XLV. NUM VALO

O dia, seguinte ao da leitura dos jornais, passou-se sem novidade. À tarde, apareceu na oficina o aprendiz que tinha enfermado; vinha bom, e pronto para recomeçar a trabalhar no outro dia. Carlos chegou a estimar a ocorrência, porque todo o seu desejo, agora, era partir o mais depressa possível para a Baía. O ferreiro, que era bom homem, deu a Juvêncio dois mil réis, com que este, antes de se deitar, comprou alguns víveres, carne e pão, para a viagem. Dormiram e ao romper da manhã, puseram-se a caminho. Os meninos carregavam a matalotagem, e Juvêncio uma cabaça cheia de água.

Enquanto marchavam, iam conversando sobre a grande novidade que os preocupava. Quem seria aquele negociante da Baía? — que interesse teria ele em conhecer o paradeiro dos dois? Qual seria o intuito do anúncio?

— Só pode ser bom! — disse Juvêncio. — Os senhores não têm parentes na Baía?

— Não. É verdade que meu pai devia ter por lá alguns conhecidos... — disse Carlos. — Os únicos parentes que temos estão no Rio Grande do Sul.

— Bom. Mas esses parentes já devem Ter recebido a notícia da morte de seu pai; talvez o negociante da Baía seja amigo deles.

— Talvez. Em todo o caso, tiraremos a cousa a limpo, quando lá chegarmos.

Alfredo que ia um pouco adiante, parou de súbito, e inclinou a cabeça, como prestando atenção a um ruído.

— Que é? — perguntou-lhe o irmão.

— Psiu! — recomendou o menino.

E continuou a prestar atenção, voltando-se ora para um, ora para outro lado.

Os outros aproximaram-se.

— O que é? — repetiu Carlos.

— Estou ouvindo qualquer cousa como um gemido... Ouçam...

Carlos e Juvêncio afiaram o ouvido. Havia, de fato, alguma cousa. Era um como lamento longínquo...

— É voz humana! — murmurou Carlos.

— E vem dali, de dentro do mato, à esquerda... — acrescentou Juvêncio.

Seguiram, nessa direção. Os gemidos acentuavam-se. Chegaram a um valo, cavado no mato, perto do caminho; reconheceram que era efetivamente dali que partia a voz. Debruçaram-se, e viram lá em baixo um vulto estirado sobre os galhos secos. Era um velho.

— Está morto, coitado! — exclamou Alfredo.

— Qual morto! — disse Juvêncio — vosmecê já ouviu um morto gemer? Está vivo, e devemos socorrê-lo!

— Está claro! — afirmaram ao mesmo tempo os dois irmãos.

— O que eu não sei é como havemos de tirá-lo dali! Vejamos se ele é capaz de nos ouvir.

E falou alto:

— Que é isso, camarada? Que tem?

— Socorro! Acudam-me! — gemeu a voz lá em baixo.

Era uma voz tão fraca, tão abafada, que parecia a de um moribundo.

— Vamos tratar de ajudá-lo! Espere um pouco!

Os três rapazes, debruçados sobre o valo, viram então mover-se vagarosamente, entre gemidos, a face do velho. As suas longas barbas brancas estavam ensangüentadas...

Não longe do lugar, ouviu-se logo um relincho prolongado. Entre as árvores, viram os rapazes um cavalo, que pastava tranqüilamente.

— Que mistério será este? — disse Juvêncio.

— Água... tenho... sede... — sussurrou a voz do velho...

— Vou descer! — resolveu o sertanejo.

Apertou bem a corda que lhe atava às costas a cabaça, e deixou cair, com cautela, pelo declive, agarrando-se às plantas, apoiando os pés nos troncos secos. Em poucos segundos estava perto do homem e reconheceu que ele estava gravemente ferido. Levantou-lhe a cabeça, encostou-lhe à boca o gargalo da cabaça, e quando o viu saciado, refrescou-lhe a cabeça e a face com um pouco de água. O velho, reanimado, pôde então, em frases entrecortadas, explicar mais ou menos o que lhe acontecera.

Caíra do cavalo, rolara ali, e sentia bem que ia morrer...

— Quem é o senhor? — perguntou Juvêncio.

— Chamo-me Ricardo. Moro aqui perto, na vila de Jaguarí... Tenho lá a minha família...

— O cavalo que está lá em cima é seu?

— Deve... ser...

— Bem! Tenha paciência, que vou num instante à vila buscar socorros...

e gritou para cima:

— Seu Carlos!

— Hem!

— Veja se pode descer! Desça com cuidado! Preciso do senhor aqui...

— De mim também? — perguntou Alfredo.

— Não! Espere por mim...

Carlos desceu, sem grande dificuldade. Quando o viu ao seu lado, o rapaz avisou-o do que ia fazer: montaria o cavalo, e iria num momento à vila, enquanto ele, Carlos, ficaria ali, tomando conta do enfermo.

— E Alfredo?

— Vai comigo. Levo-o na garupa.

— Pois sim! — aprovou Carlos — mas não se demore!

— É um pulo!

E agarrando-se de novo às plantas e às pedras o sertanejo galgou a borda do valo.