A leviandade de Lucinda perturbou não pouco as doces alegrias de Cândida naquele domingo em que ela trajara o seu primeiro vestido de moça.
A menina por vezes mostrou-se distraída e cismando vagamente; todavia não dirigiu pergunta alguma à mucama, nem mesmo, quando se foi deitar; em seu leito, onde sempre tão fácil e descuidosa dormia, pensou inutilmente durante meia hora sobre o que lhe podia faltar para ser moça.
Despertando no dia seguinte, lembrou as palavras de Lucinda:
“Minha senhora aos onze anos de idade ainda é tão tola!”.
Recebeu sem desagrado a crioula que veio ajudar a vesti-la, não deixou perceber que se preocupava do que lhe ouvira na véspera, e nem nesse, nem nos seguintes dias pediu explicações a Lucinda.
Este proceder da menina era devido a dois influxos diversos, a um nobre e generoso princípio de educação, e aos assomos de pueril vaidade.
Cândida tinha por norma de suas ações não praticar coisa alguma que pudesse desgostar seus pais, que costumavam castigar-lhe os erros, fingindo-se ofendidos por ela e manifestando-lhe sua mágoa em calculada tristeza: ora Lucinda lhe tinha dito que sua mãe podia supor que ela lhe estava ensinando malícias e que havia de puni-la por isso. Era pois evidente que o segredo, cuja revelação desejava, continha algum mal, e que o seu conhecimento desse segredo desgostaria seus pais.
Por outro lado a mucama a chamara tola, querendo chamá-la ignorante, e ela que recebia lições de tantos mestres, que lia tantos livros em português, em francês e começava a lê-los em inglês, que já estudara geografia e estava estudando história, ela que sabia tanto, vexava-se, não tolerava a idéia de parecer ignorante à sua mucama, em matéria que todas as moças da sua idade deviam saber, conforme se deduzia da observação de Lucinda.
Entretanto apesar do princípio de educação, e do ressentimento da sua vaidade de menina, Cândida lembrava sempre o momo que fizera, e as palavras que dissera a sua mucama.
A curiosidade impelia essa mimosa filha de Eva, e à porta do paraíso da câmara virginal dormia a serpente da perdição.
A menina resistiu heroicamente duas semanas, leu e releu livros, consultou seus dicionários, procurando luz, e achou-se em um labirinto de idéias incompletas e obscuríssimas; tateando nas trevas e sem condutor, chegou a entrar em caminhos de suspeitas vagas de um mistério cuja existência suspeitou, e cuja compreensão e esclarecimentos em vão buscou com ardor em seus livros.
Era demais para a sua curiosidade, que aumentava com as longas e duvidosas conjecturas filhas de estudo sem guia.
Uma noite Cândida recolheu-se mais cedo ao seu quarto, e sentou-se a examinar os novos jornais de modas que recebera de Paris: Lucinda de pé atrás da cadeira sobre o encosto da qual apoiara a mão esquerda, dobrava um pouco o tronco e avançava a cabeça pelo lado direito de sua senhora para ver também e apreciar os figurinos.
Esta liberdade tomada pela mucama indicava bem o grau de confiança que ela já gozava.
Cândida demorou-se a admirar um figurino.
– Que elegante corpinho de vestido! – exclamou Cândida.
– É verdade, minha senhora! – disse Lucinda.
– Eu quero um assim para o dia de meus anos.
– Não, minha senhora; ainda é cedo: os enfeites, e o talhe deste corpinho só assentam e sobressaem em moça feita.
Cândida deixou cair sobre a mesa o figurino que sustinha entre as mãos e, sem olhar para a mucama, perguntou abaixando a voz:
– Que é moça feita, Lucinda?...
A crioula pôs-se a rir.
A menina levantou-se e disse:
– Não quero que te rias: o teu rir me faz mal.
– Minha senhora ainda é menina – respondeu a crioula.
– E tu, que és um ano mais velha que eu, tu já és moça?
– Eu já sou.
– É por isso que sabes mais do que eu – tornou a vaidosa.
– É por isso e porque sou negra escrava; com as escravas não precisa haver cuidados; nós não temos de casar-nos.
A idéia do casamento atirada ali de mistura com a de moça feita confundiu ainda mais a pobre e curiosa menina abandonada à companhia da mulher escrava.
– Mas que é ser moça, Lucinda? Como ficaste moça? Eu hei de sê-lo também dentro em pouco, não é verdade?
– Decerto... não tarda...
– E eu que pensei que já o era!... Deveras sou tola... Mas que me falta?... Como é isto?...
A menina não podia mais abafar a sua curiosidade e abatia-se, pedindo a lição forçosamente agreste, escabrosa e imoral da escrava-mestra.
– Minha senhora talvez fale... talvez mostre que sabe, e eu ficarei perdida.
– Não, não falarei; eu sei guardar segredo; juro por Deus que ninguém saberá o que me confiares...
– Com efeito, parece incrível! Minha senhora quase com doze anos e tão tola assim!
– Explica-me.
– Pois sim: sente-se minha senhora outra vez, e pegue nos figurinos.
– Para quê?...
– Pode a senhora entrar de repente, e convém que pense que minha senhora me está mostrando os figurinos.
A senhora de quem Lucinda falava, era Leonídia.
A lição começava pois pelo ardil e dissimulação com que a filha devia preparar-se para enganar sua mãe.
Cândida esqueceu logo nessa noite as noções de lealdade, de respeito, de encantado e suave amor que até então soubera zelar e que devia sempre a Leonídia, sua mãe, e portanto a mais segura, dedicada e providencial amiga que uma filha pode ter no mundo.
Desvairada pela curiosidade, escrava de sua escrava, infeliz vítima da vítima de uma opressão social, que é punida pela própria corrupção das criaturas humanas, que degrada, desnatura, deprava e empeçonha, mergulhando-as no imundo lenteiro dos vícios da escravidão, Cândida obedeceu a Lucinda, sentou-se, tomou entre suas mãos um figurino, fitou nele os olhos sem vê-lo, e isso calculadamente para enganar, atraiçoar ao amor estremecido, ao cuidado escrupuloso e santo daquela segunda providência a que se dá o nome de mãe, e abriu os ouvidos e prendeu a alma às palavras venenosas, às explicações necessariamente imorais da escrava.
As águas do charco inundaram a fonte pura.