A tia de Clarinha não se demorou oito dias em casa da sobrinha, demorou-se quinze dias. A boa velha estava encantada com o agasalho que encontrara aí.

Durante esse tempo não houve incidente algum que interesse à nossa história. O primeiro susto de Clarinha causado pelas palavras do marido desvaneceu-se à vista do procedimento posterior dele, que pareceu nada haver descoberto. Com efeito, Valentim, como homem atilado que era, entendeu que lhe não cumpria provocar uma declaração da parte de Clarinha. Julgou melhor estudar a situação e esperar os acontecimentos. Demais, ele nada tinha de positivo a alegar. Temia enganar-se e não se perdoaria nunca se fizesse a injúria de atribuir à sua mulher um delito que não existia. Deste modo, nunca fez alusão alguma nem mudou o procedimento; era o mesmo homem que no primeiro dia.

Valentim pensava ainda que a afeição que ele supunha existir em Clarinha pelo primo, talvez não passasse de uma ligeira afeição da infância, própria a desaparecer diante da idéia do dever. É verdade que isto anulava um pouco a sua própria pessoa, mas Valentim, para que não ficasse só ao tempo e aos bons instintos da moça a mudança do estado das coisas, cuidou de ajudar a um e aos outros deitando na balança a sua própria influência.

Seu cálculo foi este: ao passo que Ernesto perdesse no coração de Clarinha, graças à ausência e nobreza dos sentimentos dela, ele Valentim procuraria ganhar a influência do outro e substituí-lo no coração em litígio. Estavam as coisas neste pé, quando no qüinquagésimo dia apareceu em casa de Valentim... quem? o próprio Ernesto, meio enfermo ainda, cheio de uma palidez poética e fascinante.

Clarinha recebeu-o no jardim, por cuja porta Ernesto entrou.

Teve um movimento para abraçá-lo; mas recuou logo, corada e envergonhada. Baixou os olhos. Depois do casamento era a primeira vez que se viam. Ernesto aproximou-se para ela sem dizer palavra, e durante alguns minutos assim estiveram interditos, até que a tia veio pôr termo ao embaraço, entrando no jardim.

Mas, ao mesmo tempo que aquela cena se dava, Valentim, através dos vidros de uma das janelas da sala de jantar, tinha os olhos pregados em Clarinha e Ernesto. Viu tudo, o movimento dela quando Ernesto entrou e o movimento de reserva que se seguiu a esse. Quando a velha entrou Valentim desceu ao jardim.

A recepção da parte do marido foi a mais cordial e amiga; parecia que estava longe da cabeça dele a menor idéia de que os dois se amavam. Foi essa a última prova para Clarinha; mas isso a perdeu decerto, porque, confiada na boa fé de Valentim, entregou-se demasiado ao prazer de tornar a ver Ernesto. Esse prazer contrastava singularmente com a tristeza dos dias anteriores.

Não tenho o propósito de acompanhar dia por dia os acontecimentos da família Valentim. Apenas me ocuparei com aqueles que importarem à nossa história, e neste ponto entro já nas astúcias empregadas pelo marido para libertar a mulher do amor que ainda parecia conservar pelo primo.

Que astúcias foram essas? Valentim refletiu nelas uma noite inteira. Ele tinha diversos meios para empregar: uma viagem, por exemplo. Mas uma viagem não adiantaria nada; a ausência dava até mais incremento ao amor. Valentim compreendeu isso e desistiu logo da idéia. Que meio escolheu? Um: o ridículo.

Na verdade, o que há neste mundo que resista ao ridículo? Nem mesmo o amor. O marido perspicaz compreendeu que era esse o meio mais rápido.

Todavia, não tomou o ridículo senão naquilo que ele é de convenção, naquilo que o mundo aceita como tal, sem que o seja muitas vezes. Clarinha não podia resistir a esse. Era mulher como as outras.

Um dia, pois, estando reunida a família toda em casa de Valentim, e com ela muitas visitas mais, o marido de Clarinha convidou Ernesto, que se dava por cavaleiro perfeito, a ensaiar um cavalo que havia comprado.

— Onde está ele?

— Chegou ontem... é um animal lindíssimo.

— Mas onde está?

— Vai vê-lo.

Enquanto se deram ordens de aparelhar o cavalo, Ernesto dirigia-se às senhoras e dizia-lhes com ênfase:

— Desculpem se fizer má figura.

— Ora!

— Pode ser.

— Não acreditamos; há de fazer sempre boa figura.

— Talvez não.

— Quer que o elogiemos?

Aparelhado o cavalo, saiu Ernesto a montá-lo. Todos foram vê-lo do terraço.

O cavalo era um animal fogoso e manhoso. Ernesto saltou para ele com certa graça e agilidade que adquiriu logo os aplausos das damas, inclusive Clarinha.

Mal o cavalo sentiu o destro cavaleiro em seu dorso, começou a pinotear. Mas Ernesto susteve-se, e com tanta graça que as damas aplaudiram alegremente. Mas Valentim sabia o que fazia. Contava com o resultado da cena, e olhava tranqüilo o triunfo tão celebrado de Ernesto.

Esse resultado não se fez esperar. Não tardou muito que Ernesto não começasse a sentir que estava mal. Tanto bastou para que nunca mais pudesse dominar o animal. Este, como se pudesse conhecer o enfraquecimento do cavaleiro e os desejos secretos de Valentim, redobrou a violência dos seus movimentos. A cena tornou-se então mais séria. Um sorriso que pairava nos lábios de Ernesto desapareceu; o moço foi tomando uma posição grotesca quando só tinha presente a idéia de cair e não a idéia de que estava diante de mulheres, entre as quais estava Clarinha. Por mal dos pecados, se havia de cair como Hipólito, calado e nobre, começou a soltar uns gritos entrecortados. As damas assustaram-se, entre elas Clarinha, que mal podia dissimular o terror de que se achava possuída. Mas quando o cavalo, com um movimento mais violento, deitou o cavaleiro na relva, e que, depois de cair prosaicamente estendido, levantou-se sacudindo o paletó, houve uma grande gargalhada geral.

Então, Valentim, para tornar a situação de Ernesto mais ridícula ainda, mandou chegar o cavalo e montou.

— Aprende, olha, Ernesto.

E com efeito, Valentim, airoso e tranqüilo, sopeava os movimentos do animal e cumprimentava as senhoras. Foi uma tríplice bateria de aplausos. Nesse dia um foi o objeto das palmas de todos, como o outro fora o objeto da pateada geral.

O próprio Ernesto, que ao princípio quis meter o caso à bulha, não pôde fugir depois à humilhação da sua derrota. Essa humilhação foi completa quando Clarinha, mais compadecida que despeitada com a situação dele, procurou consolá-lo da figura que fizera. Ele viu nas consolações de Clarinha uma confirmação à sua derrota. E não está bem o amante que inspira mais compaixão que amor.

Ernesto reconheceu por instinto esse desastroso inconveniente; mas como remediá-lo? Curvou a cabeça e protestou não cair noutra. E deste modo terminou a sua primeira humilhação como termina o nosso quarto capítulo.