As Reinações de Narizinho/O Marquez de Rabicó

O MARQUEZ DE RABICÓ


I — OS SETE LEITÕEZINHOS


ERAM sete leitõezinhos. Bem sei que sete é conta de mentiroso, mas eram mesmo sete, todos ruivos, com manchas brancas pelo corpo. Quando a mamãe delles sahia a passeio pelos pastos, seguiam-na todos em fila — ron, ron, ron...

O tempo foi passando e os leitões foram crescendo, e á medida que iam crescendo iam entrando...

— Para a escola, já sei!

— Sim, para a escola do forno.

— Que horror!

— Pois é verdade. Vida de leitão no sitio do Picapau Amarello não é das mais invejaveis. Está o lindo animalzinho brincando no terreiro, feliz, gordinho como uma bola. Dona Benta olha e diz:

— Tia Nastacia, a prima Dodóca vem jantar hoje aqui. Acho bom pegar "aquelle um!" e aponta para o coitado.

A negra vae ao paiol, toma uma espiga de milho e vem para o terreiro — xuk, xuk, xuk!

Os bobinhos ouvem e veem correndo atraz do milho que ella começa a debulhar, e comem, comem, comem. De repente a malvada se abaixa e — nhoc! segura pela perna o tal "aquelle um". E pode o coitadinho espernear e berrar quanto queira! Não tem remedio. Vae arrastado para a cozinha, onde é assassinado com uma faca de ponta.

E se fosse só isso! Depois de assassinado é pellado com agua fervendo, é destripado, temperado e, afinal, assado ao forno.

Na hora do jantar reapparece na mesa, mas muito differente do que era. Vem num grande prato, rodeado de rodelas de limão, com um ovo cozido na bocca. E ninguem lamenta a sorte do coitadinho. Todos tratam mas é de cortar o seu pedaço e comel-o gulosamente, dizendo:

— Está delicioso!

E, ainda por cima, lambem os beiços, os malvados!...

Foi esse o triste destino daquella irmandade de sete leitões. Da irmandade inteira menos um, o Rabicó, assim chamado porque tinha só um toquinho de cauda. Rabicó salvou-se porque Narizinho costumava brincar com elle, acabando por crear-lhe amor.

— Fique sossegado que não deixo "ella" te assassinar, tinha-lhe dito a menina. "Ella", sem mais nada, queria dizer tia Nastacia.

Uma tarde Narizinho ouviu dona Benta dizer á preta:

— Amanhã, dia dos annos de Pedrinho, temos de dar um jantarzinho melhor. Ha ainda algum leitão no ponto?

— Só Rabicó, sinhá, mas esse Narizinho não quer que mate. E' o ai Jesus della.

— Sim, mas você dá um geito. Mata escondido, sabe? e piscou para a negra. As duas velhas eram damnadas para se entenderem!...

A menina, entretanto, ouvira a conversa, e foi correndo atraz do leitãozinho. Encontrou-o no pasto, fossando a terra como sempre — ron, ron, ron. Agarrou-o ao collo e disse-lhe ao ouvido:

— Vovó deu ordem a tia Nastacia para assassinar você amanhã. Mas eu não deixo, ouviu? Vou esconder você, bem escondido, num logar que só eu sei, até que o perigo passe.

E assim fez. Levou-o para o tal lugar que só ella sabia, amarrou-o pelo pé a uma arvore; depois trouxe-lhe varias espigas de milho, uma abobora e uma lata d'agua.

— Fique ahi bem quietinho. Nada de berreiros, senão tudo está perdido. Quando não houver mais perigo, volto para soltar você.

Chegada a hora de pegar o leitão, tia Nastacia revirou o sitio inteiro de pernas para o ar atraz delle. Procurou-o como se procura agulha; por fim veio dizer a dona Benta que com certeza algum ladrão o havia furtado, ou alguma onça o tinha comido.

— Que maçada! exclamou a velha. Nesse caso mate uma gallinha bem gorda. Rabicó fica para o Anno Bom, se apparecer.

No dia seguinte, assim que todos se levantaram da mesa depois de comido o "jantarzinho melhor", a menina correu ao lugar que só ella sabia e soltou o leitão.

— Está salvo por uns tempos, disse-lhe. Mas na vespera do Anno Bom tenho de prender você outra vez, porque "ella" prometteu assar você nesse dia.

Dalli a pouco, muito lampeiro, como se nada houvesse acontecido, Rabicó surgiu no terreiro, ron, ron, ron, chegando á porta da cozinha para lambiscar umas cascas que a negra havia botado fóra.

— Ué! exclamou tia Nastacia, admirada. Olhe quem está ahi! Rabicó!... Você escapou desta vez, sêo maroto, mas de outra não me escapa! Uma semana antes do Anno Bom já tranco você no paiol e quero ver!...

Rabicó não ligou a minima importancia áquellas palavras. Tratou mas foi de encher a barriguinha com as cascas, deitando-se depois ao sol para uma daquellas somnecas que só porco sabe dormir.


II — O PEDIDO DE CASAMENTO


Narizinho estava no seu quarto conversando com a boneca.

— Senhora condessa, acho que é tempo de mudar de vida. Precisa casar-se, senão é capaz de ficar tia. Amanhã vem cá um distincto cavalheiro pedir a mão de vossa excellencia.

Emilia andava bem de saude, gorda e corada. Tia Nastacia havia enchido de macena nova a perninha que fôra saqueada no passeio ao Reino das Abelhas e Narizinho havia concertado uma das suas sobrancelhas de retroz, que estava desfiando. Além disso, pintara-lhe nas faces duas rodelas de carmin, bem redondinhas.

Emilia não se mostrava disposta a casar. Dizia sempre que não tinha genio para aturar marido, além de que não via lá pelo seu sitio ninguem que a merecesse.

— Como não? protestou a menina. E Rabicó? Não acha que é um bom partido?

A boneca ficou indignada e declarou que jamais se casaria com um poltrão daquella marca. O fiasco feito por elle na viagem á terra das Abelhas não era coisa que merecesse perdão.

A menina riu-se e explicou:

— Você está enganada, Emilia. Elle é porco e poltrão só por emquanto. Estive sabendo que Rabicó é principe dos legitimos, que uma fada má virou em porco e porco ficará até que ache um anel magico escondido na barriga de certa minhoca. Porisso é que vive Rabicó fossando a terra atraz de minhocas.

Emilia ficou pensativa. Ser princeza era o seu sonho dourado e se para ser princeza fosse preciso casar-se com o fogão ou a lata de lixo, ella o faria sem vacillar um momento.

— Mas você tem certeza disso, Narizinho?

— Tenho certeza absoluta! Quem me revelou toda essa historia foi justamente o pae de Rabicó, o senhor Visconde de Sabugosa, um fidalgo muito distincto que vem fazer o pedido de casamento.

— Visconde? exclamou Emilia desconfiada. Então o pae desse principe é visconde só? Eu quero casar com principe filho de rei.

— Você é uma bobinha que não sabe nada. O visconde finge de visconde, mas na realidade é rei e muito bom rei de um reino lá atraz do morro. Quando elle vier, repare na cabeça delle e veja que tem um signal de corôa em redor da testa. Para esconder esse signal usa cartola, que não tira nunca, nem na igreja. Desse modo, como ninguem vê o signal da corôa, ninguem desconfia.

Emilia pensou, pensou, pensou e disse:

— Pois bem, acceito! Mas desde já vou dizendo que não saio daqui. Caso-me, mas não vou morar com Rabicó emquanto não virar principe novamente.

— Muito bem! concluiu Narizinho. Nesse caso vá preparar-se para receber o visconde, que não deve tardar. Recebi recado que já está em caminho. Vista aquelle vestidinho de pintas vermelhas e ponha mais rouge na cara, ouviu?

Emquanto a boneca se vestia, a menina correu ao pomar em procura de Pedrinho, que estava occupado em chupar laranjas limas.

— Depressa, Pedrinho! Arranje-me um bom visconde de sabugo, bem respeitavel, de cartola na cabeça e um signal de corôa na testa, e venha com elle pedir Emilia em casamento. Enganei-a que Rabicó é filho desse visconde, o qual é um grande rei, de um reino lá atraz do morro. Os dois, pae e filho, foram encantados por uma fada, só devendo desencantar no dia em que Rabicó descobrir uma certa minhoca que tem certo anel magico na barriga.

— E a boba acreditou?

— Acreditou piamente e declarou que nesse caso acceitará Rabicó como esposo, embora não vá morar com elle emquanto não virar principe novamente.

Pedrinho fez como ella pediu. Arranjou um bom sabubo, ainda com umas palhinhas no pescoço que fingiam barba muito bem, botou-lhe braços e pernas, fez cara, com nariz, bocca, olhos e tudo — e não esqueceu de marcar-lhe a testa com um signal de corôa de rei. Depois enterrou-lhe na cabeça uma cartolinha e lá foi com elle á casa da boneca.

— Tóc, tóc, tóc, bateu.

— Quem é? indagou de dentro a voz da menina.

— E' o illustre senhor visconde de Sabugosa que vem fazer uma visita á senhora condessa de Tres Estrellinhas e pedil-a em casamento para o seu illustre filho, o senhor marquez de Rabicó.

— Esperem um minutinho que já abro, respondeu a menina. E dirigindo-se á boneca:

— Vê, Emilia? Elle, além de principe, é marquez. De modo que se você se casar com elle começa já a ser marqueza e um dia virará princeza. Não pode haver futuro mais bonito para uma coitadinha que nasceu na roça e nem em escola esteve. Você vae ser a Gata Borralheira das bonecas!...

Emilia deu tres pulinhos de alegria e foi correndo botar mais um pouco de pó de arroz. Emquanto isso o visconde entrou.

Narizinho fez-lhe uma reverencia respeitosa e respondeu, sem dar a entender que estava falando com um rei disfarçado:

— Muito prazer, senhor visconde! Puxe uma cadeira e sente-se no chão. Creia que fico muito satisfeita de saber que seu filho é marquez. E como vae a senhora viscondessa?

— Sou viuvo, respondeu elle, enxugando uma lagrima.

— Meus pezames! E a senhora sua mãe, dona Palha de-Milho?

O Visconde suspirou.

— Coitada! Falleceu de um horrivel desastre...

— Como? Conte-nos isso, exclamou Narizinho, fingindo uma grande afflicção.

— Pois é. Foi comida pela vacca mocha, explicou o VISconde, enxugando nas palhinhas de milho que lhe serviam de barba duas lagrimas, uma de cada olho.

— A pobre! murmurou a menina muito triste. Eu sinto bastante, visconde, mas o mundo é isto mesmo. Um come o outro. A vacca mocha come as donas Palhas e a gente come as vaccas. A vida é um come-come damnado! Eu estou aqui, estou apostando que tambem os seus filhos foram comidos pelas senhoras gallinhas...

O visconde arregalou os olhos, como se não soubesse que tinha mais filhos além do filho marquez.

— Sim, explicou Narizinho. Os grãos de milho que vossa excellencia já teve pregados pelo corpo creio que podem ser chamados seus filhos.

— Ah, sim, é verdade! Foram comidos pelo gallo indio, ha dois dias.

Nisto Emilia appareceu na porta, no seu vestidinho de chita com pintas vermelhas.

— Senhor visconde, disse a menina, tenho o prazer de lhe apresentar a sua futura nóra, a senhora condessa de Tres Estrellinhas. Veja como é galante!...

O visconde levantou-se para saudar a boneca e por "distracção" tirou a cartola, deixando que Emilia visse o signal de corôa que tinha na testa.

— Tenho a mais subida honra de receber no seio de minha familia esta nobre condessa. Pelo que vejo é a mais linda creatura destes arredores! Acho-a ainda mais bonita que a franguinha pedrez de tia Nastacia...

Emilia fez uma cortezia agradecendo a amabilidade, embora torcesse o nariz áquella comparação com a franguinha pedrez.

— E não é só isso, continuou Narizinho. Bonita e prestimosa como não ha outra! Sabe fazer tudo! Cozinha na perfeição, lava roupa e lê nos livros como uma professora. Emilia é o que se chama uma damnada!...

— Muito bem! Muito bem! ia exclamando o Visconde.

— Tambem tóca lindas musicas na vitrola, mia como gato, arrebenta pipócas e tem muito geito para modista. Esse vestidinho com que está, por exemplo, foi feito por ella.

Emilia, que ainda não sabia mentir, interrompeu-a, dizendo:

— Não fui eu, foi tia Nastacia quem o fez.

A menina deu-lhe um beliscão sem que o visconde percebesse.

— Não repare. visconde, Emilia é muito modesta. Faz as coisas mas não quer que se diga. Esse vestido ella o fez sózinha, sózinha. Ella mesma escolheu a fazenda, ella mesma cortou e coseu. E olhe como ficou bem assentado nas costas. Levante-se, Emilia, e vire-se de costas para o visconde ver.

Emilia ergueu-se da cadeira, dando umas voltas pela sala.

— Não está dos mais elegantes mas serve, continuou Narizinho. Emilia nasceu aqui na roça e nunca foi á cidade, nem aprendeu costura. Para uma creatura nessas condições não acha que está bem feitinho?

O visconde olhou, olhou e disse:

— Eu, a falar a verdade, não entendo de modas. Mas acho muito bom. Só a saia me parece um tanto curta...

— Eu tambem acho e já o disse a ella; mas Emilia, como tem perna grossa, tem a mania de mostral-a. Só usou saia comprida no tempo em que ficou com a perna secca e contou ao Visconde o caso do ouro-macella. Depois, mudando de assumpto, pediu informações a respeito do genio de Rabicó.

— Elle tem muito bom genio, disse o visconde. Não é briguento, nem provocador. Possue bellas qualidades. Quanto ao mais, gosta muito de dormir ao sol e fossar a terra para descobrir minhocas.

Nesse ponto a menina piscou para a boneca, querendo referir-se á historia de certo anel que elle andava procurando dentro de certa minhoca, e Emilia convenceu-se de que Rabicó era mesmo um principe encantado.

— O unico defeito que tem, continuou o visconde, é comer tudo quanto encontra. Rabicó não respeita coisa nenhuma!

Emilia fez carinha de nojo e foi cuspir á janella. Depois, mettendo-se na conversa, disse:

— Pois se casar-se commigo só ha de comer coisas gostosas e cheirosas. Não consinto que meu marido ande comendo o que encontra.

— Apoiadissimo, Emilia! exclamou a menina. Tambem penso desse modo e acho que você faz muito bem de exigir isso delle. Mas agora só resta saber se você acceita ou não o senhor marquez de Rabicó como esposo. Vamos lá! Resolva!...

Emilia ficou meio afflictinha de ter de decidir por si mesma uma questão de tal gravidade como essa de escolher um esposo e olhou para Narizinho interrogativamente, como quem pede auxilio. Mas a menina não quiz intervir, porque não desejava ficar com a responsabilidade.

— Não posso dar opinião, disse ella. Você tem que decidir por si mesma. Casamento não é brincadeira.

A boneca pensou, pensou, pensou, e afinal, tentada pela idéa de começar marqueza e um dia virar princeza, resolveu-se.

— Pois quero!

Narizinho bateu palmas.

— Bravos! Está tudo resolvido. Senhor visconde, abrace sua nóra, a futura marqueza de Rabicó!...

O visconde ergueu-se, bastante commovido. Abraçou a boneca e deu-lhe um beijo na testa.

Emilia, muito vermelhinha, foi correndo para o quarto.

III — O NOIVADO DE EMILIA


Durou uma semana o noivado de Emilia. Todas as tardes, trazido á força por Pedrinho, apparecia o marquez de Rabicó para visitar a noiva, e tinha de ficar meia hora na sala, contando casos e dizendo palavras de amor.

Mas apezar de noivo Rabicó não perdia os seus instinctos. Logo que entrava punha-se à farejar a sala, na sua eterna preoccupação de descobrir coisas para comer. Além disso, não prestava a menor attenção á conversa. Rabicó não havia nascido para aquellas cerimonias.

Uma tarde Pedrinho zangou-se, resolvendo substituil-o por um representante.

— Rabicó não vale a pena, disse elle aborrecido. Não sabe brincar, não se comporta. O melhor é isto, querem ver? e sahiu; foi ao quintal e trouxe um vidro vazio de oleo de ricino que andava jogado por lá.

— Está aqui! O noivo vae daqui por deante ser representado por este vidro azul e o tal marquez de Rabicó vae passear, concluiu elle, pregando um pontapé no noivo, por despedida.

Rabicó raspou-se, com tres coins, e desde esse dia, emquanto fossava a terra no pomar atraz da tal minhoca de anel na barriga, quem noivava por elle, de cartola na cabeça, era o senhor Vidro Azul.

Emilia comportava-se muito bem, embora de vez em quando viesse com as suas ironias.

— Eu já disse a Narizinho: caso, mas com uma condição!

— Já sei! disse o senhor Vidro Azul. Não quer morar na casa do marquez, com certeza porque não se dá bem com o futuro sogro, o visconde.

— Isso não! Até gosto muito do senhor visconde. O que não quero é sahir daqui. Estou muito acostumada.

O senhor Vidro Azul coçou o gargalo.

— Sim, mas...

— Não tem mas, nem meio mas! Quem manda neste casamento sou eu. O marquez fica por lá e eu fico por cá, declarou Emilia toda espevitadinha, de nariz torcido.

O representante do noivo suspirou.

— Que pena! O senhor marquez já mandou construir um castello tão bonito, de ouro e marfim, com um grande lago na frente...

Emilia deu uma risada.

— Eu conheço os lagos do marquez! São como aquelle celebre lago azul que prometteu á Libellinha, quando nós fomos ao Reino das Abelhas.

O senhor Vidro Azul atrapalhou-se. Viu que Emilia não era nada tola e não se deixava enganar facilmente. Procurou remendar.

— Sim, um lago. Não digo um grande lago, mas um pequeno lago, um tanque...

— Uma lata d'agua, diga logo! completou Emilia mordendo os beiços.

Narizinho interveio, reprehensiva.

— Você está aqui para noivar, Emilia, para dizer coisas bonitas e amaveis, não para brigar com o representante do Marquez. Veja lá, hein?

E dirigindo-se ao representante:

— O senhor marquez não escreveu ainda uns versos para a sua noiva?

— Escreveu sim, respondeu o Vidro Azul, mettendo a mão no gargalo e sacando um papelzinho. Aqui estão elles.

E recitou:

Pirolito que bate bate,
Pirolito que já bateu,
Quem adora o marquez é ella,
Quem adora Emilia sou eu.

— Bravos! exclamou Narizinho batendo palmas. São lindos esses versos! O marquez é um grande poeta!...

Emilia, porém, torceu o nariz e até ficou meio damnadinha.

— O verso está errado! disse ella. Vou casar-me com elle mas não "adoro" coisa nenhuma. Tinha graça eu "adorar" um leitão!

Narizinho bateu o pé e franziu a testa.

— Emilia, tenha modos! Não é assim que se trata um poeta. Você vae ser marqueza, vae viver em salões e precisa saber fingir, ouviu?

Depois, voltando-se para o representante:

— Peço-lhe mil desculpas, senhor Vidro Azul! Emilia tem a mania de ser franca. Nunca viveu em sociedade e ainda não sabe mentir. Não é aqui como o nosso visconde Sabugosa, que fala, fala e ninguem sabe nunca o que elle realmente está pensando, não é visconde?

O visconde fez um gesto que tanto podia ser sim como não.

Desse modo conversavam todas as noites, longo tempo, até que vinha o chá. Chá de mentira, com torradas de mentira. Tomado o chá, o visconde e o representante se despediam e Narizinho acompanhava-os até á porta, onde dizia:

— Não tenha medo, senhor Vidro Azul. Pode dar um beijinho nella por conta do marquez.

O representante beijava Emilia na testa e retirava-se, acompanhado do visconde...

Passada uma semana, a menina queixou-se a dona Benta :

— Este noivado está me acabando com a vida, vóvó! Todas as noites a fazer sala para os noivos, como isto cansa!...

— Mas que é que está faltando para o casamento, menina?

— Faltam os doces.

— Já sei. Já sei. Pois tome lá estes nickeis e mande vir os doces.

Como era justamente aquillo que Narizinho queria, lá sahiu ella aos pinotes, com os nickeis cantando na mão.


O CASAMENTO


Chegou afinal o dia e vieram os grandes doces: seis cocadas, seis pés de moleque e uma rapadura, doce mais que sufficiente para uma festa onde a maior parte dos convidados comiam de mentira.

Pedrinho armou a mesa da festa debaixo de uma laranjeira do pomar e botou em redor todos os convidados. Lá estavam dona Benta, tia Nastacia e varios conhecidos e parentes, todos representados por pedras, tijolos e pedaços de pau. O inspector de quarteirão, um velho amigo de dona Benta que ás vezes apparecia pelo sitio, era figurado por um tôco de pau com uma dentadura de casca de laranja na bocca.

Chegou a hora. Vieram vindo os noivos. Emilia de vestido branco e véo; Rabicó de cartola e faixa de seda em torno do pescoço. Vinha muito sério, mas assim que se approximou da mesa e sentiu o cheiro das cocadas, ficou de agua na bocca, assanhadissimo. Não viu mais nada.

Logo veio o padre e casou-os. Narizinho abraçou Emilia e chorou uma lagrima de verdade, dando-lhe muitos conselhos. Depois, como a boneca não tivesse dedos, enfiou-lhe no braço um anelzinho seu. Pedrinho fez o mesmo com o marquez: enfiou-lhe no braço uma alliança de casca de laranja, que Rabicó, por duas vezes, tentou comer.

— Comporte-se, ao menos no dia de hoje! disse o menino, ameaçando-o.

Os outros animaes do sitio, as cabras, as gallinhas e os porcos tambem assistiram á festa, mas de longe. Olhavam, olhavam, sem comprehenderem coisa nenhuma.

Terminada a festa, Narizinho disse:

— E agora, Pedrinho?

— Agora, respondeu elle, só falta a viagem de nupcias.

Mas a menina estava cansada e não concordou. Propoz outra coisa. Puzeram-se a discutir e esqueceram de tomar conta da mesa de doces. Rabicó aproveitou a occasião. Foi-se chegando para perto das cocadas e de repente — nhoc! deu um bote na mais bonita.

— Acuda os doces, Pedrinho! berrou a menina.

Pedrinho virou-se e, vendo a feia acção do pirata, correu para cima delle, furioso. Agarrou o inspector de quarteirão e malhou-lhe uma inspectorada no lombo.

— Cachorro! Ladrão! Marquez duma figa!...

Rabicó deu um berro espremido e disparou pelo campo, mas sem largar a cocada.

Foi um desastre. A festa desorganizou-se e Emilia chorava e esperneava de raiva.

— E' isso! Eu bem não estava querendo casar com Rabicó! E' um typo muito ordinario, que não sabe respeitar uma esposa.

Narizinho interveio e consolou-a.

— Isto não quer dizer nada. Rabicó é meio ordinario, não négo, mas com o tempo irá creando juizo e ainda acabará um excellente marido. Depois é preciso não esquecer que elle qualquer dia vira principe e faz você princeza.

Mas Pedrinho, que estava damnado com a feia acção de Rabicó, estragou tudo, dizendo:

— Principe nada, Emilia! Narizinho bobeou você. Rabicó nunca foi nem será principe. E' porco e dos mais porcalhões, fique sabendo.

Emilia, quando ouviu aquillo, cahiu para traz, desmaiada...

IV — O JANTAR DE ANNO BOM


Como era de prever, não podia dar bom resultado aquelle casamento. Os genios não se combinavam e além disso Emilia não podia se consolar do logro que levara. Narizinho ainda tentou convencel-a de que Rabicó era realmente principe e que Pedrinho só dissera aquillo porque estava damnado. Não houve meio. Quando Emilia desconfiava era para toda a vida. E desse modo ficou casada com Rabicó mas separada delle para sempre.

— Está ahi o que você fez! costumava dizer em voz queixosa. Casou-me com um principe de mentira e agora, está ahi, está ahi!...

Narizinho dava-lhe esperanças.

— Tudo se arruma. Um dia elle morre e eu caso você com o visconde ou outro qualquer.

Afinal chegou o dia de Anno Bom. Era costume de dona Benta festejar esse dia com um jantar onde reunia varios parentes e vizinhos. Tia Nastacia caprichava. Frangos assados. Perú recheiado. Leitão de forno. Pasteis, doces e quanta coisa gostosa havia. Era assim sempre e foi assim naquelle anno.

Quando bateu a hora e todos foram para a mesa, começaram a vir pratos e mais pratos, até que, de repente, appareceu numa grande travessa um leitão "risonho", de ovo cozido na bocca e rodelas de limão pelo corpo.

Os meninos não esperavam que viesse leitão, porque a negra havia dito que o jantar seria só de perú. Narizinho immediatamente desconfiou e foi correndo ao terreiro procurar Rabicó. Chamou-o mais de vinte vezes e campeou-o por todos os lugares que elle costumava frequentar. Não encontrando nem rasto, voltou para a sala a chorar desesperadamente.

— Não coma esse leitão, Pedrinho! E' Rabicó! gritou ella. Aquella diaba nos enganou e assou o coitadinho!...

O menino, apezar de duro para chorar, ficou com os olhos cheios d'agua, erguendo-se da mesa furioso com a preta.

Emilia, porém, pulou de alegria. Estava viuva! Podia finalmente casar com o visconde de Sabugosa ou outro figurão qualquer. Chegou a bater palmas, cantando o "Pirolito que bate bate," que era a sua "musica" predilecta.

Narizinho não poude supportar aquillo. Avançou contra ella como uma furia, pregando-lhe um peteléco.

— Vou mandar o doutor Caramujo fazer uma operação nesta malvada para botar dentro della o que está faltando!...

Dona Benta perguntou, muito admirada, que era que estava faltando a Emilia.

— Coração, vóvó. Pois não vê? Emilia não tem nem uma isca deste tamanhinho...

Quantas lagrimas perdidas! Rabicó não fôra assado, não! Na vespera do dia de Anno Bom, assim que percebeu as intenções da tia Nastacia, tratou de pôr-se ao fresco, sorrateiramente, de rabinho entre as pernas. Em caminho encontrou um leitão da sua idade, muito parecido com elle. Teve uma idéa.

— Porque não vae amanhã cedo ao terreiro de dona Benta? perguntou-lhe. Deixei lá tres aboboras quasi inteiras.

O coitadinho foi. Encontrou as aboboras, é verdade, e comeu-as, mas teve como sobremesa faca de ponta e forno.

Desse modo conseguiu o illustre marquez de Rabicó escapar á triste sina que lhe parecia reservada e passado o perigo voltou, muito lampeiro da vida, como se não soubesse de coisa nenhuma!...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.