LVI

Por mais activos que fossem os trabalhos da reconstrucção da casa de Marcos Fulgencio ordenada pelo conde da Cunha e á custa do seu bolsinho , em cerca de vinte dias estava apenas adiantada, mas ainda um pouco longe da terminação das obras.

Marcos Fulgencio e Fernanda estavão morando com sua filha na pequena casa que fora de seu marido, e que ella não quizera deixar, embora muito rica se achasse.

Emiliana limitara-se á mandar limpar a casa e á orna-la com extrema simplicidade: muito recente era a affronta de que fora victima, e ainda não podia pensar nos gozos de uma vida brilhante que lhe proporcionava a fortuna.

A filha do carpinteiro tinha o coração cheio de odio, aspirava vingar-se do seu algoz; mas devorava em silencio as lembranças da affronta; porque seu pai ignorava a sua deshonra, e ella sabia de quanto era capaz Marcos Fulgencio tam pobre como honesto, e tam respeitador dos preceitos da moral e da religião, como zeloso até o extremo da reputação de sua familia.

Emiliana, á pezar de viuva e por tanto emancipada tinha medo do furor de Marcos Fulgencio.

Na noute da serração da velha, ás oito horas pouco mais ou menos uma mulher, trajando com elegancia, veio bater á porta da casa da rua do Parto, procurando Marcos Fulgencio e foi recebida na sala, onde estavão o carpinteiro, Fernanda e a filha viuva.

Emiliana estremeceu, reconhecendo Maria, que offerecendo a mão á Marcos Fulgencio, disse-lhe:

— Sua mulher é uma santa, sua filha uma victima que se resigna, e só o senhor é forte, e capaz de entender-se comigo.

— Virgem Nossa Senhora! exclamou Fernanda.

Emiliana ficou muda e a tremer.

O carpinteiro disse:

— Falle, minha nobre senhora.

— Vou ferir-lhe o coração; tenha porem paciencia para ouvir-me atê o fim, e estou certa de que se entenderá comigo.

O carpinteiro cruzou os braços sobre o peito.

— O senhor tem sido piedosamente enganado por sua mulher e sua filha...

— Perdão, minha nobre senhora! mas...

Marcos Fulgencio queria dizer, porem não disse—não creio; porque vio a perturbação e o susto de Fernanda e de Emiliana.

Maria continuou impavida:

— Quando na noute do incendio da sua casa o senhor foi levado quasi moribundo para a Santa Casa de Misericordia, sua virtuosa mulher correu em dezespero, onde lhe levavão o esposo...

— E Emiliana?

— Ficou na casa arruinada da velha perversa, que de surpresa deu a noticia da sua morte á filha infeliz que soltou um grito e desmaiou...

— E depois?

— A velha introduzio no quarto onde estava sua filha um official militar, e fechou a porta.

— Alexandre Cardoso! bradou Marcos Fulgencio, levantando-se.

— Elle mesmo que abuzou da innocente que estava desmaiada.

Marcos Fulgencio agarrou com força nos punhos de Emiliana, obrigou-a á encara-lo e perguntou-lhe com os dentes cerrados.

— E' verdade?

A filha respondeu, gemendo:

— E' verdade.

O carpinteiro largou a filha, e furioso disse á mulher:

— Abandonaste Emiliana!...

— E tu que morrias?!!! exclamou Fernanda.

— Sabias, que o malvado tentava seduzir nossa filha!

— E tu que morrias?!!! repetio a esposa com vehemencia.

— Devias deixar-me morrer! disse Marcos Fulgencio com raiva.

— E tu me deixarias morrer?

O carpinteiro voltou-se para Maria e perguntou-lhe:

— Que mais ?..,

— Tenha a bondade de sentar-se; disse socegadamente Maria.

Marcos Fulgencio levou as mãos calejadas á fronte, e soltando um gemido de leão ferido, sentou-se:

Maria proseguio com horrivel frieza:

— Contei-lhe em resumo a verdadeira historia da sua maior desgraça: aquella menina foi victima innocente, e sua mulher tam culpada por abandona-la, como o senhor foi culpado por cahir, lançando golphadas de sangue. Agora reflictamos. A nodoa que manchou a reputação de sua filha ou foi lavada pelo casamento com Clelio Irias, de quem a senhora Emiliana é hoje viuva, ou se ainda subsiste...

— Subsiste! disse sinistramente Marcos Fulgencio.

— Ou se ainda subsiste, somente pode lavar-se de todo por meio do casamento com Alexandre Cardoso...

— E tu queres? perguntou rude e asperamente o carpinteiro á filha.

Emiliana fez um movimento de horror.

— Em tal caso disse Maria sempre inalteravel e reflectidamente fria; era tal caso ha só um caminho á seguir; é o caminho da vingança.

— Minha nobre senhora, murmurou terrivel Marcos Fulgencio; bem vinda seja! nós nos entenderemos.

— A senhora é uma tentação que quer deitar á perder meu marido! exclamou Fernanda.

— Silencio; bradou Marcos.

— Que pretende fazer? perguntou Maria.

— Não se pergunta.

— Ao contrario pergunta-se: entregue á si mesmo, amanhã Marcos Fulgencio seria réo de assassinato, ou ainda peior, de tentativa de assassinato, e alem de dar publico testemunho da deshonra da filha, iria pagar na forca o crime perpetrado.

— Que me importa a forca? deixarei um exemplo de justissima vingança...

— Que a lei de Deus condemna.

O carpinteiro rugio surdamente.

— Ha mais facil, mais segura, mais dolorosa e não peccavel vingança: disse Maria.

— Qual?

— Amanhã vá fallar ao Vice-Rei...

— O protector do monstro?...

— Procure no palacio Germiano, o creado do ronde da Cunha, dê-lhe o seu nome, peça uma audiencia particular do Vice-Rei, e apresente á este a sua queixa. Vá ou de manhã ás sete horas, ou á tarde ás cinco.

— E o Vice-Rei mandará levantar um sobrado sobre a pobre casa que faz reconstruir para o carpinteiro! disse com ironia pungente Marcos Fulgencio.

— Espere oito dias pelo castigo do criminoso.

— E se no fim de oito dias o criminoso ostentar ainda a sua impunidade, e em vez de receber a punição merecida, mandar-me prender e condemnar-me aos trabalhos publicos?

— Dada essa hypothese, ha so dous recursos.

— Quaes?

— Ou submissão de escravo ao poder que abuza e provoca...

O carpinteiro bateu raivoso com o pé.

— Ou começar a vingança pelo Vice-Rei.

— Misericordia! bradou Fernanda.

— Ella tem razão; disse Emiliana; se o Vice-Rei não fizer justiça, haverá não um, porem dous criminosos, e dos dous o primeiro criminoso será o Vice-Rei.

— Ainda bem! exclamou Marcos Fulgencio.

— Estamos pois entendidos? perguntou Maria.

— Estamos; disse o carpinteiro.

— Ainda não; tornou Emiliana.

— Porque?

— Porque não é meu pai, sou eu que devo ir pedir justiça ao Vice-Rei.

— E' assim; disse Maria.

— Meu pai me acompanhará ao palacio, e serei eu quem pedirá audiencia ao Vice-Rei.

— Até que emfim! tornou Maria.

— E se o conde da Cunha ainda por oito dias deixar impune o seu ajudante official da sala, justiça seja feita por meu pai, pois que não temos governo que no-la faça.

Maria sorriu-se e disse:

— Não hade ser preciso.