XXXII

Alexandre Cardoso retirou-se para o gabinete, onde trabalhava, desopprimido de um grande peso; mais aturdido por duas contrariedades que muito agitavão-lhe o animo.

O Vice-Rei tinha frequentemente dias de impaciencia e de irritação difficies de se supportar; nessa manhã porém menos desabrido que em outras, fallara todavia sobre o incendio, e negara-se á despachar as nomeações para o commando do terço de modo que excitou suspeitas e temores no espirito naturalmente desconfiado de Alexandre Cardoso, que só respirou desafrontado de mais graves apprehensões, ouvindo loqo depois a explicação do máo humor e da colera do poderoso senhor.

Mas ficarão á Alexandre Cardoso duas contrariedades.

O ajudante official da sala do Vice-Rei negociára particularmente e por bom preço as nomeações para os diversos postos do novo terço: de algumas recebera adiantado pagamento, e calculava com elevadas quantias que as outras havião de render-lhe; o jogo, em que andava infeliz, e a devassidão que lhe custava rios de ouro, o apertavão em criticos apuros, e o Vice-Rei, adiando aquellas nomeações viera aggravar os seus embaraços financeiros, o que era questão de maxima importancia para elle que em cada noite precisava ter a bolça recheada de louras moedas.

A negativa de Jeronymo Lirio á sua proposição de casamento com a bella Ignez era para Alexandre Cardoso alem de uma repulsa insultuosa. um desmancho de calculos de futura riqueza, e um incentivo provocador de sua paixão pela formosa menina. Ultrajado em sua vaidade, prejudicado em bens planos de fortuna, esporiado, ferido em seu amor, se realmente amava, em seu ardor libidinoso, se outro não era o seu sentimento, o ajudante official da sala do Vice-Rei jurou vingar-se em Ignez do orgulhoso pae de Ignez, e animou-se mais nessa idéa, contando com o resentimento do conde da Cunha que tão colerico se pronunciara contra Jeronymo Lirio.

Entretanto o cuidado instante de Alexandre Cardoso era arranjar dinheiro, para o jogo e paraos seus desenvoltos prazeres; trabalhou mal como ajudante official da sala nesse dia; porque, trabalhando, meditava, imaginando expedientes: ás onze horas da manhã despachou um soldado com uma carta para Clelio lrias, velho uzurario riquissimo que morava na mais baixa e pobre casinha da rua do Parto e apenas vio sahir o soldado, poz-se a escrever com o maior cuidado em uma folha de papel, e consecutivamente cm mais duas, imitando diversos caracteres de letra, no que era habil e consummado: dobrou depois as folhas de papel, e guardou-as na sua pasta:

No fim de uma hora pouco mais ou menos Clelio Irias hirsuto e com vestidos remendados, com a cabeça sem cabelleira, e os sapatos sem fivella, immundo e despresivel foi introduzido no gabinete do ajudante official da sala.

— Senta-te e espera, Clelio Irias; disse este, e continou á escrever.

O velho esperou meia hora e vendo Alexandre Cardoso como delle esquecido, disse:

— Tempo é ouro: que faço eu aqui?

O ajudante official da sala do Vice-Rei largou a penna, e respondeu:

— Tens razão, meu velho: quanto te devo até hoje?...

— Cinco mil crusados com os juros do ultimo trimestre, que não recebi.

— Dou-te a melhor das noticias, Irias !

— A do pagamento ?

— O contrario disso: a boa nova de que esta noite te deverei dez mil crusados.

— E como; se não tenho hoje nem um patacão para emprestar? exclamou o velho á tremer.

— Falla baixo ou não te poderei valer; observou Alexandre Cardoso.

O velho ficou olhando em silencio.

— Clelio Irias, não me esqueci de que em um dia me abriste a tua bolsa uzuraria e me emprestaste dous mil crusados, que hoje por tuas contas de juros sobem á cinco: não discuto sobre a uzura: precizei, achei-te, devo-te gratidão.

O velho continuava a olhar.

— Lê esta denuncia: disse Alexandre Cardoso, passando á Clelio Irias, uma das tres folhas de papel.

O velho leu uma denuncia que contra elle dava um incognito inimigo, accusando-o como judeu, ao Santo officio.

Clelio Irias não era judeu, mas filho de judeu.

— Lê agora estes officios; continuou Alexandre Cardoso, passando ao velho as outras duas folhas de papel.

Clelio Irias leo um officio do commissario do Santo Officio ao bispo, e outro do bispo ao Vice-Rei.

A prisão e remessa de Clelio Irias para Lisboa erão exigidas. O velho tornou á ler e á reler os documentos, e depois cahio de joelhos e disse com voz sumida:

— Salve-me pelo amor de Jesus Christo!

Alexandre Cardoso poz-se á rir: o velho quasi chorava.

— Mandei-te eu chamar para te prender, pobre millionario Irias?

— Salve-me! repetio o velho.

— Quanto te devo eu hoje ?

— Ah, senhor! creio que cousa nenhuma;...

— Não, uzurario; o que eu devo, devo, e hei de pagar-te.

E Alexandre Cardoso renovou a pergunta:

— Quanto te devo eu até hoje?

— Cinco mil cruzados.

— E' quasi nada.

Clelio Irias arregalou os olhos.

— Um homem da minha gerarchia ou não deve, ou deve mais do que isso: disse Alexandre Cardoso.

O velho tremia e esperava.

— Quero esta noite dever-te o dobro dessa quantia; já o disse.

— O dobro?!!!

— Achas pouco? talvez tenhas razão: espera: deixa-me examinar outra vez esses papeis.

Clelio Irias teve medo de que o novo exame determinasse augmento da exigencia, e perguntou:

— Onde levarei os cinco mil cruzados?

— A' minha casa as seis horas da tarde.

— E estes papeis?

— Queima-los-ei á tua vista.

O velho uzurario reflectia por algum tempo: tornou a ler e a examinar a denuncia e os officios, foi pouco a pouco recobrando o animo perdido e por fim dice com uma certa accentuação de malicia na voz:

— Eu preferia que me passasse a claresa da divida era um desses papeis.

Alexandre Cardoso corou.

— Miseravel!

— Questão de segurança: quem me responde pela futura complacencia do meu denunciante?

— Eu.

— Não me basta.

— E de que te serve a claresa passada em um desses documentos?

— Ah! de muito! se eu for outra vez deuunciado, o senhor ajudante official da sala me salvará, ou eu o perderei com o papel da clareza.

Alexandre Cardoso conteve uma imprecação e disse:

— Retira-te.

— Quer que vá as seis horas?

— Não; mudei de parecer.

Clelio Irias que perdera o medo, tornou:

— Tenho outra idea...

— Retira-te, judeu!

— Perdão, senhor; olhe que está elevando a voz.

Alexandre Cardoso encarou com raiva o teimoso velho que proseguio:

— Levarei ás seis horas a clareza da divida antiga e mais cinco mil cruzados em boa moeda, e em troca da clareza e do dinheiro receberei a denuncia e os dous officios;mas d'ora avante o senhor tenente coronel arranjará as cousas de modo que eu não seja outra vez denunciado e que alem disso eu com o meu proprio nome ou com o de outro ou de outros,venha á ter por administração as melhores obras publicas e por contracto, os melhores fornecimentos para as tropas d'el-rei, e pela minha parte eu tambem arranjarei as couzas de modo que os lucros sejão irmã e honradamente repartidos entre mim e o meu socio encoberto.

Alexandre Cardoso respondeu á tremer por sua vez:

— Bruto! não sentes que me insultas?

O uzurario rindo-se com um rir ironico e repugnante, debruçou-se na meza do ajudante official da sala, firmou o queixo sobre os punhos, fitou Alexandre Cardoso e continuou, dizendo:

— Que insulto? o que eu sei é que esses papeis são falsos, mas que o senhor tenente coronel é bem capaz de os arranjar verdadeiros e de perder-me para sempre, e tambem ainda sei que o senhor precisa muitas vezes de dinheiro: ora mesmo falsos como são, esses papeis me servem muito: dou por elles o que dice sob a condição da sociedade, em que lucraremos bastante e sem receio um do outro; porque ficaremos ambos em mutua dependencia. Isto é que é ser franco: serve-lhe?

Alexandre Cardoso vio aberta á seus olhos uma mina de ouro, e respondeu:

— As seis horas em minha casa.

Clelio Irias sahio.