Marcos Fulgencio voltava do trabalho para o seio da familia invariavelmente ao anoutecer: ás oito horas ceava, ás nove dormia.
Na segunda-feira do carnaval procedeu como em todos os outros dias; mas logo depois das dez horas da noute despertou aos pavorosos brados de Fernanda, que assim se chamava sua mulher, e saltando fóra da cama, viu sua pobre casa ardendo em fogo: ainda tonto de somno Marcos Fulgencio hesitou por alguns momentos; mas a fumaça começava a invadir o quarto, e um clarão horrível inundava a sala.
O carpinteiro tentou sahir para sala e recuou ante o fogo que devorava o tecto, semeando de continuo pedaços de ripas e caibros abrasados e telhas que cahião por falta de apoio: calculando então as proporções do perigo tornou á trancar a porta do quarto, correu á uma janella que se abria para o lado direito da casa, escancarou-a, tomou era seus braços Fernanda, lançou-a fóra da casa, atirou-se também pela janella, tendo primeiro arrojado por ella o seu caixão de instrumentos.
— Minha filha!... minha filha!... gritava Fernanda.
Mas o carpinteiro não parára um instante: do caixão de ferros tirou um formão e o martello, e precipitou-se para os fundos da casa, onde havia uma porta em frente do mar.
Marcos Fulgencio não fallava: chegou diante da porta que procurava, avançando com o formão e o martello; mas como se julgasse moroso o meio, largou no chão os instrumentos, applicou um dos hombros á porta e durante um minuto talvez empregou tão herenho esforço, que conseguiu rebentar a fechadura.
O carpinteiro cambaleou e abrindo a boca, lançou uma golfada de sangue; mas penetrou logo accelerado na casa, e em breve soltando um grito de dôr immensa, voltou, trasendo nos braços Emiliana morta ou desmaiada, e a depositou, chorando, no collo de Fernanda que em desespero se abraçou com ella.
Só então Marcos Fulgencio ouviu os sinos, dando signal de incendio.
Começava a accudir gente e não tardou a velha visinha que habitava a casa arruinada, e que, ao ver Emiliana estendida no chão e exposta em camisa como o pai a trouxera da cama, tirou a sua mantilha e cobriu-a com ella.
Emiliana não estava morta, e bastarão alguns minutos do ar livre, fresco e puro da noite para que ella recobrasse os sentidos que perdera.
Marcos Fulgencio e Fernanda responderão com duas exclamações de alegria ao primeiro suspiro de Emiliana, que logo depois abriu os olhos e sentou-se apoiando-se em sua mãe.
Ouviu-se tropel de cavalleiros.
— E' a tropa que chega, disse a velha; esta menina não póde ficar aqui: comadre Fernanda, levemo-la para a minha palhoça...
— Sim; disse Marcos Fulgencio; vai com ella para a casa da comadre Poncia.
E Iranquillo sobre o estado da filha, o carpinteiro pensou de novo no incendio.
A antiga e pezada construcção das casas, o em- prego de madeiras de lei, e de grossura exagerada, a fortaleza das paredes explicão a razão do longo trabalho do fogo á devorar ainda mesmo um pequeno predio bem edificado.
A casa do carpinteiro Marcos Fulgencio fôra construida pouco á pouco por elle mesmo e sob sua zelosa direcção e era toda dessas madeiras do Brasil que arremedão o peso, a duresa e a resistencia do ferro.
Os soccorros tinhão chegado e o homem combatia o incendio. O tenente-coronel Alexandre Cardoso dirigia com serenidade, intelligencia e energia todos os trabalhos.— Coragem, Marcos Fulgencio! gritava elle, quando via o carpinteiro passar correndo.
O fogo conquistara todo o tecto da casa.
Marcos Fulgencio não fallava; mas tinha com sublime frieza medido a furia do incendio, e comprehendido o que mais lhe convinha fazer para que fosse menor o seu prejuizo.
Desprendendo um machado, o manejara activamente, despedaçando as portas e janellas para dar livre sahida ao fumo e com audacioso impeto arrojava-se ao interior da casa, ou entrando pelas portas, ou saltando pelas janellas, e logo enegrecido pela fumaça, chamuscado pela flamma, sahia trazendo á cabeça ou nos braços alguns objectos, algum pobre fardo ou traste que salvara.
As caixas de roupa de sua mulher e de sua filha, o bastidor e a róca de Fernanda, e outros objectos forão assim arrancados por elle á completa destruição.
Mas sem duvida o thesouro do carpinteiro devia estar na sala da frente, pois que elle já vinte vezes tentára invadi-la e vinte vezes recuára, rugindo, por não poder assoberbar as linguas de flammas e os vomitos de fumo.
E já duas vezes novas golfadas do sangue havião vião marcado o resentimento do corpo pelo excesso do esforço de Marcos Fulgencio.
Emfim o indomito carpinteiro fez o signal da cruz, e aos gritos— « o tecto vai desabar! » que, ouvindo um medonho estalo, soltava a multidão, elle, furioso, investiu pela porta da frente átravez da fumaça ardente, e desappareceu.
— Misericórdia!... bradarão mil vozes.
Um vulto immenso, como um phantasma mostrou-se á porta em meio da nuvem espessa de fumo...
O tecto estalou outra vez e desabou todo...
E Marcos Fulgencio negro, com as mãos queimadas, com os vestidos em trapos avançou, trazendo á cabeça o seu oratorio que depoz no chão.
— Graças a Deus! exclamou elle.
E ajoelhou-se, estendeu os braços para o oratorio, e cahiu por terra sem sentidos.