Frederico amava Cândida: o seu amor era uma sublime mistura de dedicação fraternal e de paixão de amante extremoso: o seu amor era um monumento, em cujas bases entravam Leonídia, que lhe dera o leite de seus peitos e o cuidado maternal de seu berço, Leonídia, sua segunda mãe; Florêncio da Silva, que na sua infância o igualara a Liberato, no zelo da educação e nas carícias; Florêncio da Silva, seu segundo pai; Liberato, seu irmão colaço, seu irmão na escola, no colégio, e no coração; Cândida, menina, a idolatria de seus inocentes amores de irmão mais velho, Cândida moça, a beleza peregrina e a celeste virtude, que devia e podia fazer-lhe da vida paraíso.
Frederico amava Cândida com o mimoso culto da gratidão, com o nobre culto da virtude, com as puras magias da infância, com as poesias da mocidade, com as flamas ardentes do amor que inspira a formosura.
Era um amor em que se identificavam todos os grandes amores do homem.
Em Frederico, tinha Cândida dois enérgicos e poderosos amores, o amor do coração e o amor da razão, ambos igualmente fortes e generosos pelo caráter do virtuoso mancebo.
Frederico sabia que era desagradável de figura e receava por isso não ser amado por Cândida: esse receio atormentava-o: ver Cândida amante e esposa de outro homem, era a apreensão de uma noite perpétua na sua vida; mas para ele, o sacrifício da filha de Leonídia e de Florêncio da Silva, da irmã de Liberato, da sua amada menina da infância, o sacrifício de Cândida sua esposa, por obediência e sem amor, era um crime de ingratidão, um sacrilégio que lhe tornaria a vida pior do que noite perpétua, remorso perpétuo. Ele sentia-se capaz de defender o coração de Cândida contra si, embora perdido para si esse coração, o mundo se lhe antolhasse insuportável .
Na grandeza e na generosidade do seu amor, o prudente mancebo não se confundira com os indiscretos apaixonados, que dão em espetáculo a donzela que amam, obrigando-a à pública ostentação de afetos que ainda não têm a sagração que os autoriza à face da sociedade, nem, em suas conversações com a adorada moça, ofendera a santidade do seu sentimento, procurando exprimi-lo e fazê-lo sentir por meio desses ademanes artificiais e vulgares, e dos discursos bombásticos e do dilúvio de juramentos, que são a eloqüência sublime dos namoradores de oficio e dos namorados ridículos.
Zeloso, porém, anelante e completamente cativo dos encantos de Cândida, Frederico a acompanhava de contínuo com os desvelos do coração com a vigilância do receio, e com aquela visão do espírito que acha luz nas próprias sombras do disfarce, e penetra os véus da dissimulação, adivinhando a verdade escondida.
Assim foi que, antes de todos, suspeitou ele do galanteio ou do amor nascente de Cândida e Souvanel: não podia dizer qual era o fundamento real da sua suspeita; mas em seu ânimo como que pressentia galanteio ou amor naquelas lições de canto, na atmosfera que cercava o mestre e a discípula, e na própria serenidade que ambos afetavam.
Frederico quis duvidar; mas a suspeita o perseguia indômita. O dueto de Torquato Tasso veio indiciar nas lágrimas de Cândida o sentimento que ela já abrigava no coração.
O nobre e amoroso mancebo tocava quase a certeza do seu infortúnio; nas ânsias tormentosas do seio, cavou silencioso a sepultura do seu magnífico amor; sofreu como sofrem as grandes almas; refletiu, porém: ou Cândida amava realmente Souvanel ou se prestava à comédia sacrílega do fingimento de transportada paixão: em ambas as hipóteses, era lamentável a leviandade com que a donzela se comprometia, prendendo-se ou simulando prender-se a um estrangeiro, cujo passado ninguém esclarecia, e cuja moralidade se patenteava negativa por essa mesma solicitude amorosa, que era ingrato abuso de confiança: em ambas as hipóteses, portanto, Cândida perdera muito na estimação que lhe merecera: na segunda hipótese, não podia mais ser sua noiva, pois que nunca tomaria por esposa quem tão fácil se abandonava à indignidade do galanteio: na primeira do mesmo modo, o seu casamento se tornara impossível, pois que outro homem enchia com a sua imagem e suave domínio a alma dessa mulher que ele tanto adorava.
Que lhe cumpria fazer?... Fugir de Cândida, apressar sob qualquer pretexto sua viagem para a América do Norte?... Frederico repeliu idéia: à força de muito refletir e talvez ainda tendo o seu amor agarrado a uma tênue esperança, pensou que bem pudera o ciúme ter iludido o seu espírito, inventando o que não existia, e caluniando inocente donzela: quando tudo fosse verdade, quando a paixão mais louca estivesse incendiando o seio da pobre moça, ele tinha o direito de não a querer mais para sua noiva; tinha, porém, o dever de velar como amigo, pela filha de Leonídia, sua segunda mãe, pela filha de Florêncio da Silva, que em seus primeiros anos lhe fizera as vezes de pai extremoso, pela irmã de Liberato, seu colaço, e seu fiel amigo.
Nesse melindre de sensibilidade, nessa poética aspiração de pureza, de angélica virgindade de coração na mulher com quem tivesse de casar-se, nessa grandiosidade de sentimentos que lhe impunham o religioso dever de dedicar-se ainda a Cândida, como amigo, depois de senti-la amesquinhada na sua estima, Frederico obedecia às inspirações de sua natureza heróica, e à virtude de seu grave e admirável caráter.
Amando extremosamente Cândida, reconhecia-se capaz de tomá-la pela mão, e de levá-la ao altar, para aí ver com os seus olhos o sacerdote abençoar os laços de sua união com outro homem, que fosse digno dela, e por ela amado. Na imensa dor desse sacrifício, acharia consolação na felicidade de Cândida, e, lamentando a própria desdita, seria amigo leal do esposo da filha de Florêncio e Leonídia, e da irmã de Liberato.
Mas Souvanel quem era? .. Que homem era? .. Frederico também relacionara se com ele na Alemanha; nunca porém o honrara com a sua confiança, e mais de uma vez dissera a Liberato, que a pretendida proscrição política, podia ser tão real, como embusteira, e que no suposto proscrito havia a decifrar um enigma, ou de homem exaltado, mas honesto, ou de especulador sem consciência.
O especulador sem consciência principiava a revelar-se à observação de Frederico, que ainda querendo duvidar, porque amava, e convencer-se até a evidência, porque era prudente e justo, depois de triste e longa noite de reflexões, resolveu esperar, ver, e friamente assegurar-se, e ser senhor do fatal segredo, que o ciúme lhe tinha já revelado.
Frederico não precisou esperar muito.