IV. GARANHUNS

Na estação da modesta cidade, Carlos e Alfredo ficaram parados por algum tempo, sem saber o que deviam fazer... Foram depois andando, ao acaso, pelas ruas quase desertas, adormecidas, em silêncio, mal iluminadas, marginadas de casinhas pobres e baixas. Áquela hora, quase ninguém estava fora de casa; apenas alguns animais pastavam livremente, catando a erva que crescia entre as pedras. Carlos voltava-se, ansioso, para um e outro lado, procurando ver alguém, a quem pudesse perguntar onde era o escritório da Estrada de Ferro de Águas Belas. Enfim, á porta de uma casa, viu um velho, que lhe deu a informação desejada. Não era longe o escritório. Os dois meninos, reanimados, estugaram o passo; o mais velho ia cheio de esperança, arquitetando planos risonhos: ia saber notícias do pai, — e era quase certo que lhes dariam pousada, por aquela noite, quando soubessem que eram filhos do engenheiro. Mas quando, ao chegar à casa indicada, viu fechada a porta, sentiu frio no coração. Bateu, tornou a bater... Em vão. Por fim, um vizinho, abrindo a janela, indagou a causa do rumor.

— Não é aqui o escritório da Estrada?

— É. Mas aí ninguém dorme.

— E não me sabe dizer onde mora o engenheiro-chefe?

O homem deu indicações minuciosas, — e os dois seguiram. Mas, na casa do engenheiro-chefe, esperava-os nova decepção. Um criado, espanhol, disse-lhes que o patrão não estava: tinha partido, na véspera, para uma viagem. O pobre Carlos, cansado, enfraquecido, tonto de sono, ficou atônito e trêmulo, no meio da rua, no silêncio e na treva, sem uma idéia. Que fazer? Que havia de ser deles, — e, principalmente, do irmãozinho, tão criança, sem ter o que comer nem onde dormir? Lembrou-se de procurar um hotel: mas, se gastasse o pouco dinheiro que tinha, como poderia alugar os animais? — Pensava tristemente nisso, quando deu pela falta do irmão. Procurou-o por todos os lados, aflito, e ia gritar, chamar por ele, quando o viu sair, correndo de dentro de uma padaria. Trazia dois pães...

— Onde achaste esses pães? — Perguntou Carlos.

— Quando passávamos pela padaria lembrei-me que guardara cem réis, e comprei o nosso jantar. Toma um pão.

— Não! Guarda-o para ti, amanhã...

— Amanhã ainda está longe... E como queres que o guarde para mim, quando sei que também tens fome?

Andaram um pouco mais, comendo os pães; Carlos ia com a morte na alma, vendo que o irmão tropeçava nas pedras do caminho, já extenuado. Pararam no extremo da rua em que estavam. Já ali rareavam as casas. Viram um casebre humilde, fechado, com uma larga cobertura baixa, de sapê. Acolheram-se a esse abrigo providencial, aconchegaram-se, e adormeceram logo.

Rompia a manhã, quando Carlos ouviu que o chamavam:

— Iôiô! Iôiô!... Coitadinhos!

Era a velha preta, que já haviam encontrado no trem:

— Por que não bateram à porta? Vamos, vamos para dentro! Coitado do outro! Como está encolhidinho!

A boa velha levou-os para o interior do casebre. Era uma choupana rústica, mas asseada, com paredes de barro preto, e chão duro, batido de torrões. A um canto o fogão, ao centro uma mesa de madeira tosca; alguns bancos de pau, e o catre, em que dormia a dona da casa, completavam a mobília. A velha trouxe-lhes logo um grande pedaço de cuscuz, e um mingau saboroso, espécie de papa mole, feita de milho azedo. Os dois rapazes comeram, com vivo prazer, aquelas boas coisas, que lhes parecia terem caído do céu. O pequeno Alfredo, fazendo honra ao banquete, não deixava de olhar toda a casa, examinando tudo, a mobília, as cordas onde secava a roupa, e os “registros” de santos pregados às paredes. Mas, o que mais lhe prendia a atenção era o quintal, entrevisto através da porta do fundo. Assim que acabou de comer, correu para lá. De um lado ficava uma pequena horta, onde, em canteiros bem tratados, se alinhavam as couves, os quiabos, as ervilhas; do outro lado ficava o cercado da criação: havia galinhas, patos, perus, um porco, e uma cabrita. Tudo aquilo revelava um cuidado constante; tudo estava limpo e varrido; e, contra o muro, enfileiravam-se as enxadas, os regadores, as vassouras, as foices... Foi Carlos quem foi arrancar o irmão dali. O dia ia alto, e era tempo de seguir viagem.

Abraçaram a boa preta, agradecendo-lhe a hospitalidade generosa. Alfredo ainda levou um grande embrulho com amendoins torrados, — último presente da caridosa africana. Seguiram, a caminho do escritório. Mas, antes de lá chegarem, houve um episódio que os interessou. Caíram no meio de uma compacta multidão, que cercava dois homens em luta. Eram dois do povo, engalfinhados, rolando no pó, esmurrando-se. Ouviram apitos, e apareceram soldados. Alfredo, atordoado deixou cair no chão o saco dos amendoins, e pôs-se a tremer.

— Não te assustes! Que é isso?! — disse-lhe o irmão.

— Não nos vão eles prender, Carlos!

— Estás louco? Pois não vês que eles não têm o direito de prender-nos?... Pois, se nada fizemos... Deixa-te de tolices, e vamo-nos embora!

— Mas porque foi que prenderam aqueles homens?

— Porque estavam brigando, e podiam matar-se ou ferir-se.

— E quem os mandou prender?

— As autoridades, naturalmente...