Paulo Borges também supôs, como Teresa, ter achado sua sorte grande entre os vinte escravos que arrematara.

O Pai-Raiol era a melhor enxada da sua roça: à frente do eito ele avan­çava, cavando a terra, como o soldado intrépido e rompente que marcha avante, ganhando o campo ao inimigo; manejava a foice, ou descarrega­va o machado com a impetuosidade do entusiasmo pelo trabalho; não pa­rava para enxugar o suor com que o esforço braçal e o calor ardente do sol faziam inundar-lhe o rosto e o corpo, e apenas alguma vez olhava para um e outro lado para ver se algum dos parceiros tentava, ou estava prestes a emparelhar-se com ele.

Paulo Borges admirava-lhe em silêncio o amor do trabalho; mas Raiol não trabalhava com amor, trabalhava com raiva: dir-se-ia que intimamen­te revoltado contra a violência que o tornara escravo, provocava a fadiga, atormentava-se nos deveres obrigados da escravidão para mais atiçar as fú­rias que esta acendera em seu seio.

O Pai-Raiol ao menos não simulava amar o senhor: se às vezes e bem raras o olhava, ninguém podia dizer o que exprimia o seu olhar de com­pleto e dúplice estrabismo: era um olhar de odiento furor assassino que se entranhava nos ângulos sombrios das pálpebras negras.

Esse escravo africano era a concentração misantrópica na sepultura do silêncio: nunca falava aos parceiros na roça, e só com monossílabos, ou com respostas de concisão desanimadora cortava as tentativas de amiga conversação; desprezava, aborrecia os escravos porque a experiência o con­vencera de que a ignomínia da sua condição os fizera vis, covardes, e inca­pazes de obedecerem à sua voz no empenho de horrível conflagração, que muitas vezes imaginara, e calculara possível.

O Pai-Raiol era pela escravidão vítima, e pela organização ou por sua natureza mau: a reação dos sentimentos da vítima, e os instintos, as inspi­rações da natureza má o tornavam fera; mas em sua ferocidade estava longe de ser leão, era leopardo.

Desenganado dos irmãos escravos, detestando essa fraternidade que não lhe facilitava seguros instrumentos de imenso mal, de guerra assassina contra os senhores, ele contava só consigo e em si próprio se embrenhava.

Fora do serviço o Pai-Raiol abrigava-se em sua senzala que demorava isolada no cabeço de uma colina do campo, tendo em sua frente pedrego­so precipício: ele não tinha, não procurava, nem aceitava amigos; ninguém o via rir, nem lhe ouvia queixas; nas noites dos dias de trabalho nunca saía da fazenda: era certo na sua senzala.

Nos domingos e dias santificados fazia ligeira visita à venda para pro­ver-se de aguardente e fumo: depois pedia em casa a sua ração e internava-se nas florestas, ou divagava pelos matos novos, e recolhia-se à noite.

Que ia o Pai-Raiol fazer às florestas, e aos matos novos? Alguns o reputavam caçador, porque algumas vezes ele trazia de volta animais e aves que conseguia apanhar em laços e mundéus.

Só Esméria acertava, dizendo entre si:

– O feiticeiro foi colher folhas, frutos e raízes que bem conhece, e brincar com as cobras venenosas, porque é delas o rei.

Com efeito, o Pai-Raiol estudava com a sua rudíssima prática a flora das matas vizinhas da fazenda; achava e colhia nelas plantas venéficas suas conhecidas, e descobria novas, cujas propriedades suspeitas experimentava.

Pai-Raiol se armava, preparava e enriquecia o seu arsenal: o feiticeiro não passa de envenenador; é o assassino charlatão.

Sobre o misantropo negro pesava a fama antiga de feiticeiro; mas nas vizinhanças da fazenda de Paulo Borges havia uma casa de candombes ou de cultos de feitiçaria e o Pai-Raiol nunca se lembrara de visitá-la.

O toque noturno da puíta, do uricungo e do pandeiro selvagem alvoroçava às vezes os escravos que em suas senzalas, lembrando as danças da África, choravam saudosos, ou alguns venciam o medo dos castigos, fugindo da fazenda para onde os chamavam as músicas grosseiras, mas re- cordadoras da pátria. O Pai-Raiol nem por esse encanto se deixara jamais vencer, ou seduzir: a voz do escravo feitor que procurava informar-se das ausências severamente proibidas, era sempre respondida pelo escravo da senzala isolada.

Paulo Borges que zombava da crença do feitiço e que não esquecia o vigor fervente da sua melhor enxada, desprezava as suspeitas de feitiçaria que desabonavam e comprometiam o seu escravo mais diligente e mais sossegado.

Pai-Raiol, portanto, se abismava em si próprio, nas ruminações dos padecimentos da sua miserável condição, nas ebulições da sua maldade irritada, na fúria comprimida de sua vingança de aspirações ferozes.

O seu silêncio era como o gelo que cobre o Hekla. O silêncio cerrava os lábios, o vulcão estava mal contido no peito, que ansiava por abrir a cratera, e arrojar as lavas destruidoras.

O escravo vivia na senzala solitária, ruminando, atiçando, incandescen­do o ódio ao senhor, e cogitando sobre os meios mais pérfidos, mais terrí­veis e mais eficazes para satisfazer esse ódio.

O natural inimigo do senhor velava...

A senzala do escravo ameaçava, como sempre, a casa do senhor.