Enfim, chegou João Semana ao lugar, onde se erguiam os seus solares.
A égua saudou a aparição dos telhados domésticos com a mais melodiosa das suas emissões de voz.
O próprio João Semana não foi insensível à perspectiva, que o dobrar do último cotovelo de uma rua tortuosa lhe patenteou, porque o seu estômago tinha também necessidades que, como todos os outros, manifestava. Ao aproximar-se, recebeu, porém, uma desagradável impressão.
Avistou encostado à porta da casa o criado de uma freguesa sua, o qual provavelmente vinha requisitar-lhe a assistência e talvez com toda pressa. Tais estorvos, à hora do jantar, eram da maior impertinência para João Semana. Doente que lhe quisesse fazer a vontade, não devia adoecer a hora tão crítica.
O seu pressentimento saiu verdadeiro. Ainda ele se não desmontara, e já o criado que o esperava, lhe dizia, com grande impaciência do facultativo:
— A Sr.ª D. Leocádia mandou-me esperar por V.S.ª para lhe pedir o favor de ir, logo que chegasse, à casa dela.
— Quem está lá doente?
— Não sei dizer a V.S.ª
— Pelo costume é toda a gente. Todos se queixam, pelo menos, quando eu lá vou. E... vamos a saber, e é de pressa?
— Julgo que sim, senhor, visto que me mandaram esperar.
— Isso não tira. Seria para se verem livres de ti, e parece-me que têm razão.
— Ora, isso é graça.
— É graça, é, mas... Vamos lá ver o que me quer a Sr.ª D. Leocádia. A falar a verdade... a esta hora... Valha-me Deus, valha. - E voltando-se para o criado pequeno, que viera ajudá-lo a desmontar, continuou suspirando:
— Deixa estar, Miguel, deixa estar. Eu...como assim, não me desmonto. Torno a sair.
Mal acabara de dizer estas palavras, correu-se uma vidraça do andar superior, e a cabeça de uma velha criada, convenientemente armada de largo pente de tartaruga, assomou à janela. esta aparição foi logo seguida das seguintes palavras, muito açucaradas:
— Ouviu, Sr. João Semana? Não vá, sem primeiro subir.
— Pois que há?
— Tenho que lhe dizer.
— Diga então daí.
—Ora essa! Não é maneira de falar a que diz. Suba, se faz favor, suba primeiro.
— Mas essa senhora que espera?
— É um instante só.
— Valha-a Deus! - disse João Semana, apeando-se e preparando-se para obedecer à criada. Já do portal, voltou-se para o mensageiro do recado, dizendo-lhe: - Espere um bocadinho, que eu vou já.
— Nada, nada - acudiu de cima a criada - Pode estar fazendo falta às senhoras. É melhor ir, que o Sr. João Semana vai já também.
— Mas... - quis objetar o criado.
—Vá, vá. Basta o tempo que se demorou já aqui, e sem precisão, porque eu cá daria o recado. Diga em casa que já o Sr. João está lá num momento.
Isto foi dito com certo tom intimativo, ao qual o criado, habituado a obedecer, não pôde resistir. Partiu.
Logo em seguida, a expedita velha disse, em tom mais baixo, mas não menos imperioso, para o rapaz, que ficou a segurar as rédeas da égua:
— Miguel, avia-te, meu pasmado; mete essa cavalgadura na cavalariça, e anda por cima.
— Mas o patrão...
— Anda, papalvo, faze o que eu te digo.
E Miguel assim o fez.
Quando João Semana entrou na sala, onde era esperado pela criada, e ia perguntar a notícia prometida, ficou surpreendido, achando a mesa posta e uma enorme malga de sopa, exalando odoríferos e apetitosos vapores.
— Que é isto? Que foi fazer? - disse o velho cirurgião, olhando para a criada, a qual procedia azafamada aos mais preparativos para o jantar. - Então tirou a sopa, e eu tenho de sair ainda.
— Que sair? que sair? Era o que faltava. Não basta o calor que tem apanhado já? Ande lá, ande lá, que, enquanto não cair deveras doente, não há de escarmentar, já vejo.
— Mas, mulher, não viu o que eu disse àquele criado?
— Deixe lá. Daqui até a casa tem ele de parar em mais de quatro tabernas e de se demorar meia hora em cada uma, pelo menos. Verá que há de ainda chegar primeiro do que ele. Vamos, vamos. É jantar.
— Se eu nem mandei desaparelhar a égua!
— Alguém teve esse cuidado. Ande, que o caldo arrefece.
— E aquelas senhoras que tem pressa?
— Ora adeus! Ainda não conheces aquela gente? Fervem em pouca água. Sempre assim foram. Afinal verá que há de passar de alguma enxaqueca de D. Leocádia, algum flato de pequena, ou uma indigestão do procurador; e ainda acredita naquilo!
Evidentemente João Semana ia-se deixando convencer. Aproximara-se pouco a pouco da cadeira, hesitando ainda na aparência, mas no íntimo resolvido já.
Ia enfim a sentar-se, quando a criada o interpelou de novo, exclamando:
— Então que é isso? Assim mesmo como está? Nem muda e fato?
— Para quê?... Não estou com tantos vagares...
— Não, então, se é para comer de afogadilho, mais vale fazer primeiro a visita. Assim nem lhe presta o que come. Eu guardo o jantar então, visto isso.
Joana - era o nome a criada - bem sabia que tal proposta não podia já ser recebida por João Semana, cujo apetite se irritara com as exalações da sopa; foi a razão pela qual ela se mostrou tão pronta em reunir a ação às palavras, retirando da mesa o serviço.
O êxito desta tática foi completo.
João Semana impediu-a, dizendo:
— Deixe ficar, já agora deixe ficar. Também para me vestir não é preciso muito tempo.
E, depois destas palavras, descalçou-se, enfim, os pés em uma chinelas, que tinham sido botas, pôs-se sem cerimônia em mangas de camisa, sentou-se à mesa, e rompeu um ataque em forma contra a volumosa e apetrechada tigela, que tinha defronte de si.
A cozinha de João Semana era de um caráter portuguesíssimo, e eu, ainda que me valha a confissão os desagrados de alguma leitora elegante, francamente declaro aqui que, para mim, a cozinha portuguesa é das melhores cozinhas do mundo.
Dou razão nisto a João semana.
As combinações extravagantes das cozinhas estrangeiras - galicismos culinários, por exemplo - repugnavam-lhe tanto ao estômago, como aos ouvidos, mais pechosamente sensíveis dos nossos severos puritanos, a outra qualidade de galicismos.
Queria-se ele com a carne de porco bem assada e o arroz do forno açafroado - esses dois importantes elementos de gozo para os paladares portugueses; queria-se com o prato clássico da orelheira de porco, e até com aquele outro prato tão castiço como qualquer período de Fr. Luís de Souza - prato que valeu aos portuenses um epíteto gloriosamente burlesco; queria-se com todas estas iguarias, quase desterradas das mesas modernas, de preferência aos manjares exóticos, cuja nomenclatura tem a propriedade de fazer ignorar ao conviva o que lhe dão a comer.
Por isso, João Semana, nas raras vezes que vinha ao Porto, era freguês certo das mesas do Rainha, as únicas que mantêm, sem mescla de estrangeirices, as velhas tradições nacionais.
Em Portugal, terra de lhaneza um tanto rude, mas não afetada, o dono da casa não costumava dantes experimentar a imaginação dos seus convivas com enigmas culinários.
Não havia cá a usança de se dar a qualquer pastel ou empada o nome de um general do exército; a qualquer açorda o de um ministro célebre; a qualquer doce balofo e insípido o de um poeta da moda.
Este costume, graças ao qual parece que os modernos Vatéis misturam às vezes aos ingredientes dos seus tachos e caçarolas um pouco de sal da sátira, era desconhecido entre nós.
Menos espirituosa, porém mais filosófica do que a nomenclatura culinária da moda, a nossa, a tradicional, realizava o desideratum a que todas as nomenclaturas aspiram - o de valerem por definições.
Se um conviva tinha a curiosidade de perguntar ao seu Anfitrião o que continha este ou aquele prato, uma só resposta o satisfazia; era um frango guisado, um peru recheado, uma língua de vaca afogada... coisas que toda a gente entendia logo. Hoje, a primeira resposta é um nome francês bárbaro, absurdo, que, contra as promessas da gramática, não dá a conhecer a coisa, nem as suas propriedades; e por isso uma segunda pergunta é inevitável; a não querer cada qual resignar-se a comer o que não sabe o que é - tormento insuportável.
Hoje, época de programas, inventaram-se os programas dos jantares à imitação dos dos concertos, dos deputados e dos ministros. Com oito dias de antecipação publica-se o elenco de um banquete, para que cada qual procure decifrar o que vai comer, e estude a maneira como se come.
João Semana é que nisto, como em tudo mais, não queria saber de modas.
E senão vejam-no desta vez esgotar a tigela avolumada de substancial caldo de abóbora, aviar a formidável posta de carne cozida, com presunto, acompanhando-a com o indispensável arroz, salada de alface e azeitonas; atacar com igual denodo, uma porção de roast-beef, não revendo sangue sob a faca, à moda inglesa, mas portuguesmente assado, e como estou convencido assavam os seus carneiros aqueles heróis da Ilíada; tudo isto acompanhado de excelente vinho palhete, o qual ele ingeria aos copos de meio quartilho; em seguida uma carregação de pêras de amorim, sem conta peso, nem medida...
Durante o jantar não estivera calado João Santana.
Cada prato sustentara-lhe uma reflexão crítica, um discurso laudatório, ou um anedota, que fazia rebentar de riso a Sr.ª Joana.
Ao descobrir o prato de carne assada, exclamou João Semana em tom de satisfação manifesta:
— Que tentação me desperta este terceiro inimigo da alma!
A criada riu-se, mas observou:
— Não diga isso; Santo Antônio?
— O quê? Então você não sabe o que disse aquele frade, quando estavam a jantar? Nos conventos era costume, enquanto se comia... - Ó Joana, deixe-me ver esse limão - ocupar-se algum frade com leituras devotas . - E vá-me deitando aí mais vinho. - Um dia, a comunidade escutava um desses reverendo... - O diabo desta faca não corta nada... - um sermão sobre os perigos aos quais os viventes andam sujeitos, neste vale de lágrimas. - Olhe, chegue para aqui essas azeitonas. - Vede, irmão, dizia o tal frade... - Este ano as batatas não foram grande coisa... - vede como é difícil fugirmos às tentações dos três grandes inimigos da alma. - Ó Joana, o padeiro está servindo mal: não tem senão côdea o pão. - O mundo e seus encantos perigosos; o diabo e seus poderes maléficos, e a carne, ai meus irmãos... e a carne e as suas tentações mágicas. - Chegando a este ponto, o frade pousa o livro, suspira, estende o prato ao seu vizinho fronteiro, dizendo: "Tão fortes são, que nem lhes resisto eu, pobre pecador; uma posta desse terceiro inimigo, que tão bem assado está".
Gargalhada da criada, e vitória formal de João Semana sobre o inimigo em questão.
À sobremesa o mesmo sistema. A pêra de amorim atraiu um elogio do facultativo e mereceu as honras de um caso.
— Excelente fruta! disse João Semana, ao comer a duodécima. Tinha razão aquele frade, que do púlpito dizia: "Ó meus amados ouvintes, que miserável é a condição humana! Vede como a desgraça do mundo veio de uma má tentação. Eva perdeu-nos por uma maçã! Se ao menos fosse por uma pêra, meus fiéis ouvintes, ainda se poderia desculpar, mas por uma maçã!"
— Ora! Essa é sua, Sr. João Semana - disse Joana rindo. - O frade havia de dizer semelhante coisa! Pois olhe, aqui está quem se perderia mais depressa por uma maçã, - acrescentou ela, pouco depois, e preparando o café.
— Bem! - disse João Semana, ao concluir a sua refeição. - Estou como um abade! O pior é ter agora de sair para ir visitar a Sr.ª Leocádia.
— Sair, já! Isso tem tempo - acudiu a criada.
— Como? Pois ainda havia de as fazer esperar mais?
— Descanse ao menos um bocado. Está costumado a passar pelo sono, e, se o não faz, fica doente para todo dia.
— Que remédio senão ter paciência!
— É um bocadito mais.
—Nada, nada, não pode ser. Vou sair já - insistiu João Semana, procurando porém uma posição mais cômoda, com grave risco da resolução que exprimia. Joana percebeu este movimento e previu o que sucederia, se conseguisse entreter o amo cinco minutos mais. Não hesitou.
— Ainda se fosse para outra parte, não digo que não; mas para casa da D. Leocádia!... Eu já sei o que querem dizer aquelas pressas. A D. Leocádia esta manhã, provavelmente, abriu a boca três vezes ou espirrou duas, e por isso imagina já que está a morrer. Louvado seja Deus, nunca vi quem tenha mais medo de adoecer; uma coisa assim! Não é senhora de meter um bocado de pão na boca, sem perguntar ao cirurgião se lhe poderá fazer mal. Pois não se lembra daquela vez que o mandou chamar, porque tinha deixado de noite, por esquecimento, uma açucena no quarto e pela manhã julgou que estava envenenada?
— É verdade - dizia João Semana, fechando os olhos e bocejando. - Não era açucena, era uma bela... há! há! há!... - isto foi um bocejo que o interrompeu, e com voz já mal percebida concluiu depois: - era uma beladona.
— Ou isso.
Joana, espiando como médico atento, estes sintomas, prosseguiu.
— Esta gente parece de vidro. A filozinha da pequena é outra que tal. É uma pena que tal. É uma pena, que qualquer ventinho leva. E dizem bonita aquilo! Lá na minha terra chamava-se bonito quem era sadio e tinha boas cores.
— Você está agora como... aquele frade que,... - tentou dizer João Semana mas não concluiu. Tomou-o sono profundo, denunciado dentro em de pouco tempo, por um ruidoso ressonar. Joana escutando-o, aproximou-se nos bicos dos pés, examinou-lhes os olhos, e vendo-os cerrados, sorriu, e dizendo a meia voz:
— Sempre caiu! Agora tem para uma hora pelo menos. E fechando as janelas, deixou o amo ressonando na mesma cadeira de braços que adormecera.