Lua-de-mel!
Há sempre uma lua-de-mel em todos os casamentos, não a houve no casamento de Valentim. O pobre noivo viu na reserva de Clarinha um acanhamento natural do estado em que ia entrar; mas desde que, passados os primeiros dias, a moça não saía do mesmo propósito, Valentim concluiu que havia enguia na erva.
O autor desta novela não se viu ainda em situação igual, nem também caiu num poço de cabeça para baixo, mas acredita que a impressão deve ser absolutamente a mesma.
Valentim fez o seguinte raciocínio:
— Se Clarinha não me ama é que ama alguém; esse alguém talvez não me valha, mas tem sobre mim a grande vantagem de ser preferido. Ora, esse alguém quem é?
Desde então a questão de Otelo entrou no espírito de Valentim e fez cama aí: ser ou não ser amado, tal era o problema do infeliz marido.
Amar uma mulher moça, bela, adorável e adorada; ter a subida glória de possuí-la de poucos dias, à face da Igreja, à face da sociedade; viver por ela e para ela; mas ter ao mesmo tempo a certeza de que diante de si não existe mais do que o corpo frio e insensível, e que a alma vagueia em busca da alma do outro; transformar-se ele, noivo e amante, em objeto de luxo, em simples pessoa oficial, sem um elo do coração, sem uma centelha de amor que lhe dê a posse inteira daquela que ama, tal era a miseranda e dolorosa situação de Valentim.
Como homem de espírito e de coração, o rapaz compreendeu a sua situação. Negá-la era absurdo, confessá-la no interior era ganhar metade do caminho, porque era saber o terreno que pisava. Valentim não se deteve em suposições vãs; assegurou-se da verdade e tratou de descobri-la.
Mas como? Perguntar à própria Clarinha, era inaugurar o casamento por uma desconsideração, e qualquer que fosse o direito que tivesse de resgatar o coração da mulher, Valentim não queria desprestigiá-la aos seus próprios olhos. Restava a pesquisa. Mas de que modo exercê-la? À casa dele não ia ninguém; e demais, se alguma coisa havia, devera ter começado em casa do pai. Interrogar o pai seria assisado? Valentim desistiu de toda a investigação do passado e dispôs-se simplesmente a analisar o presente.
A reserva de Clarinha não era uma dessas reservas que levam o desespero ao fundo do coração; era uma reserva dócil e submissa. E era exatamente isso o que feria o despeito e a vaidade de Valentim. A submissão de Clarinha parecia a resignação do condenado à morte. Valentim via nessa resignação um protesto mudo contra ele; cada olhar da moça parecia-lhe anunciar um remorso.
Uma tarde...
O leitor há de ter achado muito singular que eu não tenha marcado nesta novela os lugares em que se passam as diversas cenas de que ela se compõe. É de propósito que faço: limitei-me a dizer que a ação se passava no Rio de Janeiro. Fica à vontade do leitor marcar as ruas e até as casas.
Uma tarde, Valentim e Clarinha achavam-se no jardim. Se se amassem igualmente estariam àquela hora num verdadeiro céu; o sol parecia ter guardado um dos seus melhores ocasos para aquela tarde. Mas os dois esposos pareciam apenas dois conhecidos que por acaso se haviam encontrado num hotel; ela por uma reserva natural e que tinha explicação no amor de Ernesto, ele por uma reserva estudada, filha do ciúme e do despeito.
O sol morria numa das suas melhores mortes; uma aragem fresca agitava mansamente as folhas dos arbustos e trazia ao lugar onde se achavam os dois esposos o doce aroma das acácias e das magnólias.
Os dois estavam assentados em bancos de junco, colocados sobre um chão de relva; uma espécie de parede composta de trepadeiras formava por assim dizer o fundo do quadro. Perto ouvia-se o murmúrio de um regato que atravessava a chácara. Finalmente duas rolas brincavam a dez passos do chão.
Como se vê, a cena pedia uma conversação adequada em que se falasse de amor, de esperanças, de ilusões, enfim, de tudo quanto pudesse varrer da memória a boa prosa da vida.
Mas em que conversavam os dois? A descrição fez-nos perder as primeiras palavras do diálogo; mal podemos pilhar uma interrogação de Valentim.
— Mas, então, não és feliz? perguntou ele.
— Sou, respondeu a moça.
— Como dizes isso! parece que respondes a uma interrogação da morte!
Um triste sorriso passou pelos lábios de Clarinha.
Seguiu-se um breve silêncio, durante o qual Valentim considerava as botas e Clarinha analisava a barra do vestido.
— Pois olha, não me falta vontade... disse Valentim.
— Vontade de quê?
— De fazer-te feliz;
— Ah!
— Nem foi para outra coisa que eu te fui buscar à casa de teu pai. Amo-te muito, mas se eu soubera que tu não correspondias com o mesmo amor desistiria do meu intento, porque para mim é um duplo remorso ver o objeto de meu amor triste e desconsolado.
— Parece-te isso!
— E não é?
— Não é.
Clarinha procurou dar a esta última resposta uma expressão da maior ternura; mas se ela tivesse pedido um copo d'água teria empregado a mesmíssima expressão.
Valentim respondeu com um suspiro.
— Não sei como queres que eu te diga as coisas!
— Não quero nada; desde que eu te impusesse um modo de falar pode ser que eu me arrufasse menos, mas não era diversa a minha situação.
Clarinha levantou-se.
— Anda passear.
Valentim obedeceu, mas obedeceu maquinalmente.
— Então, ainda estás triste?
— Ah! se tu me amasses, Clarinha! respondeu Valentim.
— Pois não te... amo?
Valentim olhou para ela o murmurou:
— Não!
Valentim deu o braço a Clarinha e foram passear pelo jardim, dos mais bem arrumados e plantados da capital; a enxada, a tesoura e a simetria ajudavam ali o nascimento das rosas. A tarde caía, o céu tomava essa cor de chumbo que inspira tanta melancolia e convida a alma e o corpo ao repouso. Valentim parecia não ver nada disso; estava diante do seu tremendo infortúnio.
Clarinha, por seu lado, procurava distrair o marido, substituindo por algumas palavras de terno interesse o amor que lhe não tinha.
Valentim respondia por monossílabos ao princípio; depois a conversa foi-se empenhando e ao cabo de meia hora já Valentim mostrava-se menos sombrio, Clarinha procurava por esse modo acalmar o espírito do marido, quando ele insistia na conversação que ouvimos há pouco.
Uma coruja que acaba de cantar agora à janela traz-me à memória que eu devia apresentar em cena neste momento a tia de Clarinha.
Entra, portanto, a tia de Clarinha. Vem acompanhada de um moleque vestido de pajem. A moça vai lançar-se-lhe aos braços, e Valentim encaminha-se para ela com passo regular, para dar tempo às efusões de amizade. Mas aquele mesmo espetáculo da afeição que ligava a tia à sobrinha, a espontaneidade com que esta correra a receber àquela, mais o entristecia, comparando o que Clarinha era há pouco e o que era agora.
Findos os primeiros cumprimentos entraram todos em casa. A boa velha vinha passar oito dias com a sobrinha; Valentim fez um gesto de desgosto; mas a moça manifestou uma grande alegria com a visita da tia.
Valentim retirou-se para o seu gabinete e deixou às duas plena liberdade.
À mesa do chá falou-se de muita coisa; Clarinha indagava de tudo quanto era da casa do pai. Este devia vir no dia seguinte jantar com o genro.
Valentim pouco falou.
Mas lá para o meio do chá, Clarinha voltou-se para a tia e perguntou com certa timidez o que era feito de Ernesto. A moça procurou dar à pergunta o tom mais inocente do mundo; mas tão mal o fez que despertou a atenção do marido.
— Ah! respondeu a tia; está bom, isto é... está doente.
— Ah! de quê? perguntou a moça empalidecendo.
— De umas febres...
Clarinha calou-se, pálida como a morte.
Valentim tinha os olhos fixos nela. Um sorriso, meio de satisfação, meio de ódio, pairava-lhe nos lábios. Enfim o marido descobrira o segredo da reserva da mulher.
Seguiu-se um longo silêncio da parte de ambos, só interrompido pelo palavreado da tia, que afinal, depois de fazer algumas perguntas aos dois sem obter resposta, decidiu-se a reclamar contra aquele silêncio.
— Estamos ouvindo, minha tia, disse Valentim.
E tão significativas foram aquelas palavras, que Clarinha olhou para ele assustada.
— Estamos ouvindo, repetiu Valentim.
— Ah! pois bem... Como ia dizendo...
A conversa continuou até o fim do chá. Às onze horas todos se recolheram aos seus aposentos. É a melhor ocasião para terminar o terceiro capítulo e deixar que o leitor acenda um novo charuto.