Desde alguns mezes o conde da Cunha começára á meditar sobre a possibilidade do compromettimento do seu nome e da sua reputação em abusivo e criminoso proveito do seu ajudante official da sala, e não menos sobre alguns indicios, que no murmurar do povo erão provas dos costumes desregrados, e da vida desmoralisada de Alexandre Cardoso.
Encantado pela actividade e intelligencia do tenente-coronel do regimento velho, á quem chamára para o gabinete do governo da colonia, o Vice-Rei conde da Cunha durante os primeiros annos desprezára e até castigára todas as queixas e denuncias dadas contra Alexandre Cardoso não só pela habilidade com que este se defendia, como pela recente lembrança do muito que soffrera o conde da Bobadella em insultuosas cartas anonymas, que tambem então chegavão ás mãos do Vice-Rei cheias de accusações contra o seu querido ajudante official da sala.
Ultimamente porém um inimigo muito mais terrivel operava incognito, atacando Alexandre Cardoso.
Não se passava semana em que o conde da Cunha não recebesse uma especie de relatorio da vida desordenada do seu ajudante official da sala, sendo para notar que ás vezes o sinistro semanario preannunciava casos que effectivamente se realisavão.
As censuraveis relações de Alexandre Cardoso com Maria de....., a influencia desta fazendo-se sentir na administração, o patronato productivo exercido por aquelle, sua paixão do jogo, seus desregramentos e attentados contra o pudor e a moral, a venda de alguns empregos, a isenção do recrutamento á preço ajustado, as violencias, e imposições excessivas que se attenuavão ou desapparecião, conforme a importancia de ajustes particulares, tudo emfim o Vice-Rei recebia communicado no infallivel semanario escripto de modo a disfarçar completamente a letra.
O conde da Cunha fôra por esse meio informado da paixão em que Alexandre Cardoso se abrazava pela filha mais moça de Jeronymo Lirio, e dos esforços que elle empregava para captivar a gratidão do pai da bella menina, e introduzir-se no seio da familia Lirio, como amigo e protector.
Até Fevereiro de 1766 os relatorios anonymos e semanaes influirão pouco no espirito do conde da Cunha: recebidos com a desconfiança que merecem denunciantes inimigos que ferem á traição, esses escriptos conseguirão ao menos abalar um pouco a cega confiança que o Vice-Rei depositava no seu official da sala; mas no domingo do carnaval a carta e o bilhete que Jeronymo Lirio foi apresentar, produzirão impressão profunda no animo do conde da Cunha; porque demonstrarão que o secretario do governo abusava da sua posição e do nome do chefe da administração do Brasil, servindo-se de uma e de outro para seus empenhos particulares e reprovados.
O conde da Cunha sabia que Alexandre Cardoso era jogador e apaixonado do bello sexo; não acreditando porém que elle se entregasse doudamente á essas duas paixões, como seus inimigos propalavão, perdoava-lhe esses defeitos em attenção a essas qualidades; mas os factos começavão á provar que o ajudante official da sala compromettia o Vice-Rei.
Suspeitoso emfim e disposto á dissimular, o conde recebeu na manhã da segunda-feira a Alexandre Cardoso com a mesma bondade com que sempre o fazia e perguntou-lhe, se mais alguma novidade occorrera no dia antecedente.
O ajudante official da sala estava prevenido.
— Nada mais, senhor Vice-Rei; respondeu elle: a prohibição do entrudo foi geralmente observada; deo-se porém uma unica excepção muito excusavel: o honrado negociante Jeronymo Lirio, jogando o entrudo na sua chacara da Gamboa, tolerou infelizmente que, contra o preceito dos editaes fixados, mercadores de limões de cheiro fossem vendel-os no terreiro de sua casa, recebendo denuncias do facto, e observações sobre minha parcialidade á favor desse negociante feitas por amigos que gracejarão comigo, alludindo á uma nova calumnia, de que sou victima, escrevi uma carta official muito severa á Jeronymo Lirio, intimando-o para vir hoje ao meio dia explicar-me o seu procedimento: preparada assim esta satisfação para o publico, mandei dentro da carta um bilhete, tranquillisando o bom velho negociante.
O conde da Cunha fingio que de leve se sorria
— Tranquillisando-o...... como?....
— Em breves palavras deixei entender que fôra indispensavel dirigir-lhe a severa carta; mas que hoje eu conseguiria tudo quanto não pudera conseguir hontem....
— Entendo: o Vice-Rei conde da Cunha é o despota, e o seu ajudante official da sala a bandeira da misericordia: é isso?.....
— Mudado o nome despota em magistrado severo e recto, é isso mesmo, senhor.
— Explique-se então melhor.
— Tarde e quando V. Ex. já se havia recolhido, escrevi eu a carta e o bilhete em questão: resolvi por mim mesmo, porque o facto não tem consequencias, e não devia por tão pouco incommodar a V. Ex; mas, escrevendo, cumpria-me fazer partir a ordem em nome do senhor Vice-Rei, e indicar que eu interviria hoje e conseguiria o completo esquecimento da desobediencia de Jeronymo; porque de outro modo, e pondo de lado o senhor Vice-Rei que é quem governa e manda, diria o negociante que eu tambem governo e mando na colonia.
Alexandre Cardoso tocára no fraco do conde da Cunha.
— Assignou o bilhete? perguntou elle.
— Não senhor, e desfigurei a letra.
— Porque? — Poderia dar-se o caso de Jeronymo Lirio perdel-o.
— Fez bem.
— Deixei copia da carta e do bilhete, quo o senhor Vice-Rei lerá, quando quizer.
— Já os li; disse o conde da Cunha.
— Como? onde, senhor?.... perguntou o ajudante official da sala com admiração perfeitamente fingida.
— Jeronymo Lirio m'os apresentou hontem a noite.
— Ah! segue-se que elle desconfiou de mim.
— Eu o creio tambem.
— Doe-me isso: é um homem de bem que me desconsidera e me desestima.
— Sem motivo?.....
— A pergunta de V. Ex. me confunde.
— Elle não, mas alguem me disse que o meu ajudante official da sala ama uma das filhas de Jeronymo Lirio.
— E é verdade, senhor Vice-Rei.— E que procura por todos os meios relacionar-se com a familia da menina amada.....
— Por todos os meios licitos, tambem é verdade.
— E com que fim?
— Com o unico fim honesto....
— Quereria casar-te?
— Poderia eu ter outro pensamento?...
— Ha quem o supponha; senhor Alexandre Cardoso.
— O pai, senhor Vice-Rei?...
— Muito orgulhoso, não lhe ouvi uma palavra á esse respeito; é porém certo que elle não faz honra aos seus sentimentos.
— Senhor Vice-Rei; tenho um meio seguro, infallivel de manifestar e provar a pureza de minhas intenções, e as torpes calumnias dos inimigos de V. Ex. que são os unicos que conto.
— Qual é esse meio?
— Sou nobre, e tenho já no exercito elevada patente; mais do que isso, o ajudante official da sala do Vice-Rei que é o senhor conde da Cunha, não póde ser homem absolutamente obscuro.— Certamente.
— Pois bem: V. Ex. que tem sido o meu protector, o meu segundo pai, apatrocine esse amor de que me fazem um crime, e faça com que se realise o meu casamento com a filha mais moça de Jeronymo Lirio.
O rosto do conde da Cunha expandio-se.
— Senhor Alexandre Cardoso, disse elle descansando a mão direita no hombro do seu secretario; acaba de tirar-me um peso horrivel que me esmagava o coração: vá trabalhar: hoje mesmo farei o que me pede, e quero ser uma das testemunhas do seu casamento.
O ajudante official da sala beijou a mão do Vice-Rei.
— Ao meio dia Jeronymo Lirio se apresentará.
— Depois de ter fallado ao senhor Vice-Rei?
— Eu sei manter a força moral dos meus subalternos.
Alexandre Cardoso curvou-se, agradecendo.
— Diga o que julgar melhor ao pai da sua noiva na certeza de que elle sabe que não tive conhecimento nem da carta, nem do bilhete, e diga-lhe emfim de minha parte que esta tarde hei de ir visital-o á sua chácara da Gamboa. Vá trabalhar.
Alexandre Cardoso sahio.
— Como se julga mal e injustamente dos homens!1... como se calumnião aquelles que carregão com o peso e com a responsabilidade do governo!... disse comsigo o conde da Cunha.
Alexandre Cardoso acabava de reconquistar toda a confiança do Vice-Rei.