As festas, os banquetes, os saraus não terminavam, apenas se interrompiam.
Florêncio da Silva tomara para si dois dias, os últimos das grandes comemorações religiosas, a véspera e o Dia dos Reis: os últimos e portanto os mais ardentes de alegria, os precursores da despedida dos amigos, das famílias, que se deviam separar.
A casa de campo de Florêncio da Silva estava cheia de convidados, que deviam gozar dois dias de banquetes e de saraus, e à noite da véspera do Dia dos Reis, fogo de artifício às onze horas, e mais tarde recebimento de companhia cantadora dos Reis que se anunciara.
Era geral o júbilo, e como que havia delírio de exaltação.
Entre todos, só Frederico melancólico se obumbrava, embora às vezes revolto contra a própria tristeza, em reação calculada, se atirasse com ardor não costumado às contradanças, e aos jogos espirituosos de sociedade.
A noite de 5 de janeiro se adiantava no meio de inocentes folguedos.
Anunciou-se a hora do fogo.
As janelas eram apenas suficientes para as senhoras; quase todos os homens desceram para o terreiro.
As diversas peças de fogo dispostas com arte, iam arder em pontos destacados, projetando enchentes de luz sobre o jardim, o lago, os repuxos d’água, as árvores e a relva.
Havia multidão de curiosos, enchendo as ruas da grande chácara.
Frederico preocupado e melancólico, logo que chegou ao terreiro, afastou-se dos companheiros e foi para um lado da casa, onde o isolamento era mais certo, porque dali menos se apreciaria o fogo.
Nesse lugar de passageiro retiro, viu ele grande número de carros, descansando no chão os varais; os cocheiros e lacaios tinham ido admirar o fogo, em ponto mais favorável; um único pajem ali se deixara; esse porém dormia profundamente em estado de completa embriaguez.
Frederico vagou pensativo por entre os carros por algum tempo: de repente a luz de brilhantíssimo fogo inundou o espaço, e o mancebo, que parecia aborrecido da festa, abriu a portinhola de uma carruagem, subiu para ela, e cerrando as cortinas, submergiu-se em suas reflexões.
Passados breves minutos, duas vozes a princípio abafadas e logo mais livres se fizeram ouvir ao pé da carruagem, e arrancaram Frederico ao seu triste meditar.
– Podemos falar...
– Vê bem...
– Todos estão vendo o fogo e eu também quero ir vê-lo: anda depressa: entregaste a carta?
– Entreguei.
– E a resposta?
– Minha senhora não quer escrever...
– Então sinhá-moça não gosta do francês?
– Está doida por ele: nunca se mostrou tão caída com os outros namorados que tem tido: agora sim, creio que minha senhora caiu no laço.
– E como não escreve?
– Não tem tempo, não pode.
– Que diabo! O francês tinha-me prometido boa molhadura.
– Espera... eu tenho um recado.
– Vamos a ele, Lucinda; eu quero ver o fogo.
– Dize quanto antes ao francês, que apenas entrarem os cantadores dos Reis aproveite a confusão e vá imediatamente ao grupo de acácias do lado esquerdo do jardim, onde alguém lhe irá falar alguns instantes.
– Lucinda! – exclamou o pajem. – Isto é o diabo! Pois sinhá-moça se atreve... e depois?
– Que te importa o mais?
– E nós? Se meu senhor souber?... Se o francês...
– Guarda tu segredo: vai depressa...o francês te dará a molhadura, e eu amanhã te darei um abraço...
O pajem riu-se, fez a Lucinda um afago obsceno, e seguiu por um lado, enquanto a mucama de Cândida retirava-se por outro.
Frederico estava quase sufocado dentro da carruagem, faltava-lhe o ar, abriu a portinhola, saltou no chão, e ficou em pé e imóvel por algum tempo.
Com a mão agitada por convulsivo tremor, acudia a fronte, como querendo com o passar e repassar dos dedos, desbastar a multidão de turvas idéias que ondeavam nela.
Frederico nunca se precipitava: sentia-se possuído de indignação e de cruel responsabilidade. Acabava de testemunhar o despedaçamento da reputação de Cândida pelas línguas-punhais ervados de dois escravos: acabava de saber que a donzela que amava, e tão recatada presumira, já era conhecida por namoradeira, já tinha tido diversos namorados, já se aviltara, abandonando-se à má fama, que as bocas peçonhentas da cozinha e das senzalas sem dúvida propalavam; acabava enfim de ouvir um recado abjeto, pelo qual Cândida matara a honra de sua alma, e expunha à morte a honra do seu corpo.
O nobre mancebo descreu do brio de Cândida, e julgou-se ao menos curado de um amor imerecido e que pudera ter-lhe sido fatal. A desestima, talvez o ressentimento, aconselhavam-lhe com o desprezo o completo abandono dessa mulher indigna; essa mulher, porém, era mais do que filha de Florêncio da Silva, mais do que irmã de Liberato, mais do que afilhada de seu pai, era filha de Leonídia, a quem Frederico amava com extremo, com uma espécie de religioso culto, com aquela dedicação, com aquele devoto esquecimento de si, que acendem a flama que sublimiza a fé dos mártires: Frederico adorava em Leonídia a mãe, a bondade, e a virtude.
Só por Leonídia, ele ainda pensou em Cândida: os erros do passado da desastrada moça eram fatos e não podiam ser prevenidos: o perigo tremendo a que ia expor-se ainda felizmente estava em tempo de se atalhar; mas de que modo?... A denúncia da vergonhosa entrevista, sendo feita a Florêncio da Silva e a Liberato, chegaria a provocar imprudente desafronta; levada ao coração de Leonídia, seria horrível desencanto de sua glória maternal: nada era mais fácil do que impedir por qualquer meio o encontro escandaloso dos dois amantes nessa noite, nada mais difícil do que preveni-lo em alguma outra; falar a Cândida, esclarecê-la sobre a baixeza e o escândalo do seu proceder, fora talvez o alvitre mais sábio; repugnava, porém, a Frederico o dirigir-se àquela moça de coração estragado e de belo rosto hipócrita.
Espiar, era para o honesto e altivo mancebo ação ignóbil, e todavia nas circunstâncias em que se achava não viu expediente capaz de satisfazer seu empenho de poupar tormentos a Leonídia, desforço violento a Florêncio da Silva ou a Liberato e perdição irremediável a Cândida, senão surpreendendo os dois amantes na entrevista, punindo com a confusão a donzela e impondo a Souvanel pronta e imediata retirada da casa, que ameaçava com a ignomínia.
Tendo assim pensado e resolvido, Frederico saiu do meio dos carros, e voltou à companhia dos amigos, no meio dos quais encontrou Souvanel que lhe pareceu exaltado de júbilo.
O fogo de artifício terminou com aplausos estrondosos.
Meia hora depois a cavalgada dos cantadores dos Reis parou à porta da casa de Florêncio da Silva.
Frederico saiu desapercebidamente, foi direito ao grupo de acácias, e submergiu-se em um grupo de outros arbustos, que perto se destacavam.