V. A CAVALO

Quando chegaram no escritório da Estrada de Ferro de Águas Belas, Carlos e Alfredo encontraram um moço, engenheiro e desenhista, que substituía o engenheiro em viagem. Chamava-se Cunha, era amigo do pai dos dois rapazes, e recebeu-os com amizade e carinho.

— É bem exata, infelizmente, — disse ele a Carlos — a notícia que receberam. Seu pai, o Dr. Meneses, está doente. Fui eu mesmo quem lhes passou o telegrama... Está doente, e bem longe daqui: se não fosse isso, já eu teria ido visitá-lo, e teria vindo com ele para Garanhuns, onde há mais conforto. Mas como posso ir até Boa Vista, à margem do rio São Francisco, quarenta léguas acima do extremo da Estrada de Ferro de Piranhas?

— Tão longe assim? — Perguntou Carlos, com espanto e mágoa.

— Sim. O chefe do serviço quis mandar a Boa Vista uma pessoa de confiança, e seu pai foi o escolhido. Assim que chegou, adoeceu. Comunicaram-nos logo a notícia, por carta: e, como poderia tratar-se de coisa grave, não hesitei em passar-lhes o telegrama que receberam.

— Bem! — Disse Carlos, depois de um segundo de reflexão. — Iremos a Boa Vista!

— E seu irmãozinho?

— Eu também irei! — Exclamou Alfredo.

— Impossível, meu filho! — Objetou, compadecido, o engenheiro. — A viagem é longa e penosa. É preciso viajar vinte e cinco léguas a cavalo até Piranhas, seguir por estrada de ferro até Jatobá, e daí subir, em canoa, quarenta léguas até Boa Vista. Essa não é viagem para uma criança.

— Seja como for, quero ir! — Teimou o menino, já com os olhos cheios de água.

O Dr. Cunha compreendeu que nada conseguiria insistindo. Foi logo dar as providências para a viagem: arranjou dois cavalos mansos, contratou, para acompanhar os dois viajantes, um homem conhecedor dos caminhos, e entregou ao mais velho dos irmãos o dinheiro necessário para as passagens e as despesas miúdas. Deu-lhes além disso uma carta de apresentação para o major Antônio Bento, que em Jatobá lhes forneceria os meios de subirem o rio em canoas.

Eram duas horas da tarde, quando a pequena caravana partiu de Garanhuns. A princípio, tudo correu bem. O guia era falador, e tagarelava sem cessar, respondendo às perguntas dos meninos. A tarde era linda e fresca. Alfredo divertia-se extraordinariamente com aquele modo, para ele novo, de viajar: deliciava-se com o balanço do andar do animal, e ia encantado, fazendo perguntas sobre perguntas. O próprio Carlos parecia menos triste, menos preocupado com a doença do pai... Mas, depois de duas horas de viagem Alfredo começou a sentir-se fatigado: doíam-lhe as costas e as pernas; voltava-se, ora para um, ora para outro lado, procurando uma posição mais cômoda. Carlos compreendeu o seu sofrimento, e tentou distraí-lo:

— Sabes para onde vamos?

— Não. Para onde? — Perguntou o pequeno, já com os olhos acesos de curiosidade.

— Vamos para o Estado de Alagoas, e na direção do Estado da Bahia. Não te lembras da capital da Bahia, por onde passamos há cinco anos? É a cidade mais velha do Brasil. Foi na Bahia que viveu o Caramuru.

— Que Caramuru?

— Caramuru — começou Carlos a narrar — foi o nome que os índios deram a um certo Diogo Álvares, português, que naufragou na Bahia ali por volta de 1510. Aprisionado pelos índios, Diogo Álvares ia ser por eles comido...

— Comido?

— Sim. Os selvagens do Brasil eram antropófagos, isto é: comiam os seus prisioneiros. Diogo Álvares ia ser comido, quando teve a feliz idéia de fazer fogo, com a espingarda que trazia, sobre um pássaro. Ouvindo o estrondo da arma, que não conheciam, vendo o pássaro cair fulminado, os índios prostraram-se por terra, e adoraram o náufrago português, a quem deram o nome de Caramuru.

— Mas, que quer dizer essa palavra?

— Dizem uns que, na língua selvagem, Caramuru queria dizer senhor do raio, filho do trovão; e dizem outros que com esse nome designavam os indígenas uma espécie de peixe elétrico, uma enguia, cujo contato fazia estremecer a mão que a tocava. Seja como for, Diogo Álvares salvou-se, e viveu muito tempo entre os índios, casando-se com uma rapariga da tribo, Paraguaçu, que, depois de batizada, recebeu o nome cristão de Catarina. Quando, em 1534, Martim Afonso chegou à Bahia, ainda encontrou Caramuru, que teve muitos filhos, e prestou grandes serviços à colonização do norte do Brasil.

— Que história interessante! — Exclamou Alfredo.

— Houve também um português, que naufragou mais para o sul, em 1512, em São Vicente, onde é hoje a cidade de Santos, no Estado de São Paulo. Também esse, que se chamava João Ramalho, escapou de ser devorado pelos índios e chegou a dominá-los de tal modo que com eles viveu até idade avançada, constituindo família e sendo encarregado mais tarde, por Martim Afonso, do governo da colônia ou vila militar de Piratininga, que foi a origem da atual cidade de São Paulo.

— Mas parece impossível que os índios pudessem comer carne humana! Que coisa horrível, Carlos!

— Ah! A vida dos selvagens era muito diferente da nossa, em tudo...

— Como viviam eles? — Perguntou o pequeno cada vez mais interessado.

Carlos não quis deixar de continuar a distraí-lo; e, enquanto os animais trotavam, falou deste modo: