Quando Frederico entrou, de volta, no salão, Cândida o interrogou com o olhar mais deprecador e meigo, e não se contentando com o sorriso bonançoso que tivera em resposta, soube preparar ocasião de ouvir o irmão adotivo que parecia desejar falar-lhe.
Frederico preveniu Cândida das suspeitas de sua mãe e do alvitre a que recorrera, para explicar a confusão em que ela os vira a ambos, à porta da câmara, na hora da ceia dada aos cantadores dos Reis.
– E por mim que te fui ingrata, tu te acusaste caluniando o teu coração, Frederico!... – disse a moça com os olhos úmidos de lágrimas.
– Contem-te – respondeu o mancebo. – Se queres provar-me gratidão, sê prudente, digna de nossa mãe e conta comigo.
Frederico deixara Leonídia, engrandecido pela consciência de sua generosidade e pela confiança que sua mãe nele depunha. Mais que nunca se reputava obrigado a velar por Cândida, e a defendê-la e salvá-la, ainda com o maior sacrifício pessoal. Duvidava muito do caráter e do merecimento moral de Souvanel; uma vez, porém, que os pudesse abonar, estava resolvido a proteger o amor de sua irmã. Não quisera confiar a Leonídia o segredo dos sentimentos de sua filha; porque ainda julgava poder impedir novos atos de leviandade e futuras conseqüências lamentáveis; mas à primeira desconfiança da lealdade de Cândida, que se acendesse em seu espírito, e em todo caso antes de sua viagem, se não se tivesse chegado a tratar do casamento com Souvanel, revelaria tudo em confidência de família.
O solene juramento que Leonídia o fizera prestar, aliás sem que preciso fosse, como dissera, coagiu-o todavia, ao cumprimento de um dever penoso.
Frederico sentia repugnância incalculável em travar conversação com Souvanel e ainda mais em aludir, falando-lhe, à cena de que fora testemunha, na noite antecedente; entendeu porém, que força era fazê-lo.
Esperou longo tempo: vendo enfim Souvanel descer ao terreiro, acompanhou-o, e lá a sós com ele, disse-lhe em tom grave e concisamente:
– M. Souvanel, sabe que Liberato é meu colaço, e portanto não preciso explicar-lhe o interesse que tomo por Cândida: ela é também minha irmã.
Souvanel não respondeu. Frederico prosseguiu:
– Depois do que ontem se passou diante de mim, M. Souvanel não pode demorar-se nesta casa além do dia de amanhã, que marcara para sua retirada. Sei que hoje deliberou estabelecer-se em nossa pobre cidade e que podem ser demorados os arranjos de alojamento. De volta à sala, meu pai lhe oferecerá uma casa que se acha mobiliada, e M. Souvanel a aceitará e irá amanhã ou depois de amanhã ocupá-la.
O tom imperativo de Frederico, irritou o francês, que cruzando os braços, perguntou:
– E se eu não aceitar a casa?
– É que está resolvido a ir desde amanhã hospedar-se em hotel.
Isto dizendo, Frederico deu as costas a Souvanel e retirava-se a passos vagarosos.
– Uma palavra! – disse o jovem francês.
O irmão adotivo de Cândida parou e voltou-se.
Souvanel, tomando de propósito o tom do costumado trato, que acabava de ser-lhe calculadamente negado, perguntou com voz segura e exigente de explicação:
– Frederico! Tens a idéia de provocar-me?...
– M. Souvanel – respondeu secamente Frederico –, nós não nos atuaremos mais, enquanto eu não me convencer por informações fidedignas, que vou procurar e pedir, de que falando-lhe, falo a um cavalheiro, um homem de bem.
Souvanel era bravo, e, dominando rápido e inexplicável estremecimento, se lançava impetuoso a tomar o passo a Frederico, que se ia em moroso andar; mas estacou imediatamente e ficou em pé, como preso ao solo e torcendo as mãos com raiva.
O cálculo do especulador encadeava a fúria do destemido duelista.
Souvanel deixou correr alguns minutos, refletindo, e dissipando a comoção; logo depois seguiu em direitura ao grupo de acácias, onde encontrou Lucinda a esperá-lo.
– Como o senhor demorou-se! – disse a escrava.
O francês acariciou Lucinda com lascivas meiguices e com indecentes lisonjas, assegurando-lhe constantes relações condenáveis.
A negra perguntou rindo-se e requebrando-se:
– E se casar com minha senhora...como há de ser?
– Eu te libertarei no dia do meu casamento, juro-o por todos os santos do céu, juro-o pela minha honra, que serás liberta...
– E adeus amores! – disse Lucinda.
– Oh não! Cândida será minha mulher; tu, porém, linda crioula, serás sempre a minha amante, e minha só...
– Palavras de branco que fala à negra...
– Palavra de francês que está doido por ti...
Souvanel, pretendente à mão de Cândida, era já amante sincero ou fingido da mucama da sua noiva desejada. A desmoralização do lar doméstico precedia o casamento e predispunha o adultério.
O pretendente noivo comprava a dedicação da escrava, atraiçoando previamente a esposa; a mucama prestava-se a vender a reputação e a honra da senhora a preço de esquálidos gozos.
O francês, especulador imoral, explorava os vícios e a influência maléfica, tenebrosa e fatal do elemento escravo, de uma vítima-algoz em proveito de seus planos egoístas e infames.
A escrava sacrificava a senhora sem piedade, talvez sem cálculo de vingança, mas por gosto de inqualificável corrupção...
Nos braços da escrava, servindo-lhe ao vício o interesseiro e perverso sedutor, estava pedindo ao demônio da escravidão a chave da porta da câmara virginal da donzela, cujo seio precisava manchar para ser senhor pela mancha...
O sedutor e a escrava abraçados se associavam, e a escrava, em frenesi de libertinagem, prometia ao sedutor entregar-lhe a senhora...
A vítima ia ser algoz...
Nessa mesma noite, Souvanel recebeu de Plácido Rodrigues o oferecimento de uma casa mobiliada, que para as ocasiões de festas, ou de demora na cidade de...., ele tinha de reserva, e, agradecendo com perfeita cortesia o favor, declarou que se alojaria provisoriamente em hotel, onde contava achar cômodos a seguir sistema de vida conforme os seus hábitos e costumes que lhe lembravam Paris.
Plácido Rodrigues insistiu debalde.
Frederico, impassível e frio, conservou-se mudo.
Cândida parecia indiferente.