O GATO FELIX

I — A HISTORIA DO GATO



NARIZINHO não poude salvar o principe porque quando chegou ao ribeirão do pomar já não o encontrou alli. Certa de que elle se havia salvo a si proprio, voltou correndo para casa, ansiosa por conhecer as aventuras do gato Felix.

Narizinho chegou, botou o gato no collo e disse:

— Você tem que me contar sua vida inteirinha, sabe?

— Pois não, respondeu o gato. Mas só sei contar historias de noite. De dia perdem a graça.

— Nesse caso vá dar um passeio e quando for de noite esteja aqui.

O gato sahiu, passeou pelo sitio inteiro, caçou tres ratos e de noite voltou. Tia Nastacia accendeu o lampeão da sala e disse: "E' hora, gente!" Todos vieram sentar-se em redor do illustre personagem; dona Benta sentou-se na sua cadeirinha de pernas serradas; Narizinho e Pedrinho sentaram-se na rêde; Emilia foi para o collo da menina.

Até o visconde de Sabugosa quiz ouvir as historias. Narizinho teve dó do coitado; espanou-lhe o bolor e o botou num canto da sala, dentro duma lata — para que não sujasse o chão.

Logo que todos se accommodaram, Emilia disse:

— Comece, sêo Felix!

E o gato Felix começou.

— Houve em França, disse elle, um gato muito illustre, que era escudeiro do marquez de Carabás — tão illustre que não ha no mundo inteiro uma creança que não o conheça.

— Até eu! gritou Emilia. Era o tal Gato de Botas!...

— Justamente, confirmou o gato Felix. Esse gato era o Gato de Botas, escudeiro do marquez de Carabás. Fez coisas do arco da velha, como se sabe, até que se casou com uma linda gata amarella e teve muitos filhos. Esses filhos tiveram outros filhos. Estes outros filhos tiveram novos filhos, e veio vindo aquella gataria que não acabava mais até que nasci eu.

— Que bom! exclamou Narizinho. Então você é bisneto ou tataraneto do Gato de Botas?

— Sou cincoentaneto delle, disse o gato Felix, mas não nasci na Europa. Meu avô veio para a America no navio de Christovão Colombo e naturalizou-se americano. Eu ainda alcancei meu avô. Era um velhinho muito velhinho, que gostava de contar historias da sua viagem.

Emilia bateu palmas de alegria.

— Conte, conte! Conte as historias que elle contava. Conte como foi que o tal Colombo descobriu a America.

O gato Felix tossiu e contou.

— Meu avô veio justamente no navio de Christovão Colombo, que se chamava "Santa Maria". Veio no porão e durante toda a viagem não viu coisa nenhuma senão ratos. Havia mais ratos no "Santa Maria" do que pulgas num cachorro pulguento, e emquanto lá em cima os marinheiros luctavam com as tempestades, meu avô lá embaixo luctava com a rataria. Caçou mais de mil. Chegou a enfarar de rato a ponto de não poder ver nem pellinho de camondongo. Afinal o navio parou e elle sahiu do porão e foi lá para cima e viu um lindo sol e um lindo mar e bem na frente uma terra cheia de palmeiras.

— Então era o Brasil! disse Emilia. Aqui é que é a terra das palmeiras com sabiá na ponta!...

— Viu a terra cheia de palmeiras e, na praia, uma porção de indios nús.

— Nús? exclamou Emilia tapando a cara.

— Sim, nús, armados de arcos e flechas, e a olharem para o navio como se tivessem vendo uma coisa do outro mundo. Era a primeira vez que um navio apparecia por alli.

— Imaginem se elles vissem o trem de ferro... observou Emilia.

— Colombo então, continuou o gato, resolveu desembarcar e saber que terra era aquella, porque estava na duvida se seria realmente a America ou outra coisa. Entrou num bote e foi para a praia. Pulou do bote e chamou os indios.

Os indios não se mexeram do lugar, mas o cacique delles creou coragem e adeantou-se e chegou perto de Colombo.

— "Meus cumprimentos! disse Colombo, com toda a gentileza, fazendo uma cortezia com o chapéu de plumas.

— "Bemvindo seja! respondeu o indio, sem tirar o chapéu, porque não usava chapéu.

Colombo então perguntou:

— "Poderá o cavalheiro dizer-me se isto por aqui é a tal America que eu ando procurando?

— "Perfeitamente! respondeu o indio. Isto por aqui é a America que o senhor anda procurando. E o senhor já sei quem é. O senhor é o tal Christovão Colombo, não?

Colombo ficou admiradissimo da esperteza do indio.

— "Realmente, sou o tal, disse. Mas como adivinhou?

— "Pelo geito! respondeu o indio. Assim que o senhor botou o pé na praia, senti uma batida na paquéra e disse cá commigo: E' o senhor Christovão que está chegando, até aposto!

Colombo adeantou-se e apertou a mão do indio. Em seguida o indio virou-se para os companheiros lá longe e gritou:

"Estamos descobertos, rapaziada! Este é o tal Christovão Colombo que vem tomar conta das nossas terras. O tempo antigo lá se foi. Daqui por deante é vida nova — e vae ser um turumbamba damnado...

Nesse ponto da historia o visconde botou a cabeça fóra da lata e disse:

— Não acreditem! A descoberta da America não foi assim, foi muito differente. Eu li toda a historia de Colombo num livro grande de dona Benta e posso affirmar que o gato Felix está inventando.

— Não está inventando nada! berrou Emilia. Foi assim mesmo. O livro não esteve lá e não pode saber mais que o avô de sêo Felix, que esteve presente e viu tudo.

— Mas essa historia é absurda! berrou o sabio visconde. Isso é um disparate!...

— Disparate é o seu nariz! gritou Emilia, vermelhinha de indignação.

E voltando-se para a menina:

— Narizinho, porque é que você não tampa o visconde?

Narizinho achou bôa a idéa ; foi lá e tampou a lata com o visconde dentro.

Terminado o incidente, o gato Felix continuou:

— Depois disso houve muitas coisas, e mais coisas, e outras coisas, até que meu avô se casou e nasceu meu pae, e meu pae se casou e nasci eu.

— E onde nasceu? perguntou Pedrinho.

— Nasci nos Estados Unidos, na cidade de New York. As casas lá são tão altas que se chamam arranha-céus e eu nasci no quadragesimo terceiro andar do arranha-céu mais alto de todos.

— Qua-dra-ge-si-mo! murmurou Emilia. Que bonito nome! Eu, se fosse dona Benta, baptisava a Mocha de Quadragesima...

— Não atrapalhe, Emilia, deixe o gato falar, advertiu Narizinho. E, voltando-se para o gato Felix, perguntou:

— Mas essas casas arranham mesmo o céu ou é um modo de dizer?

— Arranham, sim, confirmou o gato, e ás vezes até o furam. O céu de lá é todo furadinho.

— Quem deve ficar furioso é S. Pedro, disse a boneca. Eu, se fosse elle, suspendia o céu um pouco mais para cima.

Narizinho tapou com a mão a bocca da boneca.

— Nasci num arranha-céu, continuou o gato, e criei-me na rua. Fui o gatinho mais travesso da America, o mais atropelador dos camondongos. Depois que cresci, atirei-me para cima das ratazanas com tamanha furia que quasi todas se mudaram da cidade.

Um dia me deu na cabeça viajar. Fui ao porto e vi lá uma porção de navios, uns mais novos, outros mais velhos. Escolhi o mais velho, calculando que nelle devia haver mais ratos. Entrei sem pagar passagem e fui para o porão. Assim que entrei, a rataria disparou e só pude apanhar quatro. No dia seguinte peguei dez. No terceiro dia peguei vinte. No quarto...

— Pegou quarenta! disse Emilia.

— Não, trinta e um só! corrigiu o gato. E assim durante quinze dias. No fim desse tempo estava gordo que nem um porquinho e deixei a rataria em paz. Foi nessa occasião que aconteceu o desastre.

— Que desastre?

— Espere. Estava eu comendo o ultimo rato que comi no navio, quando rompeu lá em cima um berreiro. Subi ao tombadilho para ver o que era e encontrei o capitão dizendo que o navio tinha batido numa pedra e ia afundar.

— Crédo! exclamou tia Nastacia, que estava cochilando e acordou nesse ponto. Devia ser um quadro muito triste...

— Sim, ia afundar, continuou o gato. Tinha arrebentado a prôa e estava bebendo agua que nem uma esponja. Os marinheiros corriam de um lado para outro, como doidos. Uns tomavam os escaléres, outros amarravam á cintura os salva-vidas, outros lançavam-se á agua.

Eu disse commigo: "E agora, Felix, que vae ser de ti?" Pensei, pensei, pensei e por fim tive uma idéa, A unica salvação seria fazer-me engulir vivo por algum dos tubarões que rodeavam o navio, com as boccas abertas e aquellas dentuças que mais pareciam serras.

— Crédo! exclamou outra vez tia Nastacia, fazendo o signal da cruz. E' por essas e outras que nunca hei de sahir do meu cantinho...

— Tive essa idéa, continuou o gato, e tratei de pol-a em pratica. Escolhi o tubarão maior de todos e quando elle passou perto de mim, dei um pulo e cahi, como pilula, bem no fundo da garganta delle.

— E não se arranhou? disse Emilia. Não esbarrou nalgum dente?

— Nada! Cahi bem na campainha do tubarão, e me agarrei nella e fui entrando por aquelle corredor vermelho afóra até chegar ao estomago.

— Era grande?

— Tinha o tamanho desta sala, respondeu o gato com o maior caradurismo.

Nesse ponto o visconde empurrou a tampa da lata, botou a cabeça de fóra e gritou:

— Não acreditem! E' mentira! Nem baleia tem estomago desse tamanho. Alem disso é impossivel a um gato permanecer vivo num estomago de tubarão.

— Impossivel porque, sêo Embolorado? Não se lembra da historia que dona Benta contou do propheta Jonas, que "permaneceu" uma porção de tempo dentro da barriga de um peixe?

— Sim, disse o visconde. Mas Jonas era propheta.

— Jonas era propheta e "sêo" Felix é quadragesimo. Dá na mesma.

Todos acharam que Emilia tinha razão.

— Fiquei lá muito sossegado da minha vida, continuou o gato, mas vi logo que não podia morar alli por muito tempo. Não havia ratos — e gato não sabe viver onde não ha ratos. Tinha que sahir, mas como? Sahir era cahir nagua e morrer afogado. Como resolver o problema?

— Muito simples, disse Emilia. Era só fazer uma canoinha e entrar nella e sahir remando...

— Cala a bocca, Emilia! interveio Narizinho. Quem está contando a historia é o gato Felix e não você.

O gato continuou:

— O caso era difficilimo, e eu estava a pensar nelle quando vi entrar no estomago da féra uma enorme isca com anzol dentro. Mais que depressa fisguei o anzol, bem fisgado, na paquéra do monstro.

Assim que elle sentiu a dor da fisgada, poz-se a corcovear como um burro bravo que domador está amansando. Corcoveou, corcoveou, corcoveou até que não poude mais e foi morrendo.

Passou-se meia hora sem acontecer nada. O tubarão estava bem morto e já começando a esfriar. Nisto vi uma restea de luz e uma ponta de faca apparecendo. Encolhi-me bem encolhido para me livrar da faca e comprehendi que estavam abrindo a barriga do peixe. Não esperei por mais. Dei um pulo para fóra e cahi no meio dum grupo de marinheiros, bem dentro dum navio!...

Os marinheiros ficaram assombradissimos de verem sahir um gato vivo da barriga de um peixe e só sossegaram quando lhes contei toda a minha historia. O capitão olhou para mim, alisou as barbas e disse:

"Para onde pretende ir? Meu navio está de rumo para a Inglaterra e poderei desembarcar você lá.

— "Muito obrigado, respondi. Mas o paiz que eu procuro não é esse.

— "Será a França?

— "Não!

— "Será a Allemanha? a Suecia? a Turquia? a Arabia? a Patagonia?

— "Nada disso. A terra que eu procuro é lá onde o demo perdeu as botas. Quero encontrar essas botas.

O capitão julgou que estivesse a mangar com elle e me pregou tamanho ponta-pé, que fui parar no porão.

Todos deram gostosas risadas e tia Nastacia observou:

— Isso é invenção de gente sem serviço. Esse lugar nunca existou.

— Como nunca existiu, se foi lá que o demo perdeu as botas? replicou Emilia. Eu acho que sêo Felix tem toda a razão e mais vale descobrir esse lugar do que descobrir a America. Continue, sêo Felix.

O gato continuou:

— Fiquei no porão até que o navio entrou num porto. Desembarquei e fui andando por um caminho muito comprido. De repente appareceu uma velha, muito velha e coróca, de porretinho na mão.

— Vae ver que era uma fada, cochichou Emilia ao ouvido de Narizinho.

— Cheguei-me para a velha e perguntei-lhe:

— "A senhora poderá dizer-me onde fica o lugar onde o demo perdeu as botas?"

A velha admirou-se da pergunta; arregalou os olhos, abriu uma bocca de bagre sem um só dente nas gengivas e respondeu:

— "Não sei, gatinho. Mas se você for andando, andando, andando sem parar, aposto que um dia chega a essa terra."

Acceitei o conselho da velha e fui andando, andando, andando até que encontrei um velho de grandes barbas brancas, chamado sêo Maneco. Era um sabio que sabia o nome de todos os bichinhos da terra e de todas as pedrinhas do chão e de todos os mattinhos do matto. Com certeza havia de saber tambem onde ficava a tal terra. Cheguei-me para elle e perguntei:

— Encontrei outra velha, muito velha, e perguntei: "A senhora..."

— Etc., etc., disse Emilia. E que que ella respondeu?

O gato Felix, ainda mais desapontado, continuou:

— Ella respondeu: "Esse lugar não existe, gatinho. O demo nunca teve botas. Você não sabe que o que elle tem são cascos?"

— E ahi? indagou Emilia, que estava achando aquella historia muito sem geito.

— Ahi eu... eu... parei de procurar a tal terra e fui cuidar de outra coisa.

Desta vez quem desapontou foram os ouvintes. Dona Benta olhou para Narizinho, tia Nastacia olhou para dona Benta, Pedrinho olhou para o forro. Só Emilia teve coragem de olhar para o gato. Arrebitou o nariz de retroz, fez um muxoxo de pouco caso e disse:

— Não valeu a pena vir de tão longe para contar uma historia tão sem pé nem cabeça. Eu, que nunca sahi daqui, sou capaz de contar uma muito mais bonita.

— Pois então vamos dormir, disse dona Benta, levantando-se, e quem conta a historia de amanhã vae ser a Emilia.


II — A HISTORIA DA EMILIA


Na manhã seguinte tia Nastacia appareceu dizendo que havia sumido um pinto do gallinheiro. Eram doze e só encontrara onze.

— Que será? disse dona Benta.

— Deve ser alguma raposa que anda rondando por aqui ou algum gato vagabundo. E que pena, sinhá! Sumiu justamente o mais bonito, um carijózinho...

Logo que os meninos souberam do caso, Pedrinho disse:

— Vou armar uma ratoeira, mas o melhor é consultarmos o visconde. Depois que foi embrulhado num folheto do Sherlock Holmes, ficou tão experto que é capaz de descobrir o ladrão.

Foram falar com o visconde e contaram-lhe tudo. O visconde deu uma risadinha de detective e disse:

— Deixem o negocio por minha conta. Irei examinar o local do crime e tomar as minhas providencias.

E foi. Foi para o gallinheiro e passou todo o dia a examinar a poeira do chão, a catar os pellinhos que havia nelle, a conversar com os paes da victima — um lindo gallo carijó e uma gallinha sura.

Emquanto isso Emilia pensou, pensou, pensou e inventou a historinha que ia contar de noite. Quando chegou a noite, e tia Nastacia accendeu o lampeão e disse: "E´ hora!" a boneca entrou na sala, muito esticadinha para traz, toda cheia de si.

— Era uma vez... foi dizendo.

— Espere, Emilia, advertiu Narizinho. Não vê que o visconde, nem o gato Felix ainda não vieram?

Nisto chegou o gato, e sentou-se no collo de dona Benta. Depois appareceu o visconde, e entrou para dentro da lata.

Emilia começou de novo:

— Era uma vez um rei...

— Eu já sabia que vinha historia de rei, interrompeu Narizinho. Emilia vive com a cabeça entupida de reis e principes e fadas...

A boneca não fez caso e continuou:

— Era uma vez um "rei", um "principe" e uma "fada", que moravam juntos num lindo palacio de crystal, na beira do lago mais azul de todos. Era uma belleza esse palacio, todo cheio de fios de ouro que quando dava o vento iam para lá e vinham para cá. E quando dava o sol os crystaes e os ouros brilhavam tanto que quem olhava sentia logo uma tontura e precisava se agarrar em qualquer coisa para não cahir.

E o principe foi e disse:

— "Quero me casar, meu pae, mas as moças daqui não são bonitas, nem bôas de coração. Vou procurar uma pastora bem pobrezinha, mas que tenha coração de ouro.

— "Vae, meu filho, disse o rei, mas leva comtigo a fada do palacio. Sozinho, não te deixo ir.

O principe chamou a fada, virou a fada numa bengalinha e virou-se a si mesmo numa formiguinha.

— Eu já sabia que vinha historia de virar, disse Narizinho. Sem reis e sem viradas Emilia não passa...

— Virou numa formiguinha, proseguiu Emilia, e sahiu andando por uma estrada muito comprida, com aquella bengalinha na mão. Andou, andou, andou até que encontrou uma velha.

— Você caçoou de tantos velhos que havia na historia do gato Felix mas vae indo pelo mesmo caminho, disse a menina.

— Não me atrapalhe! exclamou a boneca. Na minha historia só tem esta velha. Encontrou uma velha e disse:

— "Velha dugudéia, diga-me, se for capaz, se ha por aqui uma pastora assim, assim, assim e de bom coração.

— "Ha muitas pastoras por aqui, respondeu a velha, mas se teem bom coração, não sei. Só experimentando.

— "E como se experimenta o coração de uma pastora?

— "Virando num pobre, bem pobre, e indo pedir-lhe esmola.

A formiguinha virou logo num pobre bem pobre e foi pedir esmolas ás pastoras. Chegou-se para a primeira, que estava fiando na roca emquanto o seu rebanho pastava, e disse:

— "Gentil pastora, uma esmolinha por amor de Deus! Ha tres annos que não como, nem durmo, e se não me dás um pão, morro já neste instante.

A pastora deu-lhe uma pedra, dizendo:

— "Aqui tens um pão muito gostoso.

O pobre pegou na pedra, olhou, olhou, olhou e disse:

— "Que todos os pães que comas sejam gostosos como este! e foi andando o seu caminho.

Dalli a pouco a pastora sentiu fome e foi comer o pão que trazia no bolso e viu que tinha virado pedra, e quebrou todos os dentes e morreu...

Mais adeante o pobre encontrou outra pastora e pediu outra esmolinha. A pastora deu-lhe um osso, dizendo:

— "Leve este pão que é muito gostoso.

— "Obrigado, respondeu o pobre, e que todos os pães que comas sejam gostosos como este!

E foi andando. A pastora logo depois sentiu fome e foi comer o pão que estava na sua cestinha e viu que tinha virado osso. Essa pastora não morreu de fome, como a primeira, mas teve de passar a vida inteira feito cachorro, roendo ossos. Tudo que ella pegava para comer virava logo em osso.

O pobre foi andando, andando, andando e encontrou uma terceira pastora. A coitadinha parecia ainda mais pobre do que elle e estava chorando.

— "Porque choras, ó gentil pastora? perguntou o pobre.

— "Choro porque minha madrasta é muito má e me bate todos os dias. Põe-me neste lugar, guardando estes porcos immundos, e não me dá comida, a não ser este pão bolorento e tão azedo que até preciso tapar o nariz para comer.

— "Pois se eu pilhasse esse pão, disse o pobre, dava um pulo de alegria, porque estou morrendo de fome e só encontrei pedras e ossos neste paiz de pastoras.

A triste pastorinha olhou bem para elle e disse:

— "Pois não morrerás de fome. Repartirei comtigo o meu pão bolorento.

E partiu o pão bolorento em dois pedaços e deu o maior para o pobre.

O pobre agradeceu e foi andando, e a pastorinha começou a comer o seu pedaço de pão bolorento. Tapou o nariz e deu a primeira dentada. Mas viu logo que o pão tinha virado no doce mais gostoso do mundo! Comeu, comeu, comeu quanto quiz e quanto mais comia, mais sobrava. E voltou para a casa pulando de alegria e palitando os dentes.

A má madrasta percebeu a felicidade da pastorinha e disse:

— "Hum! Estou vendo que você comeu alguma coisa gostosa!

— "Não comi nada! respondeu a coitadinha tremendo de medo. Só comi o pão que a senhora me deu.

A madrasta agarrou nella e cheirou-lhe a bocca e ficou furiosa e disse:

— "Sua bocca está cheirando ao doce mais gostoso do mundo, e como me enganou, vou matar você.

E foi buscar a faca da cozinha, que era deste tamanho!

A pastorinha, sabendo que ia morrer, poz-se a rezar e disse lá no fundo do coração:

— "Pobre encantado, que transformaste o pão bolorento em doce, soccorre-me!

Nem bem acabou de dizer isso, a porta se abriu e o pobre entrou.

— "Esconde-te, disse-lhe a pastorinha, que “ella" vem vindo com uma faca deste tamanho!

O pobre escondeu-se atraz dum armario e logo depois a madrasta entrou com o facão. Entrou e disse:

— "Reze depressa, que vae morrer.

— "Não me mate! disse a pastorinha, tremendo como varas verdes. Não me mate, porque estou innocente!

Mas a má madrasta não quiz saber de nada e avançou para a coitadinha com a faca erguida. E a faca foi descendo sobre o peito da victima e a ponta já ia encostando nas suas carnes, quando o pobre veio por traz da madrasta e agarrou-a pelo pulso.

— "Miseravel! exclamou elle. Quem merecia morrer eras tu, mas vou te virar num horrendo sapo de cidade.

Nesse ponto Narizinho a interrompeu.

— Porque, sapo de cidade, Emilia? Qual é a differença entre sapo do matto e sapo de cidade?

A boneca explicou:

— E' que nas cidades ha muitos moleques que gostam de judiar dos sapos, de modo que sapo de cidade padece mais.

Narizinho voltou-se para dona Benta.

— Já reparou, vóvó, como Emilia está ficando intelligente? Não é mais aquella burrinha de dantes, não..

Emilia continuou:

— E immediatamente a madrasta virou no sapo mais feio do mundo e sahiu pulando, pulando, pulando e foi para uma cidade onde havia mais de cem moleques nas ruas.

Então o pobre disse para a gentil pastorinha:

— "Adeus, gentil pastora! Vou-me embora para longes terras.

— "Que pena! disse a pastora. Porque não ficas morando aqui commigo? Como és muito pobre, eu poderia trabalhar para ti e comprar-te uma roupa nova e uma cartola.

— Interesseira é que era ella! observou tia Nastacia. Sabia que o pobre era dos taes que viram pão bolorento no doce mais gostoso do mundo. Eu, se fosse o pobre, desconfiava...

— Pois o pobre não desconfiou, disse Emilia. Elle não tinha maldade nenhuma no coração; em vez de desconfiar, beijou a mão da pastorinha e disse:

— "Pois acceito, — mas com uma condição!...

— "Dize qual é, ordenou a pastora.

— "E' casares commigo!

A pastorinha não vacillou um só instante e acceitou a proposta. E no outro dia veio o padre e se casaram.

— "Agora, disse o pobre, vamos sahir os dois pelo mundo para tirar esmolas.

E sahiram. E foram andando, andando, andando até que chegaram ao palacio do rei.

Bateram na porta e entraram e foram falar com Sua Majestade.

O rei estava, de corôa na cabeça, sentado no seu throno de ouro e marfim, muito triste porque não sabia noticias do amado principe.

— "Que é que queres, senhor pobre? perguntou.

— "Quero dar a Vossa Majestade uma boa noticia.

O rei arregalou os olhos, cheio de esperança e disse:

— "Pois fala, e se a noticia for mesmo boa, te darei os mais ricos presentes.

Então o pobre contou que tinha encontrado o principe e que elle já se tinha casado com a moça de melhor coração do mundo inteiro.

— "Bravos! exclamou o rei. E quando esse amado filho me apparece por cá?

— "Eil-o! exclamou o pobre, virando-se outra vez em principe. E eis minha amada esposa, disse, batendo com a bengalinha no hombro da pastora e virando-a na mais linda princeza de todas que existiram, existem e existirão.

O rei ficou alegrissimo e beijou a princeza na testa e disse para o principe:

— "Muito bem! Só resta agora que fiques rei. Adeanta-te, meu filho e vem sentar-te neste throno, ao lado de tão formosa princeza. Deste momento em deante o rei és tu, e ella a rainha. Já estou cansado e até enjoado de ser rei. Amen.

Assim terminou Emilia a sua historinha, inventada por ella mesma, sem ajutorio de ninguem, nem tirada de nenhum livro.

Todos bateram palmas e dona Benta disse para tia Nastacia:

— Bem razão tem você de dizer que o mundo está perdido! Pois não é que essa boneca aprendeu a contar historias que nem uma gente grande?

— Mas eu não gostei, miou o gato Felix, que andava se implicando com a boneca. Historias de virar são muito faceis. Assim que apparece uma difficuldade, isto vira naquillo e prompto!

— Não acredite, Emilia! disse Narizinho. A historia que você contou está muito boa e merece gráo dez. Para uma boneca de panno, e feita aqui na roça, não podia ser melhor.

Emilia ficou toda ganjenta com o elogio e botou a lingua para o gato Felix.

O relogio da sala bateu dez horas.

— Vamos dormir, creanças, disse dona Benta, e amanhã quem vae contar uma historia é o visconde.


III — O SHERLOCK


No dia seguinte tia Nastacia veio dizer que havia desapparecido outro pinto. Dona Benta ficou muito aborrecida; viu que naquelle andar lá se ia a ninhada inteira.

— E Pedrinho? indagou. Que é que Pedrinho diz a isto?

— Sêo Pedrinho e o visconde andam lidando lá no gallinheiro, mas até agora não descobriram nada.

Pedrinho estava naquelle momento conversando com o visconde no quintal.

— Na minha opinião, dizia elle, isto é alguma raposa que vem visitar o gallinheiro de noite.

— Pois eu acho que não é raposa nenhuma, disse o novo Sherlock Holmes. Examinei tudo muito bem examinado e encontrei um pello de animal que não é raposa, nem gambá, nem ratazana.

— De que é então?

— Ainda não sei. Tenho que examinar esse pello no microscopio e preciso que você me faça um microscopinho.

— Vóvó tem um binoculo. Quem sabe se serve?...

— Ha de servir. Vá buscal-o.

Pedrinho foi e trouxe o binoculo de dona Benta. O Sherlock poz o pellinho defronte do binoculo e examinou-o attentamente. Depois disse:

— Acho que estou na pista do ladrão...

— Quem é?

— Não posso dizer ainda, mas é um bicho de quatro pernas, da familia dos felinos. Vá brincar e me deixe aqui só. Preciso "deduzir" e pode ser que de noite já esteja com o problema resolvido.

Pedrinho foi brincar, deixando o Visconde mergulhado em profunda meditação.

Estava um dia muito lindo de sol quente. Dona Benta sentou-se na sua cadeira de pernas serradas, para acabar um vestido de Narizinho, e a menina ficou ao lado della para enfiar a agulha e virar a machina.

Emilia tinha ido para a varanda, balançar-se numa pequena rede especialmente armada para ella num canto. A boneca estava pensando na vida, com idéas de virar escriptora de historias. Nisto o gato Felix, que ia passando, resolveu parar. Sentou-se sobre as patas trazeiras e cravou os olhos na boneca, emquanto sua cauda ia desenhando preguiçosos "SS" no ar.

— Que tanto olha para mim? disse de repente Emilia. Nunca me viu?

O gato fez um riso de ironia e miou:

— Tão importante assim, nunca! Parece que está mesmo convencida de que é uma grande contadeira de historias.

Emilia deu um balanço na rede e murmurou:

— A inveja matou Caim!...

O gato mordeu os labios replicando com ar de desprezo:

— Era só o que faltava, o celebre gato Felix ter inveja duma boneca de panno feita por uma negra velha...

— A inveja matou Caim! repetiu a boneca. Você está mas é damnado com o successo da minha historinha.

— Historia mais feia e sem graça nunca vi...

— Mas todos gostaram. Até Narizinho, que sabe todas as historias dos livros.

— Gostaram de dó de você. Se não gostassem, você punha-se a chorar que não acabava mais.

— Mentiroso! Eu nunca chorei nem hei de chorar, e muito menos por causa de uma simples brincadeira. Você é um grandessissimo mentiroso, sabe?

— Porque?

— Porque é! Você nem é americano, nem nasceu em nenhum arranha-céu, nem é parente do Gato de Botas, nem foi engulido por tubarão nenhum. Tudo isso não passa de potóca. Eu sei conhecer muito bem quando uma pessoa está mentindo ou falando a verdade...

O gato ficou furioso e quiz arranhar Emilia. A boneca deu um berro e chamou Narizinho.

— Que é, Emilia? disse a menina apparecendo. Que aconteceu que está tão damnadinha?

Emilia ergueu-se da rede, colerica, e apontou para o gato.

— E' esse cara de coruja que está querendo me arranhar! Já se viu que desaforo?

— E porque? indagou a menina. Porque é que vocês brigaram?

Emilia empertigou-se toda e disse:

— Elle está morrendo de inveja da minha historia e veio aqui me provocar. E como eu disse que elle não é americano, nem parente do gato de Botas, nem foi engulido por tubarão nenhum, o burro ficou damnado e quiz me arranhar. Esse hippopotamo!...

O gato virou-se para Narizinho e disse:

— Veja bem que é ella que está me insultando. Se eu sou hippopotamo, ella o que é? Uma macaca!...

Aquillo era demais. Emilia perdeu a cabeça, avançou para o gato Felix, agarrou-o pela barba e deu tal puxão que arrancou um fio.

A menina apartou os briguentos; poz o gato para fóra e deixou Emilia sozinha na varanda. E foi continuar o seu serviço na salinha de costura.

Emilia ficou falando comsigo mesma e pensando num meio de se vingar do gato Felix. Nisto appareceu o visconde.

— Senhor visconde, venha ouvir a historia da minha briga com o gato Felix.

O visconde sentou-se na rêde junto della e ouviu a historia inteira. Quando chegou no pedaço do fio de barba que Emilia havia arrancado do focinho do gato, elle disse:

— E onde está esse fio? Ando fazendo um estudo sobre pellos de animaes e teria muito gosto em examinar esse.

Emilia abriu uma caixinha, tirou de dentro o fio de barba e o deu ao visconde, dizendo:

— Leve, mas depois traga outra vez. Quero guardar esse fio como prova da esfréga que dei nesse cara de coruja...

O visconde tomou o fio e foi examinal-o com o binoculo de dona Benta.


IV — A HISTORIA DO VISCONDE


Logo que a noite cahiu tia Nastacia accendeu o lampeão da sala e disse: "E' hora, gente!"

Todos foram apparecendo e cada qual se sentou no lugar do costume. O ultimo a vir foi o visconde. Antes de entrar para a lata approximou-se de tia Nastacia e disse-lhe ao ouvido:

— Pegue na vassoura e ponha-a ao alcance da sua mão.

A negra achou exquisitissima aquella idéa e pediu explicações.

— Não posso explicar coisa nenhuma, respondeu o visconde. Mas faça o que estou mandando. Ponha a vassoura bem ao alcance da sua mão, porque no fim da minha historia é bem possivel que seja preciso "varrer" qualquer coisa...

A negra trouxe a vassoura e fez como o visconde mandou, embora não pudesse nem por sombras adivinhar quaes fossem as suas intenções.

Liquidado o caso da vassoura, Emilia disse :

— Tem a palavra o senhor visconde de Sabugosa !

O visconde ergueu-se dentro da lata, tossiu um pigarrinho e começou :

— Meus senhores e minhas senhoras !

O gato Felix espremeu uma risada ironica.

— Isso nunca foi historia, senhor visconde! Isso chama-se discurso e muito bom discurso. Pelo que vejo, ninguem nesta casa sabe contar historias...

Aquillo era indirecta para Emilia, que se remexeu toda, já damnadinha e prompta para responder. Mas Narizinho interveio e acalmou-a.

O visconde não se atrapalhou com o aparte. Limitou-se a lançar sobre o gato um olhar terrivel e a dizer :

— Não é discurso não, senhor gato! E' outra coisa, e uem vae explicar o que é, não sou eu e sim aquella senhora vassoura, que alli está ao lado de tia Nastacia...

Todos olharam muito espantados para o visconde, sem comprehenderem o que elle queria dizer com aquillo.

Em seguida o visconde recomeçou :

— Meus senhores e senhoras! A historia que vou contar não foi lida em livro nenhum, mas é o resultado dos meus estudos scientificos e criminalogicos.

— Fale menos difficil, visconde, senão ninguem o entende, exclamou Emilia.

— E' o resultado das minhas deducções, continuou o visconde. Passei duas noites em claro compondo a minha historia e espero que todos lhe deem o devido valor.

— Muito bem! exclamou Narizinho. Mas desembuche de uma vez.

Era uma vez um gato, continuou o visconde. Mas um gato atôa, um gato de roça, um gato que não valia coisa nenhuma e nascido com muito maus instinctos. Se fosse um gato sério e decente, eu teria muito gosto em o declarar aqui, mas não era. Era o que se chama — um gato ladrão.

E porque era um gato ladrão, ninguem queria saber delle. Na casa onde nasceu logo descobriram a sua má indole e o tocaram para a rua com uma boa sóva.

O gato sahiu correndo e foi morar numa casa bem longe da primeira, dizendo lá que o seu dono tinha morrido e que elle era o melhor caçador de ratos do mundo. Todos acreditaram nas palavras do mentiroso e o deixaram ficar.

Mas era tão ordinario esse gato, que em vez de se corrigir e viver vida nova, continuou com maroteiras. Na primeira noite que dormiu nessa casa foi á cozinha e roubou um pedaço de carne que a cozinheira havia guardado para o dia seguinte. Roubou e ficou quietinho, deixando que a cozinheira puzesse a culpa numa pobre negrinha e a castigasse com vara de marmello.

— Ah, eu lá! exclamou Pedrinho. Ferrava-lhe uma pelotada de bodoque, que elle havia de ver estrellas...

— Por fim, continuou o visconde, tambem nessa casa descobriram-lhe as patifarias e o puzeram no olho da rua.

Elle fugiu e resolveu mudar-se para um sitio onde houvesse muitos pintos. Achou o sitio que precisava e ficou morando lá. Mas o dono observou que os pintos estavam diminuindo, um, dois e até tres por dia, e falou á mulher que ia arranjar um cachorro policial para tomar conta do gallinheiro durante a noite.

O gato ladrão percebeu a conversa e fugiu. Andou, andou, andou até que encontrou outro sitio onde moravam duas velhas e dois meninos, um do sexo masculino e outro do sexo feminino.

— Que coincidencia ! exclamou Narizinho. Parece o sitio de vóvó...

— Escolheu esse sitio, continuou o gato, e foi entrando por elle a dentro com a maior semcerimonia deste mundo, com partes de que era um grande gato de familia nobre e que tinha nascido num paiz estrangeiro, etc.

Emilia olhou para o gato Felix.

— Deve ser algum seu parente, sêo Felix. Os traços estão muitos parecidos...

— Não tenho parentes dessa laia, respondeu o gato com orgulho. Esse gato ladrão deve ser parente mas é dalguma senhora boneca...

— Continue, senhor visconde, disse Narizinho.

O visconde tossiu outro pigarrinho e continuou :

— O tal gato ladrão ficou morando nesse sitio. Todos o tratavam com as maiores gentilezas, mas em vez de mostrar-se grato por tantas attenções, elle tratou de continuar a sua triste vida de gatuno. E foi e comeu um pinto carijó.

Neste ponto o visconde parou e olhou firme para o gato Felix. O gato sustentou o olhar do visconde e deu o desprezo.

O visconde continuou:

— Comeu esse pobre pinto, que era tão lindo, e no dia seguinte comeu outro pinto ainda mais bonito.

O gato Felix levantou-se indignado.

— O senhor visconde está me insultando ! gritou. Esses olhares para o meu lado parecem querer dizer que sou eu o tal gato ladrão !...

O visconde pulou fóra da latinha e berrou :

— E é mesmo ! O tal gato ladrão é você, seu patife ! Você nunca foi gato Felix nenhum ! Você não passa de um miseravel comedor de pintos !...

Foi um reboliço ! Todos se ergueram, sem saber o que fazer. O gato Felix, furioso da vida, berrou ainda mais alto que o visconde :

— Próve, se for capaz ! Próve que comi os taes pintos...

— Próvo e já ! urrou o visconde. Tenho as provas aqui no bolso.

Disse, e puxou do bolso dois pellinhos de gato.

— Eis as provas! Este pello eu encontrei no gallinheiro, bem no local do crime e ainda manchado com o sangue da victima. E este outro, a senhora Emilia te arrancou das fuças, sêo miseravel! Estão aqui as provas. Quem quizer pode vir examinal-as com o binoculo de dona Benta. São perfeitamente iguaes, até no cheiro. Ambos teem cheiro de gato ladrão!...

A prova era esmagadora, e tia Nastacia, passando a mão na vassoura, avançou, feito uma onça, para cima do falso gato Felix.

O gatuno deu um pulo e sumiu-se pela janella na escuridão da noite.

— Bravos ! Bravos ao visconde ! exclamaram todos. Viva o nosso Sherlock Holmes !...

— Viva! Viva!...

E fizeram-lhe uma grande festa, e deram-lhe muitos abraços e beijos. Até Emilia, que era muito envergonhada, encheu-se de coragem e o beijou na testa.

— Ahi, Emilia ! exclamou Narizinho de brincadeira. Vou contar para Rabicó...

Dona Benta tomou a palavra e disse:

— Vejam que injustiça iamos commettendo para com o pobre visconde, só porque havia embolorado e estava muito feio ! Os acontecimentos desta noite acabam de provar que é um verdadeiro sabio — e dos que dão lucro a uma casa. Deste momento em deante quem vae tomar conta delle sou eu. Vou cural-o do bolor e botal-o como administrador do sitio.

O relogio bateu as dez horas, e emquanto os meninos se recolhiam a velha pegou do visconde e o guardou, bem guardadinho, na sua estante, entalado entre uma Arithmetica e uma Algebra.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.