Poucos dias depois do seu festejado aniversário natalício, Cândida viu de súbito e com alegre emoção transformar-se o seu guarda-roupa, donde foram banidos os vestidos curtos de menina, e substituídos pelos de saia comprida que caem até os pés como se fosse longa e imensa nuvem do pudor a envolver completamente o corpo da donzela.
O primeiro vestido comprido é a realização de um dos grandes desejos da menina, que, sem saber por que, almeja ser moça: para ela, coitadinha, ser moça se resume em trazer vestido comprido, e em sua inocente ambição troca entusiasmada as vestes leves e graciosas de anjo pela túnica de mártir.
Foi em um domingo que Leonídia fez sua filha trajar o primeiro vestido comprido, querendo que ela tivesse em um dia de folga horas livres, tempo bastante para gozar as impressões dessa metamorfose e começar a habituar-se a ela.
Cândida não teve consciência, nenhuma menina talvez a tenha, do quanto perde em sua graça, e do que há de desjeitoso nos primeiros dias do seu vestido comprido, e de incompleto durante longos meses, enquanto outra e natural metamorfose não arredonda e aperfeiçoa as formas que há de tomar o corpo, sujeito ao labor profundo que misterioso e pouco a pouco se opera: encantada, como se encantam em igual caso todas as meninas, Cândida fez rir a seus pais, divertiu-os com a alegria que não disfarçava, e com certo ar de gravidade que tomava para honrar o seu vestido de moça, e mostrar-se digna dele.
Todavia essa gravidade pesada, imponente de quietação e de abandono dos brincos e distrações de menina, era afetação impossível por muito tempo: Cândida era travessa, e o dia de domingo dispensava os estudos: desejando ostentar seu novo trajo andou vinte vezes pela casa toda; sentou-se ao piano, levantou-se depois de breves minutos para mirar-se pela centésima vez ao espelho, riu-se, dançou sozinha, deitou a correr pelas salas como delirantemente, e em uma volta mais veloz enredou os pés na longa saia do vestido e caiu.
Florêncio, Leonídia, e Lucinda precipitaram-se para acudir a Cândida, que levantou-se, rindo-se; pois não tinha sofrido mal algum na queda; mas... o seu engraçado rir de repente se apagou: ah!... ela acabava de ver que rompera o seu lindo vestido; cuja barra se estendia em duas tiras pelo chão.
A menina não se pôde conter; desatou a chorar.
– Que moça, que chora assim! – disse-lhe o pai.
– O meu vestido!... – respondeu soluçando Cândida.
– Tens outros muito mais bonitos – acudiu Leonídia.
E voltando-se para Lucinda, disse-lhe:
– Vai dar outro vestido à tua senhora.
A menina voou para o seu quarto, e Lucinda a acompanhou.
A escolha do novo ou segundo vestido foi discutida e resolvida, custando muito à mucama vencer o desejo que a senhora teimosamente mostrava de experimentá-los todos.
Cândida em pé, imóvel, estática, diante de seu grande espelho que reproduzia toda a sua imagem, não sentiu a passagem rápida do tempo que gastou a mucama em abotoar-lhe o vestido, completar-lhe o toilette, e concertar-lhe o simples penteado.
– Está pronta – disse enfim a crioula.
A menina voltou-se então, mas vagarosamente e enquanto pôde com os olhos fitos no espelho e a cabeça inclinando-se para trás, a mirar-se contente: depois, encarando orgulhosamente a mucama, disse ainda uma vez:
– Estás vendo?... Já sou moça.
Lucinda fez um momo e sorriu-se maliciosa.
– Pois não sou?... – perguntou a menina admirada.
A mucama pareceu ou fingiu-se arrependida do movimento que lhe escapara e respondeu:
– Ah! Sim, já é; já tem vestido comprido.
Cândida compreendeu que a sua mucama lhe ocultava alguma coisa que ela não sabia relativamente à sua condição de moça, e com infantil curiosidade, tornou dizendo:
– Não me enganas; tu pensas que ainda não sou moça a despeito do meu vestido: que me falta então para sê-lo?
A escrava estremeceu.
– Eu não disse nada! – murmurou ela. – Minha senhora é que vem com idéias que me podem fazer mal...
– Como? Que idéias, Lucinda?...
– É que se a mãe de minha senhora a ouvisse, havia de pensar que estou ensinando malícias à minha senhora, e me castigaria, e me separaria para sempre de minha senhora...
Cândida ficou por alguns momentos confusa, absorta, e como querendo adivinhar um segredo impenetrável; depois disse:
– Não tenhas medo: eu nada direi a minha mãe.
E de novo, mas ainda por breve tempo refletiu ou cismou.
Lucinda estava evidentemente inquieta; a menina o percebeu, e lhe disse:
– Descansa: não te ouvi coisa alguma, e eu te juro que meu pai e minha mãe nada saberão, do que eu te ouvir.
No juramento da menina transudava já o interesse de uma curiosidade natural, mas cheia de perigos.
A crioula hábil e inteligente apreciou bem a poderosa garantia de segredo que lhe assegurava o interesse daquela curiosidade despertada, e não teve mais receios de comprometimento.
– Que faremos hoje?... – perguntou Cândida. – Que brinquedo inventaremos?... Eu quero festejar o meu vestido.
– Faremos o que minha senhora quiser.
– Vamos fazer um batizado da minha boneca nova, da Luisinha?
– A Luisinha já foi batizada no domingo passado: agora só se fosse crisma ou casamento...
– Pois bem: seja casamento...
– Como? Com quem?... Minha senhora só tem bonecas...
– Ora! Pois então?
– Seria preciso um boneco.
– Então a Luisinha não se pode casar com outra boneca?...
Lucinda olhou espantada para Cândida e disse:
— Ah!... Minha senhora aos onze anos de idade ainda é tão tola !
Tola não era qualificativo injurioso nesse caso.
Cândida não se supôs desrespeitada; mas por sua vez, surpresa, enleada, confundida, e anelante de explicações, com os lábios semi-abertos, com os olhos de belo azul cheios de brando fogo a romper, a destacar-se da prisão das órbitas, encarava atônita, pedinte de revelações, sondando abismos e trevas, sem poder ver na celeste e profunda noite da sua insciência e pedindo luz, luz que seria para ela raio angelicida.