<poem> Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal-aventurados, disse o Arrais, tanto que chegou:
Dia. Venhais embora, enforcado! Que diz lá Garcia Moniz?
Enf. Eu te direi que ele diz: que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz[1], e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado.
Dia. Entra cá, governarás atá as portas do Inferno.
Enf. Nom é essa a nau que eu governo.
Dia. Mando-te eu que aqui irás.
Enf. Oh! nom praza a Barrabás! Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz são livres de Satanás...
E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado; e que fosse Deus louvado que em bo'hora eu cá nascera; e que o Senhor m'escolhera; e por bem vi[2] beleguins. E com isto mil latins, mui lindos, feitos de cera.
E, no passo derradeiro, me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro; nem guardião do moesteiro nom tinha tão santa gente como Afonso Valente que é agora carcereiro.
Dia. Dava-te consolação isso, ou algum esforço?
Enf. Com o baraço[3] no pescoço, mui mal presta a pregação... E ele leva a devação[4] que há-de tornar a jentar... Mas quem há-de estar no ar avorrece-lhe[5] o sermão.
Dia. Entra, entra no batel, que ao Inferno hás-de ir!
Enf. O Moniz há-de mentir? Disse-me que com São Miguel jentaria pão e mel tanto que fosse enforcado. Ora, já passei meu fado, e já feito é o burel[6].
Agora não sei que é isso: não me falou em ribeira, nem barqueiro, nem barqueira, senão - logo ò Paraíso. Isto muito em seu siso[7]. E era santo o meu baraço[8]... Eu não sei que aqui faço: que é desta glória emproviso[9]?
Dia. Falou-te no Purgatório?
Enf. Disse que era o Limoeiro, e ora por ele o salteiro e o pregão vitatório[10]; e que era mui notório que àqueles deciprinados[11] eram horas dos finados e missas de São Gregório.
Dia. Quero-te desenganar: se o que disse tomaras, certo é que te salvaras. Não o quiseste tomar... - Alto! Todos a tirar[12], que está em seco o batel! - Saí vós, Frei Babriel! Ajudai ali a botar!
Vocabulário