XVII. UMA CAMA IMPROVISADA
Neste ponto da narrativa, Juvêncio notou que Alfredo, apesar de ouvi-lo com atenção, estava como constrangido, agitando-se continuamente:
— O senhor está com sono... Vamos tratar de dormir, e amanhã continuarei a minha história.
— Não! — exclamou o menino — estou fatigado, mas não tenho sono: prefiro ouvir já o resto da história.
— É melhor! — apoio Carlos — além disso, assim mesmo, sentados, é que passaremos toda a noite...
— Isso é que não! — objetou Juvêncio — vou mostrar-lhes já como se arranja num momento uma cama. Temos ali aquele couro: vamos estendê-lo no chão, e arranjar dentro dele um travesseiro, com a trouxa da roupa. Vosmecês dormirão muito bem nessa cama improvisada.
— E você?
— Ah! Estou acostumado a dormir em qualquer parte. Estiro-me no chão, e durmo como um príncipe.
— Nunca! — exclamou Carlos — porque é que havemos de dormir com mais comodidade do que você? Já basta o que você tem feito por nós!
— Pois não seja essa a dúvida! — disse Juvêncio. — Caberemos os três dentro do couro!
Alfredo ergueu-se , e, chegando à porta do rancho, espiou a noite:
— Ih! Como está escuro!
Era uma noite sem luar. Mal se divisavam os vultos negros das árvores mais próximas. Mas o céu estava cheio de estrelas. O sítio permanecia quieto, silencioso, adormecido, numa serenidade infinda. De longe, vinha uma viração fresca e suave, que acariciava a face do menino. Carlos e Juvêncio, que tinham seguido Alfredo até a porta, ficaram ali apreciando aquela calma da noite.
— Sim! — disse o rapaz sertanejo — a noite está escura, mas tranqüila e estrelada. Felizmente para nós! Se fosse uma noite de tempestade, então teríamos de sofrer horrores, aqui, sozinhos, neste deserto! E as trovoadas por aqui são medonhas... Já vi chover pedra, — cada pedra do tamanho de um ovo de pomba. Depois as pedras desmancham-se em água; — mas, quando caem, quebram telhados, e arruinam plantações inteiras...
— E são pedras verdadeiras?
— São pedras de gelo. Vamos para a nossa cama, ou antes para o nosso couro! Daqui a pouco, hei de contar-lhes como passei uma noite dessas, sozinho, no meio do mato.
A cama foi improvisada em minutos; reforçaram e atiçaram a fogueira, ajuntando-lhe mais lenha; e Juvêncio continuou a contar a sua história:
“Quando vi aparecer o malvado, dizendo que era meu tutor, fiquei frio. Tive ímpetos de atirar sobre ele a tenaz em brasa que segurava, mas contive-me, e, dizendo que ia despedir-me do mestre, dirigi-me para o interior da oficina, de onde saí pelos fundos. Corri até a casa de minha madrinha. Ela, como já disse, morava com a irmã.
“A casa ficava longe, retirada, no extremo da vila. Naquele lugar, houvera antigamente uma aldeia de índios, de que ainda se viam vestígios.
“Quando cheguei, contei o caso a minha madrinha, e disse-lhe terminantemente que não me submeteria a viver com aquele malvado. Ela concordou; e, depois de procurarmos durante muito tempo, eu, ela e a irmã, o meio de salvar-me combinamos que eu iria à casa de um conhecido delas, um pouco afastada dali, e lá ficaria durante algum tempo à espera de uma solução. Abracei-as, e saí. O que eu deveria ter feito era seguir logo para o meu destino; mas não quis deixar de despedir-me do mestre, e voltei à oficina. Foi a minha desgraça!
“Assim que eu cheguei, vi-me cercado por dois soldados, e um oficial de justiça. O malvado também lá estava... Vendo-me perdido, não me pude mais conter, e, levantando a voz, disse-lhe tudo quanto pensava da sua maldade. Disse-lhe que ele só fazia aquilo para compelir minha madrinha, privada do meu auxílio, a voltar para a sua companhia; disse-lhe que o que ele queria era viver à custa dela...
“Ouvindo-me, viu com perversidade, e disse: — “Hei de ensinar-te! — E levou-me, não à casa do ferreiro, mas à casa do alfaiate, e entregou-me ao poder do antigo mestre. Ao retirar-se, intimou: — Se não me apareceres à noite, saberei achar-te, e ficarás preso num quarto, um mês sendo castigado todos os dias!
Não me intimidei com a ameaça: assim que me vi na rua, voei para a casa de minha madrinha...