Pai-Raiol passara nesse dia ao seu quinto senhor.
Era um negro africano de trinta a trinta e seis anos de idade, um dos últimos importados da África pelo tráfico nefando: homem de baixa estatura, tinha o corpo exageradamente maior que as pernas; a cabeça grande, os olhos vesgos, mas brilhantes e impossíveis de se resistir à fixidade do seu olhar pela impressão incômoda do estrabismo duplo, e por não sabermos que fluição de magnetismo infernal; quanto ao mais, mostrava os caracteres físicos da sua raça; trazia porém nas faces cicatrizes vultuosas de sarjaduras recebidas na infância: um golpe de azorrague lhe partira pelo meio o lábio superior, e a fenda resultante deixara a descoberto dois dentes brancos, alvejantes, pontudos, dentes caninos que pareciam ostentar-se ameaçadores; sua boca era pois como mal fechada por três lábios; dois superiores e completamente separados, e um inferior perfeito: o rir aliás muito raro desse negro era hediondo por semelhante deformidade; a barda retorcida e pobre que ele tinha mal crescida no queixo, como erva mesquinha em solo árido, em vez de ornar afeiava-lhe o semblante; uma de suas orelhas perdera o terço da concha na parte superior cortada irregularmente em violência de castigo ou em furor de desordem; e finalmente braços longos prendendo-se a mãos descomunais que desciam à altura dos joelhos completavam-lhe o aspecto repugnante da figura mais antipática.
Pai-Raiol tinha má reputação: fora vendido uma vez, e três vezes revendido pela desordem em que punha os parceiros, pelos furtos que incorrigivelmente praticava, e por suspeita de propinação de veneno a uma escrava que resistira a seus desejos impetuosos, e em breve morrera subitamente logo depois de aceitar e beber um copo de aguardente que ele lhe oferecera à porta de sua senzala. Além disso, o negro se fizera temível pela audácia de seu ânimo, e força física ainda mais avultada pela agilidade e presteza de movimentos nas lutas. No poder de seus três primeiros senhores provara os mais duros castigos: experimentara por mais de uma vez as dolorosas solidões do tronco, e os tormentos do açoite no poste horrível, onde se amarra o padecente, a vítima, criminosa embora.
Em seu quarto cativeiro que breve terminou pela morte do senhor, parecera enfim menos intrigante e perturbador da harmonia dos míseros parceiros; mas sofrera ainda por vezes severos castigos pela descoberta de sua freqüência reincidente e teimosa nos candombes de uma negra liberta e famosa feiticeira. Pai-Raiol acabara por dobrar-se humilde às condições da escravidão, e nos últimos meses de vida de seu quarto senhor, que aliás morreu de ulcerações no estômago e intestinos, vegetou, existiu silencioso e traste na fazenda, trabalhando de dia na roça, e passando as noites recolhido na senzala.
Pretendiam os outros escravos seus parceiros que essa inesperada e completa metamorfose de Pai-Raiol, o incorrigível, era devida aos seus felizes amores com a crioula Esméria, que com ele convivia e o dominava.
A morte do senhor, o subseqüente inventário e as partilhas da casa por ele deixada, a necessidade do pagamento de dívidas enfim determinaram essa arrematação de vinte escravos, de que se aproveitou Paulo Borges, a quem aliás não foi estranha a história do Pai-Raiol, e que se aplaudiu de contar entre os vinte arrematados a crioula Esméria que tornara pacífico, tranqüilo e sujeito o indisciplinado africano.
Paulo Borges não dava importância a essas ligações de escravo e escrava; mas, pois que a do Pai-Raiol e de Esméria lhe aproveitava, reputou afortunada a compra que mantinha a consoladora sociedade do negro e da negra que se diziam amar.
E recolhidos os vinte novos escravos à fazenda, Paulo Borges mandou-os procurar e escolher senzalas, abandonando a seus instintos, e deixando em liberdade de convivência o africano Raiol, e a crioula Esméria.