O amor de Hermano e Florinda era a harmonia suave de dois corações que se entenderam antes de pensar que se entendiam: aromas exalados por duas flores, encontraram-se no espaço e misturaram-se na aura encan­tada a que dão o nome de amor.

Na vida e nas relações do campo que entre nós geralmente se chama a roça, o amor de dois jovens é simples, temeroso e poético; simples como os costumes da boa gente agricultora, temeroso como o pudor da donzela que é puríssima flor da solidão, poético porque suspira à sombra da árvore vizinha da estrada por onde espera ver passar o cavalheiro desejado; por­que medita e sonha junto à fonte solitária; porque a distância que sempre separa os amantes é mãe da saudade que chora lágrimas doces; poético porque a lembrança, a saudade, o desejo, o ciúme, os sofrimentos, o en­contro, a confissão, e a esperança não tem artifício que o desnature, e to­do natureza santa apura o seu encanto ao trinar dos passarinhos, ao mur­murar do arroio, e ao ruído misterioso e romanesco do bosque.

Hermano e Florinda amaram-se com esse amor da roça.

Na capela da fazenda de Domingos Caetano fizeram-se, havia dois anos, preces a Deus por chuva que a lavoura, vítima de prolongada seca, pedia sequiosa: acudiu ao religioso ato concurso numeroso, como sempre em tais casos se observa. Uma noite, no meio da ladainha, um mancebo e uma donzela que a distância rezavam ajoelhados se surpreenderam a olhar-se: ambos coraram, como criminosos apanhados em delito flagrante”: esse rubor de sublime pejo foi a aurora do seu amor.

Hermano e Florinda quase que se arrependeram de se haver olhado as­sim, quando os seus corações deviam estar exclusivamente voltados para Deus, a pedir chuva; mas nessa mesma noite choveu, e ambos pensaram que a troca de seu olhar era abençoada por Deus.

Segundo e inocente pecado: Hermano e Florinda se desgostaram da chuva que havia posto fim às preces.

Cada qual suspirou. sonhou, desejou de seu lado; mas tão longe! Vinte vezes em um mês Hermano passou a cavalo pelo campo da fa­zenda de Domingos Caetano: ele tinha sabido a hora do passeio costuma­do à horta e viu vinte vezes Florinda ao lado de sua mãe.

Nas festas da freguesia ambos se encontraram na igreja, e à noite nas danças de mascarados, e no Largo (na praça) a verem o fogo de artifício: o fogo de artifício quase que não viram; mas sentiram outro fogo mais ar­dente a radiar-lhes nos olhos, que faziam abaixar os olhos.

Nunca trocaram palavras; mas falavam tanto um ao outro!

Perto de uma das cancelas do campo da fazenda de Domingos Caetano morava em pobre casa Jacinta, boa mulher protegida por Angélica e Florinda que a chamavam a comadre Jacinta, e a quem às vezes iam à tarde visitar.

Um dia a comadre Jacinta disse em segredo a Florinda o que esta já sabia. Provavelmente Angélica tinha permitido a confidência.

Florinda correu e fugiu sem responder.

Em outra tarde Angélica deixou a filha em companhia da comadre Jacinta, e foi ver o pomar da pobre e boa mulher.

A comadre Jacinta, aproveitando o ensejo, exaltou o amor e o merecimento de Hermano à comadrinha, que sorria e corava; mas de súbito exclamou:

– Aí vem o senhor Hermano!

Florinda assombrada e atônita correu a esconder-se no quarto de dormir de Jacinta, pobre quarto de paredes esburacadas, donde se podia ver e ouvir quanto se passava e se dizia na sala.

Hermano chegou com efeito: sem constrangimento, pois que se supunha a sós com a comadre Jacinta, fez com ardor o elogio da beleza de Florinda, a confissão veemente do seu amor, pedindo à boa mulher a sua intervenção, e o seu concurso para merecer a gratidão, da donzela amada.

A comadre Jacinta ria-se e provocava as falas ternas e apaixonadas do mancebo, quando Angélica chegou, e comprimentando com agrado Hermano, perguntou por sua filha.

Florinda teve de sair do quarto contíguo toda trêmula e vermelha de pejo e confusão pelo que ouvira.

Hermano estremeceu e corou, vendo aparecer Florinda; mas no íntimo d’alma agradeceu a traição da amizade.

Daí em diante o amor dos dois jovens falou docemente sem que os dois jovens amantes se falassem uma única vez.

Havia abaixo do rio da fazenda uma figueira silvestre e majestosa, a cu­ja sombra Florinda se aprazia de ir sentar-se nas tardes dos dias calmosos: na casca dessa árvore enlaçaram-se as iniciais dos nomes de Florinda e Hermano, e a cifra tinha sido obra de duas mãos diferentes, cada uma das quais talhara a inicial de seu nome.

Junto à portinha da horta havia um banco, onde Florinda costumava sentar-se quando de manhã e à tarde lá ia passear. Florinda quase sempre achava de manhã uma flor sobre o banco e deixava no mesmo lugar outra flor à tarde.

Uma vez, sobressaltara-se a fazenda com a notícia de que uma onça desgarrada andava pelos bosques vizinhos, e em breve Florinda teve de la­mentar que fosse ali a primeira vítima da fera uma cabra que ela criara e que amorosa corria para seu lado mal a avistava de longe: dois dias depois soube-se que Hermano perseguira e matara a onça.

Outra vez, Florinda chorava a fugida de um sabiá que a enlevava com o seu canto saudoso, e no dia seguinte Jacinta trazia-lhe outro sabia mais cantador ainda, e lho entregava, sorrindo, e sem precisar dizer donde ele vinha.

O amor de Hermano e Florinda alimentava-se pois com aromas das flores, e com o canto das aves; sem se encontrarem nunca, tinham os dois amantes o seu terno laço no tronco da figueira, e a imagem querida um do outro nos próprios corações, e mil objetos fora deles, nas flores que se guardavam já murchas, no lencinho branco esquecido no banco da horta e amorosamente furtado à noite, em um pé de sempre-vivas, que surgira de manhã à beira do caminho para o rio, e em todos esses mudos testemu­nhos de ternura que nada valem e valem tanto, e que na vida campestre são cheios da poesia simples da natureza.

Hermano e Florinda amavam-se pois, havia dois anos, sabiam ser amados, correspondiam-se e em dois anos não se tinham falado uma só vez.

Era um amor puríssimo.

Domingos Caetano e Angélica provavelmente suspeitavam do mimoso segredo de sua filha e não procuravam combater o seu terno sentimento; mas Hermano, não entretendo relações com eles, acanhava-se pela sua pobreza, e não ousava pedir a mão da menina rica.

Todavia esse amor era tão santo que abençoá-lo antes de descer à se­pultura foi para o extremoso pai de Florinda a última consolação da vida, – o derradeiro riso aberto ao mundo.