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A casa de Antonio Peres era na rua Direita, a principal da cidade: no pavimento terreo linha elle o seu armazem commercial com amplas proporções que se estendião até em frente ao mar: no sobrado preparado com o maior luxo morava elle, como em desmesurada solidão.

Mais rico do que Jeronymo, pois que não tinha mulher nem filhos, expansivo, alegre e obsequiador Antonio Peres cultivava numerosas e excellentes relações na cidade do Rio de Janeiro e naquella noute reunira escolhida sociedade com proposito tam evidente do festejar Jeronymo Lirio que não havia um só convidado, que não fosse tambem negociante ou cavalleiro,que o seu amigo conhecesse, estimasse ou apreciasse.

Antonio Peres estava como adoudado pela alegria que lhe cauzava a presença da familia de Jeronymo: à este dissera:

— Tu és velho caloteiro arrependido, que começas hoje á pagar-me o que me deves.

A' senhora Ignez disse com os olhos humidos de lagrimas de inexprimivel contentamento:

— Comadre, tome o governo da casa; todos aqui e eu na conta somos seus hospedes...

E voltando-se para Irene, e Ignez, exclamou á rir, mostrando Jeronymo:

— Meninas, aquelle velho carrancudo e feio não manda nada nesta casa: vocês hoje são minhas filhas, e toca a brincar!

E dirigindo-se á Izidora:

— Devo-lhe a dita que estou gozando...

— A mim? perguntou Izidora admirada...

— Não o sabe, não o pensa; mas é assim; sou o devedor, porem em vez de pagar-lhe a minha divida, pedir-lhe-ei novos favores... hade cantar-nos os seus lundús...

E voltando-se ainda para Irene e Ignez, gritou-lhes:

— Meninas! corrão por ahi, vão correr-me a casa... se forem capazes, advinhem onde é o meu quarto de dormir, e se o advinharem, entrem, e acharão dentro dous irmãos muitos parecidos que guardei para vocês...

As meninas, tendo consultado os olhos de sua mãi, levantarão-se, correrão para dentro, e em breve tornarão á sala, trasendo cada uma nos braços um pequenino, branco, felpudo e lindo cachorrinho.

Antonio andava ás tantas pela sala.

— Tu deitas-me á perder as meninas: disse-lhe Jeronymo commovido pelo jubilo do amigo.

— Vai ralhar em tua casa, velho enfesado.

— Queres ver e apreciar, o que tens feito?...

— Quero; vamos á isso.

Jeronymo chamou as filhas e ordenou que fossem cantar.

Irene cantou, tremendo, e talvez por isso com maior effeito uma modinha de musica suave e melancolica.

Ignez cantou dous lundús com arrebatadora graça.

Uma e outra merecerão geraes, e sinceros applausos.

— Se foi assim que eu deitei-as á perder, hasde pagar-me o maleficio com juros accumulados; disse Antonio á Jeronymo.

Começarão as danças, depois outras senhoras cantarão, renovou-se a dança, os dous lirios cantarão outra vez, instavão cora Izidora para tambem cantar, quando se annunciou próximo o prestito da serração da velha.

Todas as senhoras correrão para as janellas.

Por acaso... — quem sabe, se por acaso? — Ignez achou-se junto de Izidora, e afastada de sua mãi.

— Porque não quer cantar? perguntou Ignez á Izidora.

— Porque prefiro ouvi-la.

— Mas pode ouvir-me, e deixar-se ouvir.

— Depois que a vi e a ouço, já não sei cantar: preparo-me somente para chorar...

— Porque?

— Porque a amo...

— Mas eu tambem a amo, e muito!...

— Ignez... Sinhá-sinha!...

— Somos duas moças e quasi da mesma idade: que amor mais innocente e puro?... é o unico, que não pode fazer chorar...

Izidora curvou a cabeça e roçou com os labios a mão de Ignez qae estava sobre o parapeito da janelia.

Ignez estremeceu e corou sem saber porque, recebendo aquelle fugitivo beijo.

Izidora como que se arreceiou da commoçao da innocente menina, e travon conversação com a senhora que lhe ficava do outro lado.

O prestito da cerração da velha se aproximava cada vez mais: alguns cavalleiros porem, tomarão-lhe a dianteira, levando os cavallos á trote: todos esses cavalleiros erão militares, e um delles, demorando ainda mais o trote do seu ginete, fitou a menina Ignez com olhos tam andaciosos, que, passando alem da casa de Antonio, não se lhe deu de que o vissem voltar para traz a cabeça, continuando a olhar a bella filha de Jeronymo Lirio.

Esse cavalleiro era Alexandre Cardoso.

Cincoenta rapazes trazendo archotes ádiante do prestito illuminavão bastante a rua para que todos podessem ter notado a contemplação inconveniente, com que o ajudante official da sala parecera adorar o lindo rosto de Ignez.

Jeronymo Lirio mal disfarçou a sua colera.

Só a menina Ignez com pasmosa isenção nem se quer deixou perceber que vira o apaixonado cavalleiro.

Na rua murmurava-se entre o povo:— São os dous lirios!— Que formosos que elles são!— Não será o maldito official da sala quem mereça alguma daquellas flores.—Ainda bem que o velho Jeronymo é casmurro.

Emfim o prestito passava, e, ainda melhor; o carro parou defronte das janellas de Antonio e as danças se ezecutarão no meiodos applausos do povo.

Aproveitando o movimento e o ruido, Izidora perguntou com voz tremula á Ignez:

— Quem é aquelle cavalleiro,que tanto a olhou ainda a pouco?

— Que cavalleiro?...

— Porque dissimula? vi bem que elle a ama...

— Vio mais do que eu.

— Mas quem é elle?...

— Que me importa isso?...

— Diga-me o seu nome...

Ignez admirou-se da alteração da phisionomia de Izidora, para quem levantara os olhos, e sem mais hesitar disse em voz baixa:

— Chama-se Alexandre Cardoso.

— O official da sala do Vice-Rei?

— Elle mesmo.

Izidora exhalou um gemido mal abafado, e ficou silenciosa e triste.

Ignez não sabia que pensar desse abalo da sua bella mestra de musica.

O prestido da cerração da velha seguio seu caminho.

Logo depois Antonio Peres levou seus convidados para a meza da cea que foi profuza e rica.

As onze horas da noute Jeronymo Lirio voltou com sua familia para a chacara da Gamboa, e atravessando as ruas da cidade ainda vio modestas sociedades ceando em esteiras estendidas ás portas de casas terreas.

A noute hia adiantada e o caminho para a Gamboa era como ficou dito, solitario e arriscado, mas Jeronymo estava tranquillo, porque alem dos oito escravos carregadores das cadeirinhas, levava dous pagens escolhidos.

O velho negociante não contava com Alexandre Cardoso.

O vingativo, soberbo e desmoralisado official da sala já desde alguns dias tinha concebido o plano da sua vingança e só esperava ensejo opportuno para executa-lo.

Tendo visto a familia de Jeronymo ás janellas da casa de Antonio Peres, apenas chegou á Praça do Carmo, despedio-se dos officiaes com que passeava, lendo antes dito em voz baixa algumas palavras á dous que erão seus intimos, e que mais tarde á elle forão reunir-se em lugar aprasado.

Em uma hora Alexandre Cardoso tomou todas as medidas que lhe faltavão, e as dez da noute oito possantes soldados do regimento velho disfarçados em maltrapilhos e escondidos no bosque, esperavão a familia de Jeronymo.

O plano era simples, ousado, e tam imprudente que só se podia explicar pelos habitos de impunidade, e pela cega e phrenetica paixão de Alexandre Cardoso: simular-se-hia um ataque de ladrões, começando por alguns tiros dados ao acaso para espantar os cavallos, immediatamente serião atacadas as cadeirinhas, as senhoras despojadas de suas joias, e no meio da desordem, Ignez devia ser arrastada para o bosque que estava completamente fóra de seu conhecimento e de suas previsões.

O algoz se reservava papel sublime: acudeiria intrepido aos tiros, e chegaria ainda á tempo de salvar as victimas, e de.... encontrar Ignez no bosque.

Pouco faltou para que completamente se realizasse a malvada trama de Alexandre Cardoso, que entretanto não poderá calcular com uma intervenção, ou com um potente auxilio.

As quatro cadeirinhas seguidas por Jeronymo chegavão ao ponto mais solitario e escabroso do caminho, quando de subito estrondarão alguns tiros de espingardas; os cavallos espantarão-se, um dos pagens cahio e perdeu os sentidos, o outro foi arrebatado para o lado contrario do bosque pelo animal que calvagava, o velho negociante occupado á domar o cavallo achou-se de improviso lançado por terra o prezo nos braços de um desconhecido, sem duvida salteador.

As senhoras forão arrancadas das cadeirinhas, e os escravos carregadores desta obdecendo á generoso impulso começarão uma luta desigual, pois que estavão desarmados.

Os gritos desesperados das senhoras despedaçavão o coração de Jeronymo, que rugio furioso ao ver um dos salteadores tomar em seus braços Ignez; mas immediatamente Izidora lançara-se de um salto sobre o roubador ou raptor da bella menina, e disputou-lhe a preza com tanta felicidade, que talvez pelo imprevisto do ataque, conseguio arrancar-lhe da mão a espada que elle trazia.

O salteador, largando no chão Ignez desmaiada, arremetteu contra Izidora; mas recuou logo, e soltando um gemido, fugiu.

Manejando a espada com braço varonil Izidora atacou animosa os outros ladrões, e com o concurso dos escravos sustentou breve; mais enraivado combate, ostentando o arrojo e a força de um leão.

O pallido clarão da lua illuminava a scena pavorosa e Jeronymo Lirio testemunhou ancioso durante dous ou tres minutos o mais terrivel dos episodios desse drama horrendo.

Em quanto os escravos se achavão á braços e atarefados com cinco ladrões, um outro destes, o ais gigantesco, o Hrcules, armado com um sabre atacava Izidora: era a força contra a agilidade muito constrangida pelas vestidos de mulher; mas ainda assim o leão não se deixava prender: saltando ligeira Izidora livrava-se dos botes tremendos do Hercules, cujo sabre perdia seus golpes neutralisados pela espada habil da valente amásona: cego de raiva o gigante bradou:

— Não é mulher!

E desabrio um golpe; Izidora porem o rebateu, e ferio o gigante no rosto.

Seguio-se um bramido, novo bote, e nova ferida na ilharga do salteador, que cambaleou e cahio.

Ouvio-se então o gallopear de cavallos, e o ladrão que continha preso Jeronymo e os outros que combatião com os escravos, fugirão carregando dous o companheiro ferido e os quatro restantes, protegendo aquelles, c defendendo-se em retirada pelo bosque com evidente pratica militar.

Izidora deixou-se então cahir sentada.

Jeronymo correu á ella:

— Está ferida? perguntou.

— Não; respondeu a amazona; estou cansada: o salteador bateu-se bem... deve ser aigum soldado....

Alexandre Cardoso e dous officiaes esbarrarão os seus cavallos, e olhando o campo do cambate, onde estavão estendidos o pagem que cahira do cavallo, e tres escravos feridos, pedirão informações do caso, dizendo que por ouvir o estrondo de alguns tiros, tinhão corrido á prestar soccorro.

Jeronymo Lirio relatou de máo modo quanto acontecera, e concluio, dizendo:

— Ainda bem que chegou tarde para defender-nos.

— Ainda bem?

— Sim; porque teria chegado tarde demais, se outro defensor e salvador não houvessemos tido.

O pagem, cujo cavallo desencabrestara, apresentou-se com um grupo de escravos armados.

Jeronymo Lirio despedio-se de Alexandre Cardoso e dos dous officiaes, agradecendo e não aceitando o offerecimento de sua companhia até a chacara.

As senhoras embarcarão-se de novo nas cadeirinhas, e o pagem que cahira do cavallo, e os escravos feridos forão levados nos braços de alguns dos seus parceiros.

Chegados a casa, Izidora foi de novo interrogada por Jeronymo sobre o seu estado, e a senhora Ignez desfez-se em cuidados por ella.

As duas meninas olhavão espantadas para Izidora.

A senhora Ignez a contemplava em adoração.

Jeronymo abraçou-a tres vezes.

Izidora tinha sido a providencia salvadora daquella familia.

Quando se acharão sós em seu quarto, as duas meninas conversarão ainda palpitantes e tremulas de abalo pelo perigo de que havião escapado, Irene perguntou:

— Viste-a bater-se, Sinhá-sinha?

— Eu não vi cousa alguma; lembra-me que ouvi tiros, que logo depois me agarrarão, e não soube mais de mim...

— Os mais bravos cavalleiros devem bater-se come ella se bateu.

— Foi ella então que me salvou?

— Sem duvida e a todos nós, e á nosso pai.

— One mulher extraordinaria!

— Sinhá-sinha, tu és feliz!

— Porque?

— Porque Izidora não pode ser mulher; é um mancebo e te ama.

Irene advinhara o segredo de Izidora, que de facto era lindo jovem que se disfarçára com vestidos de mulher para escapar ao recrutamento.

Jeronymo comprehendera que não era admissivel por mais tempo o disfarce depois do admiravel combate, e ao despedir-se de Izidora, perguntou-lhe:

— Trouce vestidos do seu sexo?...

— Sim, senhor.

— Pois é preciso trajal-os: a sua bravura e o seu valor tirarão-lhe o direito de fingir-se mulher.

E antes de dormir Jeronymo ainda pensou em Izidora; pois perguntou á senhora Ignez:

— Não pensas que devemos grande serviço a esse valente mancebo?

— Salvou-nos mais que as vidas, salvou á honra de nossas filhas.

— Ignez, vou mandar colher informações sobre o caracter e procedimento de Izidoro.

— Para que?

— Se elle for, como parece...

— Então?...

— Qual de nossas filhas julgas que devemos dar-lhe em casamento?

— A Nhanhã é a mais velha...

— Mas foi a Sinhá-sinha que elle precisamente salvou, atacando e ferindo o seu malvado raptor.