LVII

O conde da Cunha era madrugador, e especialmente no verão preferia trabalhar nas horas frescas que precedem ao intenso calor tropical.

Sentado á meza o Vice-Rei examinava diversos papeis relativos a administração da grande colonia, o muito attentamente o alistamento dos habitantes da capitania, á que mandára proceder, e que da cidade c de algumas villas já tinha chegado sem duvida muito imcompletamente executado: cauzava-lhe estranheza e pena o numero extraordinario de jovens solteiros de ambos os sexos, e maldizia de um facto que embora aproveitasse bastante ao exercito, era evidentemente nocivo á moralidade, e ao progresso da colonia dependente do augmento da população.

Q Vice-Rei meditou por muito tempo sobre o assumpto, e emfim parecendo ler assentado em alguma providencia, passou á ler outros papeis, encrespou a fronte, encontrando as nomeações dos commandantes e officiaes do novo terço propostas por Alexandre Cardoso, e traçando com a pena os nomes dos candidatos, escreveu cm nota— « proponha outros.

Interrompendo o trabalho para almoçar, voltava de novo á elle, quando Germiano lhe appareceu.

O conde da Cunha olhou para o mudo que estendendo o braço, apontou com o dedo para o lado da entrada do palacio, e aproximando-se, entregou-lhe uma folha de papel.

O Vice-Rei leu: « a viuva de Clelio Irias ».

— Clelio Irias! o velho usurario que morreu?

O mudo fez signal afirmativo.

— Faze-a entrar para aqni.

Germiano tinha rcgalias excepcionaes no palacio, e todos respeitavão nello o cão fiel e estimado do Vice-Rei.

D'ahi á pouco Emiliana, trajando pezado luto, entrou conduzida pelo mudo que immediatamente se retirou.

A joven e bella menina eslava commovida e tremula; mas havia no seu rosto alguma couza de energica decisão.

— E' a viuva de Clelio Irias? perguntou o conde.

— Sou, senhor Vice-Rei; e sou tambem a filha do carpinteiro Marcos Fulgencio.

Ouvindo esse nome, o Vice-Rei fez um movimento; mas conteve-se logo, o disse friamente.

— Pode fallar.

— O senhor Vice-Rei mandou reconstruir á sua custa a casa de meu pai devorada por incendio cuja origem até hoje não se explicou; ha porem outra desgraça muito maior, do que fomos victimas nessa noute e que o senhor Vice-Rei não pode reparar.

— E qual é?...

— O ultraje feito á minha honra; disse Emiliana abaixando a voz, e a cabeça.

— Se houve crime, não faltará o castigo; mas onde as provas do crime?

— Senhor Vice-Rei, não venho pedir a exposição publica da minha vergonha para alcançar vingança, aviltando-me aos olhos de todos...

— Então que quer ?

— O senhor Vice-Rei é juiz e é pai do povo que governa. eu não requeiro ao juiz, queixo-me ao pai.

O conde sentio a delicadesa da abservação e reconheceu que lhe fallava uma jovem, que recebera alguma educação.

— Quem foi o seu offensor? perguntou.

— Um homem que se cobre com o nome e com a protecção do senhor Vice-Rei.

— O seu nome ?

— Alexandre Cardoso.

O conde já esperava ouvir esse nome, e por isso não mostrou abalo, nem surpreza.

Conte-me a historia do seu infortunio; disse elle.

Emiliana fez um supremo esforço para dominar o pejo que lhe peava a lingua, e com os olhos no chão começou á fallar.

O Vice-Rei escutava a historia de que sabia metade; havia porem nella um ponto obscuro e duvidoso que desejava esclarecer, era, se Emiliana fora victima da violencia, ou cumplice seduzida, ou especuladora enganada.

Pouco a pouco a innocencia e a verdade de Emiliana forão entrando na alma do Vice-Rei.

Mas em quanto o conde da Cunha ouvia com interesse animador a filha do carpinteiro, uma scena violenta se passava no saguão do palacio.

Alexandre Cardoso chegou; e, ao entrar no saguão, esbarrou com Marcos Fulgencio, que, passeando, esperava Emiliana.

O ajudante official da sala estremeceu, suppondo que o carpinteiro vinha fallar ao Vice-Rei, e dirigio-se á elle com fingida amabilidade:

— Marcos Fulgencio! estimo ver-te: a tua casa estará acabada dentro de quinze dias, e...

Alexandre Cardoso estacou, vendo os traços decompostos do rosto de Marcos.

As naturezas nobres, generosas e rudes não sabem fingir: o carpinteiro olhava Alexandre Cardoso com raiva ameaçadora, e no convulsar dos labios, mostrava-lhe alvejantes os dentes cerrados.

— Que tens, Marcos Fulgencio? que aspecto feroz é esse? perguntou o soberbo official, sorrindo com despreso.

— Siga seu caminho! murmurou rouca e sinistramente o carpinteiro, tendo já a cabeça perdida.

Alexandre Cardoso voltou-lhe as costas, e disse aos soldados da guarda:

— Ponhão fóra daqui esse doudo.

Como se realmente houvesse endoudecido o carpinteiro rugio terrivel, e atirou-se furioso sobre o seu inimigo; mas numerosos braços o agarrarão, e travou-se luta desigual, em que o carpinteiro contra os soldados, um contra vinte, desesperado se debatia.

O ruido chegou aos ouvidos do Vice-Rei que mandou saber o que havia, e Alexandre Cardoso, correndo á informa-lo, recuou, como espavorido, encontrando o conde em companhia de Emiliana.

Simulando não ter percebido o espanto do seu ajudante official da sala, o conde perguntou-lhe:

— Que ha lá em baixo?...

Alexandre Cardoso dominara-se logo, e respondeu, adevinhando e arrostando toda a situação.

— Senhor Vice-Rei, lá em baixo o pai desta moça insultou-me, e ouzou ameaçar-me; cá cm cima esta mulher me calumniava sem duvida.

— Como o sabe?

— No empenho de hostilisar-me odientos inimigos, explorando a perversão de uma aventureira, fizerão della o seu instrumento, e ella e elles convencerão o mais estupido dos pais, de que eu fui o seductor de sua filha...

Emiliana tomada de horror, olhou para o conde da Cunha, e não ouzou fallar.

— Era o que eu estava pensando! exclamou o Vice-Rei: e com intrigas semelhantes me tomão o tempo, e me perturbão o espirito! que destino deu ao pai desta desgraçada?

— Vou manda-lo recolher á cadeia, se o senhor Vice-Rei não ordenar o contrario...

— Estou hoje de bom humor; dormi bem, c almocei almocei melhor: haja perdão! á esta moça basta a sua vergonha, ao pai a sua loucura; faça entregar a filha ao pai, e que ambos nos deixem tranquillos.

O ajudante official da sala curvou-se respeitosamente.

Emiliana profundamente resentida, fez uma simples venia ao Vice-Rei, e sahio abrazada em colera.

Marcos Fulgencio estava subjugado no saguão do palacio; mas em obediencia ás ordens do Vice-Rei, foi solto, e acompanhou Emiliana de volta para casa.

Na rua e ainda em furia o carpinteiro perguntou à filha.

— Diceste tudo ao Vice-Rei?

— Tudo.

— E então ?

— Justiça seja feita contra o Vice-Rei que ó o primeiro criminoso!