O bilhete amoroso de Souvanel era uma ridícula tirada de estragado romantismo dos pretensiosos e grotescos profanadores da escola francesa de Victor Hugo, que por seu assombroso gênio se faz admirar ainda mesmo quando tortura a verdade, descomedindo a naturalidade dos senti­mentos.

Aquela imposição extrema de escolha, entre uma noite de teatro e um adeus para sempre, escandalizaria o senso comum, se não fosse a expres­são do apuro de perverso plano.

Souvanel contava que os sofrimentos fingidos de Leonídia o auxiliassem, tornando impossível a presença de Cândida no teatro, e ficando pois a esta decidir-se exclusivamente, ou pela concessão da conferência, ou pe­la separação perpétua.

Cândida, incapaz de raciocinar, desatinou, lendo o bilhete de Souvanel. Orgulhosa e também muito contida pelo receio de provocar as expansões do abafado desgosto de sua mãe, tinha até então disfarçado o ressen­timento da privação dos divertimentos, a que estava habituada, e não ou­sara reclamar contra a nova e sistemática vida a que seus pais a subme­tiam; nesse dia, porém, venceu o orgulho e o receio, e pediu a Leonídia para ir à noite ao teatro.

– Não me vês doente?... – perguntou-lhe a mãe.

– Minha mãe sofre: mas por isso mesmo, algumas horas de distração devem aproveitar-lhe.

– Não; no meu estado todo divertimento me fatiga, e me faz mal... vejo que é por amor da minha saúde que desejas levar-me ao teatro: obri­gada, minha filha; ficaremos em casa, e tu me farás ouvir algumas das tuas árias à noite... prefiro o teu canto ao melhor teatro.

Cândida sentiu os espinhos da ironia nas suaves palavras de sua mãe. A ironia matou-lhe a esperança de conseguir o que almejava, e desanimou-­lhe a insistência por inútil e inconveniente.

Como insistir, se Leonídia pretextava padecimentos?... Insistir era du­vidar da sinceridade, da verdade das queixas de sua mãe; e a manifestação da dúvida, era um desafio a francas explicações que a consciência de Cân­dida temia.

Com o coração em tormentos, com a alma em alucinação, Cândida, desenganada do recurso do teatro, aterrada pela ameaça do adeus extre­mo, da morte do seu amor, da separação perpétua do homem que amava, assombrada pela idéia do opróbrio e dos perigos de um encontro secreto ajustado com Souvanel, pela idéia da sua confusão nesse ultraje do dever, nesse abandono do pejo, nessa hora impudica de autorização a todos os desejos, e a todas as exigências encorajadas pela mais louca, indesculpá­vel, e vergonhosa condescendência, Cândida apaixonada, delirante, mas ainda sujeita aos melindres do pudor, e às lições da honestidade, lutava, chorava, e estorcia-se na solidão de seu quarto, e procurava um expedien­te que a salvasse da situação violenta e terrível em que presumia achar-se.

Temia perder o amado, temia a indignidade e o labéu da conferência secreta, ressentia-se da opressão da família, maldizia de Frederico, julgava-se condenada a eterno luto na vida, pela morte do amor, do primeiro, do único amor de seu coração.

Raciocinava como as delirantes apaixonadas de dezesseis anos, raciocinava menina, inexperiente, insensata, doida...

Raciocinou ou doidejou duas horas, deitada em seu leito a chorar e a delirar, pensando que pensava.

Por fim levantou-se animada, esperançosa, mais estouvada, mais lou­ca do que nunca até então se mostrara: supôs ter achado um recurso...

Escreveu a Souvanel com alacridade e mão firme: “Souvanel: Nem teatro, nem conferência secreta, nem adeus para sempre; se me amas, se­rei tua: vem pedir-me em casamento a meus pais: se eles te rejeitarem, apela deles para a justiça pública; podes fazer uso deste bilhete perante as autoridades competentes: quero ser tua, ainda mesmo apesar de meus pais. – Cândida.”