação alguma.

O povo murmurava por toda parte, não era mais Alexandre Cardoso, era o conde da Cunha o mais detestado e recriminado. Dizia-se que tinhão sido mandadas para Lisboa as mais graves queixas contra o Vice-Rei.

Antonio Peres chegava a comprometter-se, manifestando publicamente e com imprudente vehemencia as mais acres censuras contra o governo do conde da Cunha.

Os pasquins injuriosos repetião-se, apparecendo quasi todas as manhãs nas paredes das casas, ou largados pelas ruas.

Dir-se-hia que se conspirava uma revolta.

Mais ainda: as senhoras começavão á pronunciar-se: em todas as casas, nos encontros cazuaes, nas vesitas as mães de familia, como as donzellas maldizião do Vice-Rei que as não protegia contra Alexandre Cardoso e seus socios tornados ameaças vivas e impunes que trazião em risco a innocencia e a honra das mais recatadas.

Aggravava este justo sobresalto do sexo mimoso e fraco, o desgosto proveniente das providencias severas, mas bem aconselhadas que tomara o bispo prohibindo certas solemnidades religiosas á noute, a conversação com as senhoras, e a corte feita á ellas ás portas e nos atrios das egrejas, e alguns costumes ridiculos que se misturavão com as ceremonias das procissões, e só servião para profano divertimento.

Além dessas medidas que diminuião as occasiões de colheitas de tributos de adoração para as senhoras, revoltavão-se estas contra as instituiçóes de cazas de recolhimento forçado para muitas esposas e filhas, verdadeiros carceres em que a vontade dos pais e dos maridos tinhão recurso seguro, que servia á sua prepotencia.

Realmente a época não era lisongeira para o bello sexo que desde alguns annos resentido e desgostoso, aproveitava então o sentimento geral de reprovação do governo do conde da Cunha, e tomava parte consideravel na opposição de murmurações e de acerbas censuras.

E não se tenha em pouco essa opposição feminil pode muito a diaria e insistente pregação da mãe, da esposa, das filhas e das irmãs que fallão livremente em casa, e que sabem convencer agradando, ameigando ou chorando; e podião muito as senhoras, que, arriscando-se menos que os homens ás perseguições da autoridade, cantavão ao cravo, ou á guitarra e á viola os lundús e as cantigas com ailusões epigrammaticas ao conde da Cunha, ao seu ajudante official da sala, e aos abussos e escandalos que se observavão.

O que além de tudo isto preoccupava alguns espiritos, e nenhum explicava, era uma notavel modificação nas praticas do governo do conde da Cunha, que sempre suspeitoso e violento esmagava cora prompto castigo e systematica oppressão as mais leves demonstrações de censura ou de reprovação dos seus actos e que então ou por tolerancia, ou por despreso, deixava livre curso ás queixas do povo, não ordenara prisão alguma, e nem ao menos fisera perseguir algum suspeito de fixar ou espalhar os pasquins, em que aliás era elle o mais injuriado.

Mas nem por essa generosidade, o Vice-Rei era poupado; ou ainda por essa ostentação de desprezo do povo murmurador, o povo se mostrava cada dia mais hostil á elle, não lhe perdoando a impunidade de Alexandre Cardoso que aliás se exaltava com a sua confiança, sendo conservado no cargo de ajudante official da sala.

Era esta a situação da capital do Brazil—colonia nos ultimos dias da primeira quinzena do mez de Março, quando o Vice-Rei mandou annunciar solemne parada dos regimentos de linha e auxiliares ou de milicias da cidade para 19 do mesmo mez, ou dia de S. José, santo do nome do rei.

Evidentemente a festa não era feita ao bemaveuturado do eco, e sim ao bemaventurado da terra.

Na manhã seguinte o pasquim disse:

O nosso conde da Cunha
Nem do céo respeita a lei;
No furor da adulação
Furta do santo p'ra o rei.

Tem razão o Vice-Rei;
A consciência o a terra;
Descrê os santos do céo,
Agarra-se ao rei da terra.

O conde da Cunha, se leu ou teve conhecimento deste pasquim, desprezou-o, como desprezara outros.

No meio desse pronunciamento de desgosto geral Jeronymo se conservava silencioso, e esperava: espantava-se da longanimidade do conde da Cunha; mas ainda confiava nelle.

Velando implacavel pela vingança que jurara tomar de Alexandre Cardoso, Maria não se descuidava.

Dous dias depois daquelle em que Emiliana fallara ao Vice-Rei, Maria voltou á casa da rua do Parto, e pedio informações do que se passara na audiencia.

Emiliana deu-lhe conta de tudo, acabando por dizer que o conde da Cunha a ouvira com fingida bondade.

— Fingida porque?

— Porque desde que appareceu-nos Alexandre Cardoso, não me attendeu mais, e despedio-me de modo revoltante.

— Optimo signal; disse Maria.

— Como ?

— O conde da Cunha fingio sómente para com Alexandre Cardoso. Esperamos mais seis dias.

— Mais cinco apenas que completão os oito, que prometti esperar; disse Marcos Fulgencio, levantando-se.

— E depois? perguntou Maria.

— Depois ?... isso fica por minha conta.

— Que farás, pobre Marcos?

— Obra do meu officio, minha nobre senhora; levantarei uma forca... para mim.

Fernanda segurou instinctivamente com força o braço do marido, exclamando:

— Santo nome de Jesus!... nossa senhora te livre de tal!

— Senhor Marcos Fulgencio, disse Maria; d'aqui a cinco dias voltarei; espere-me.