Quando a Sr.ª Joana chegou à sala imediata, achou-se na presença de uma visita inesperada. Era Daniel, que de braços abertos, caminhou para ela, chamando-lhe "a sua boa Joana".
Por muito tempo fora Daniel o querido da velha criada do cirurgião, a qual não se cansava de apregoar por toda a parte que não havia aí menino de rosto mais galante e de modos mais bonitos, do que o filho mais novo de José das Dornas. Quando a idade veio imprimir cunho mais varonil àquela beleza, Joana, como mulher que era afinal, não foi insensível à perfeição do tipo masculino que tantas atenções tinha já merecido ao seu afeiçoado, durante a vida de cidade.
Ultimamente, porém, um pequeno azedume de má vontade viera misturar-se à simpatia da boa mulher. Em Daniel via um futuro rival de João Semana, e a dedicação fanática, que votava ao amo, não a deixava encarar desassombrada a probabilidade dessa luta e, sem algum despeito, o novo atleta, que aparecia na arena, de encontro ao velho colosso.
Joana bem se fingia tranqüila, dizendo às suas conhecidas e comadres que enquanto João Semana fosse vivo, ninguém havia de poder fazer-lhe sombra; mas lá no fundo, não estava muito satisfeita.
Ainda assim - tal é o poder das antigas afeições - ao ver Daniel vir para ela tão abertamente amável, esqueceram-lhe todas as más prevenções, que contra ele tinha, e recebeu-o nos braços com expansão igual.
— Jesus! que mocetão! Ora quem há de dizer que é este o menino a quem eu dava biscoitos, e que trepava, como um gato, pela pereira do quintal acima?! E então como gostava daquelas pêras .
— E quando o seu patrão tinha uns quatro pêssegos muito grandes, que destinava para o vigário da vara, e eu lhos furtei, inventando depois nós ambos uma história muito comprida de ratoneiros, a que não se deu pouco que fazer ao regedor.
— Sempre foi uma, essa! E o vigário foi quem mais se zangou com a graça. E daquela vez que o menino entornou o tinteiro por cima do livro dos assentos do Sr. José Semana?
— Aí, é verdade. Por sinal que você depois lhe disse que foi o gato.
— E, coitado, foi ele o que pagou. Levou uma sova mestra! O pobre bichano não podia imaginar por quê.
— É provável que ele não perdesse muito tempo a investigar a razão do fato. Foi bem mais razoável, fugindo.
— O menino era um traquinas! Era uma coisa por maior.
— Há de lembrar-me sempre com saudades, Joana, de quando se cozia o pão em casa, e eu vinha ao sair da aula, buscar o bolo, que você me guardava no forno. Lembra-se?
— Ora, como se fosse hoje. E daquela tarde em que o menino foi beber água fria logo por cima! O meu amo parecia que me matava.
— Que bons tempos esses, Joana!
— Se eram! Agora já o menino não quer da nossa fruta, nem do nosso bolo. Quem sabe se no-lo comerá por outra forma?
— Como?!
— Recebendo algumas das medidas e avenças que, até agora, eram só do Sr. João Semana - disse a criada com ciúme renascente.
— Está doida, Joana? nem seu amo tem receios de que eu lhe faça mal, nem eu vontade de lho fazer. Graças a Deus, eu não preciso para comer de andar a furtar o pão daqueles que tantas vezes e de tão boa vontade mo oferecia. Para o ajudar, isso sim, estou pronto, que não é pouco pesada a cruz que ele traz.
— Não é, não, menino! - exclamou, já sensibilizada e reconciliada de todo com Daniel, a velha criada. E, suspirando, continuou:
— Aquilo é um negro de trabalho. Aí, se ele faltasse o que seria dos pobres! Eu bem sei que o menino há de fazer o que poder, que tem bom coração, isso tem; mas quem lhe deu as forças dele? Aquele corpo é de ferro. Não faz idéia. desde pela manhã, até a noite, não tem aquele pobre de Cristo um momento de sossego.
— Ele está cá?
— Está agora a passar pelo sono. E mais tinha um recado com pressa. Foi preciso usar de malícia para o fazer descansar.
— Pois, Joana, eu vinha para agradecer-lhe a visita que me fez, mas deixe-o dormir.
— Ele há de gostar de o ver; que olhe que é muito seu amigo, Danielzinho. Ele tem aqueles modos assim secos, mas... Inda ontem aqui esteve a dizer que o menino há de vir a ser cosa grande.
— Não, agora já não cresço mais.
— Ora! bem sabe o que eu quero dizer. Está a rir.
— Eu lhe digo, Joana. Eu que vim meter-me nesta terra, é porque tenho ambições. Lá isso tenho. A si, digo-lhe baixinho, o meu grande desejo é vir a ser...
— O quê? - perguntou Joana, com curiosidade feminina.
— Nada menos que regedor cá na aldeia.
— Ora... fala sério?
— Pois isso é coisa lá que se brinque?
— Então para que quer ser regedor?
— E não é uma posição tão bonita?
— Não lhe digo que não. Pois olhe, com o tempo isso não será difícil. O Sr. João Semana já esteve para; ele é que não quis. Mas o que é, é que o menino está aqui, está casado.
— Por que diz isso?
— Ora! o pai há de arranjar-lhe noiva rica.
— E então há por cá muito desse gênero?
— Se há? Boa! Olhe; aí tem a filha do morgado da Cova do Frade, que é uma moça bonita.
— Aí, muito bonita! Parece mesmo uma dália vermelha.
— Que está a dizer? É uma rapariga escarolada e sadia.
— Lá escarolada será, e então tem muito dinheiro?
— Para cima de vinte mil cruzados.
— Ih! que dinheirão!
— Então acha pouco?
— Está claro. Mulher com menos de quarenta contos, Joana, não me serve.
— Quarenta contos! Quanto é quarenta contos?
— São cem mil cruzados.
— Credo! O que aí vai! Então não casa decerto, também lhe digo.
— Se a não encontrar cá, trago mulher da cidade. Olhe que são mais bonitas. Uma senhora, que saiba tocar piano, que saiba cantar, que ande à moda.
— Sume-te! Sempre as tais modas! É no que eles pensam. Ora que graça acham àquelas coisas.
— Você não sabe o que diz, Joana. Inda hei de vê-la andar à moda, a si também.
— A mim?
— A si, sim, minha senhora, e então por que não?
— Alguma estará nesse dia para suceder.
— Mas olhe cá, Joana, e quando você me vir passar de braço dado com a minha senhora, ela com o vestido de seda a arrastar pelo chão...
— Isso! Olhe que há de ficar em bom estado. Passeie pelo tojo e verá.
— Um pé muito pequenino; eu gosto dos pés muito pequeninos, Joana.
— Também muito pequenos demais não servem para andar. Querem-se em termos.
— Nada, quero-os muito pequeninos: e depois uma vozinha que mal se perceba.
— Ora essa! Então não se há de ouvir o que ela diz?
— Vocês cá não tem nada disso.
— Isso não. O pé mais pequeno que eu conheço... é um da filha do Mateus, que teve, salvo seja, um raminho em criança e ficou aleijadinha... e agora voz que não se perceba... olhe, tem a ti'Ana do regedor, que, desde que lhe caiu aquela constipação no peito, ninguém lhe entende a palavra.
Neste ponto do diálogo, entrou Miguel, rapaz do serviço da casa, com um bilhete na mão.
— Sr.ª Joana - disse ele- vieram entregar este bilhete para o patrão.
— Temos mais alguma impertinência. Está bem, deixe ficar.
— É que esperam pela resposta, Sr.ª Joana.
— Pois que esperem, Miguel. O patrão está a dormir, e eu não o vou agora acordar por causa disse. Do mando de quem vem?
— Diz que das do Meadas.
— Aí, então é a pedir por algum pobre. Não fazem outra coisa as raparigas. Têm vagar, destas fortunas é que nos aparecem. Mas a carta não vem fechada... Ó menino, então leia-a.
— Porém... - ia a observar Daniel.
— Não tem dúvida, pode ler. Isto não é de segredo.
Obedecendo às instâncias de Joana, Daniel abriu a carta e leu: "Meu bom Sr. João Semana:
— Isso! - anotou a criada - Façam-lhe a boca doce.
Daniel continuou lendo:
"O nosso pobre doente está mal, muito mal. Corta o coração vê-lo padecer assim. Se não for possível salvá-lo, ao menos que se não veja desamparado ao morre. É tão compadecido o seu coração, Sr. João Semana, abre-se tão depressa à caridade, que me atrevo a pedir-lhe que venha ver este desgraçado. A consciência lho pagará.
Da sua respeitosa amiga
Margarida
— Bonitas palavras - disse Joana - não tem dúvida nenhuma; o pior é que não se aduba o caldo com elas.
— De quem é esta carta? - perguntou Daniel. - Eu já ouvi este nome de ...
— Olhem, quem o pergunta? Pois de quem é ela, homem de Deus, senão da irmã de sua cunhada, da que há de ser?
— Ah! bem me parecia. Mas... da irmã! e ela escreve assim? - continuou Daniel, admirado da boa ortografia e singeleza de frase da carta que tinha ainda na mão, e para a qual tornou a olhar.
— Pois que julga que é essa rapariga? Bem digo eu que o menino já se esqueceu de todo da sua terra. Então saiba que não há aí quem se ponha ao lado de Margarida, em falar e escrever. Esse homem por quem elas pedem... - e, interrompendo-se - É verdade, ó Miguel - disse para o criado - vai dizer que ficou entregue, anda.
Depois do Miguel se retirar, Joana continuou:
— Esse homem por quem pede, foi mestre delas. Pelos modos era pessoa que teve do seu; mas hoje está quase a pedir. Para aí veio, e aí tem vivido. As raparigas do Meadas, que são dois corações de anjos - lá isso são - têm-no socorrido sempre. Coitadas! Não, eu devo dizer o que é verdade, o seu Pedro leva uma mulher como se quer; mas olhe, quem levar a Margarida, não vai mais mal servido. Este pobre homem tem-lhe ensinado, em paga, a ler e a escrever, que é um primor, segundo dizem. A Margarida principalmente; porque pelos modos, a Clarita tem menos paciência . Mas, a Margarida?... até cá o Sr. João Semana o diz, pode-se ouvir. Agora até ela dá lição em casa. Não sabia? Pois dá. Ora, o tal pobre de Cristo está a morrer, e, segundo diz o patrão, não deita o mês fora. As raparigas então, credo! Isso é um cuidado por aí além, nem que fossem filhas. Mas o que eu não sei é se o Sr. João lá irá hoje. Fica-lhe tão longe do seu giro.
— Mas há de deixar o homem assim?
— Então? Cada um faz aquilo que pode, que a mais não é obrigado. Olhe... sabe o que me lembra? Por que não vai o menino lá? Não diz que quer ajudar o Sr. João Semana? Pois aí tem.
— Para me ficar depois com zanga.
— Credo! Zanga, não; eu só dizia que... Demais, isso não lhe rende cinco réis. Bem vê o que ela diz: A consciência é que paga. Ora, eu bem sei que as pequenas quiseram pagar, quiseram; cá o patrão é que não deixou. Não sei se fez bem, porque afinal... elas têm por onde paguem. Mas vá, vá. Além de que...
— Eu por mim vou; não me custa; mas se o seu amo se ofende?
— Não, não ofende; amanhã lá irá. Demais, as raparigas são agora quase da família do menino; é natural que o procurem primeiro.
— Pois então nem espero que ele acorde. Você diz-lhe...
— Sim, sim: não tenha dúvida; eu cá lhe digo.
E, chamando outra vez Daniel, que ia a retirar-se, continuou:
— E então, olhe. Também pode fazer-nos ainda outro favor. Eu tenho, desde esta manhã, um recado para o Sr. João Semana ir à casa do João da Esquina, lá do seu vizinho da tenda. Não lho dei, porque enfim... hoje ficava-lhe bastante longe, e, aqui para nós, não andam muito bem em dia as contas com o tendeiro; como ao menino lhe fica perto da casa, se não lhe custasse, ia por lá.
— Também irei, o ponto está em que o homem me queira.
— Se não quiser, que mande fazer um de encomenda. Era o que faltava! Já vê que eu não tenho nenhuma má vontade contra o menino, até lhe dou freguesia.
Daniel agradeceu os dois fregueses que a velha Joana lhe cedera, com poucos auspícios de lucros, e saiu sem esperar que o seu velho colega acordasse.
A pressa com que Daniel saiu e a facilidade em aceder à proposta de Joana, tinha um motivo. E aí estamos nós para o explicar, e referimo-nos outra vez ao caráter do nosso herói.
A carta de Margarida falara-lhe à imaginação. Achou-a tão singular, na sua simplicidade, por ser escrita por uma rapariga da aldeia, que não pôde eximir-se de fantasiar um tipo de romance, o qual logo suspirou por conhecer.
Segundo as instruções de Joana, Daniel pôde, dentro de um quarto de hora, achar-se à cabeceira do enfermo, para quem se pedira o socorro de João Semana.
Mas, contrariamente ao que esperava, foi Clara e não Margarida que ele encontrou ali.