Aventuras de Hans Staden (6ª edição)/Capítulo 7

VII

O FORTE DE BERTIOGA



HANS STADEN ficou em S. Vicente, colonia portuguesa situada numa ilha muito proxima do continente e que contava dois povoados: o de São Vicente, chamado pelos indios Ipanema [1], e outro de nome Enguaguassú [2]. Havia ainda pela ilha varios engenhos de açucar.

Os indios dessa região eram os tupiniquins, cujos dominios limitavam ao sul com a terra dos carijós, e ao norte com a dos tupinambás, tribus inimigas entre si.

Os tupinambás odiavam aos portugueses por se terem aliado aos tupiniquins, e como a cinco milhas de S. Vicente ficasse a Bertioga [3], onde havia um canal de facil entrada ás suas canoas, um grupo de irmãos mamelucos, lá residentes, tratou de erguer ali um forte. Era o meio de proteger contra as incursões desses indios as lavouras que começavam a formar-se nos arredores.

— Que é mameluco ?

— Chamavam-se mamelucos os nascidos no Brasil filhos de pai branco e mãe india. Esses irmãos eram Diogo João, Domingos, Francisco e André Braga, filhos de um tal Diogo Braga.

Com o auxilio de alguns portugueses e varios indios eles ergueram á entrada do canal um fortim, construiram casas e principiaram a cultivar as terras da Bertioga.

Logo que os tupinambás souberam disso preparam uma expedição contra esses colonos, e certa noite surgiram no canal em setenta canoas.

O ataque deu-se pela madrugada. Os mamelucos e portugueses entrincheiraram-se nas casas e resistiram heroicamente. Mas foram vencidos, embora pudessem milagrosamente fugir. O mesmo não aconteceu com os tupuniquins que viviam com os irmãos mamelucos, os quais foram mortos, divididos em postas e assim conduzidos para a terra tupinambá. Quanto ao forte, os indios puseram-lhe fogo e fizeram-no arder como grande fogueira.

— Conduzidos em postas? interrogou Narizinho. Para serem enterrados lá ?

— Não, minha filha : para serem comidos...

— Que horror ! exclamou a menina, fazendo uma careta de asco.

— Os tupinambás eram grandes apreciadores da carne humana, como vocês vão ver no decurso desta historia.

Depois do desastre, as autoridades e o povo de S. Vicente tomaram a peito reconstruir o forte, convencidos da sua necessidade para a defesa local, e ergueram no mesmo ponto um outro, maior e mais bem armado.

Logo depois os tupinambás, vendo que seria dificil passarem ao alcance desse novo forte, ladearam a Bertioga e cairam de improviso sobre S. Vicente, matando e aprisionando muitos moradores. Em vista disso os vicentinos cuidaram de erguer segundo forte em ponto que impedisse nova incursão daqueles terriveis inimigos.

Quando Hans Staden chegou a S. Vicente essa fortaleza estava com a construção interrompida em virtude de não existir por ali nenhum artilheiro que se arriscasse a morar nela.

Hans era artilheiro e corajoso. Os vicentinos propuseram-lhe o negocio: davam-lhe companheiros e boa paga, além de que ele ganharia a estima de El-Rei, sempre generoso com os que prestavam serviço ás suas colonias.

Hans aceitou a proposta, contratando-se por quatro meses.

Foi para lá com mais tres companheiros, aos quais ensinou o modo de lidar com as poucas peças existentes. Viviam muito vigilantes, porque além do forte não ser seguro o inimigo era audaz e manhoso.

Nesse entretempo os vicentinos escreveram a El-Rei, contando como era boa e bonita a terra onde moravam, prejudicada apenas pelo mal que aos seus moradores faziam os indios. E o rei mandou, para acudi-los, o coronel Tomé de Souza.

— Já havia coroneis naquele tempo, hein, vóvó! filosofou Pedrinho.

— Sim, meu filho, mas em menor numero que hoje — e melhores, como esse Tomé de Souza, que foi um benemerito.

Logo que este oficial chegou, os vicentinos lhe falaram com muitos elogios dos serviços de Hans Staden, da sua coragem e dedicação.

Tomé de Souza foi examinar o forte, louvou o intrepido artilheiro e prometeu recomendá-lo ao rei quando regressasse ao reino. E como estivesse a terminar o prazo dos quatro meses, Tomé de Souza propôs-lhe novo contrato por mais dois anos, findos os quais o reenviaria a Portugal pelo primeiro navio.

Hans aceitou e continuou no forte, já agora melhorado e aumentado de mais alguns canhões.

A vigilancia ali não cochilava, mas era maior em duas épocas do ano. Uma em novembro, quando amadurecia lo abatí, com o qual os selvagens preparavam o cauim.

— Abatí? exclamou Pedrinho. Pensei que o cauim fosse feito de milho.

— Abatí, respondeu dona Benta, era o nome dado pelos selvagens ao milho. De modo que você não pensou errado, meu filho.

— E cauim, que é, vóvó ? perguntou a menina.

— Era a bebida fermentada dos nossos indios. Cada povo possue a sua bebida nacional e os nossos indigenas não podiam fazer exceção á regra. Preparavam o cauim de um modo interessante: as mulheres mascavam o milho, lançando-o com a saliva em grandes vasilhas, onde ficava a fermentar.

— Modo interessante, diz vóvó? exclamou a menina com ar de nojo. Que porcaria !

— Para nós, explicou dona Benta; para nós, que temos outra cultura e modos de ver diferentes. Se você fosse uma indiazinha daqueles tempos havia de achar a coisa mais natural do mundo, e não deixaria de comparecer a todas as mascações de abati.

A outra época de vigilancia era em agosto, tempo em que as tainhas afluem á foz dos rios para a desova. Como esse peixe constituisse alimento muito precioso para os indios, não só pela abundancia, como porque de facil e longa conservação, em agosto as tribus desciam do interior afim de pescá-lo. Faziam da tainha uma passoca a que chamavam piracuí.

— "Pira" eu sei que é peixe, disse Pedrinho : Piracicaba, pirajuí, piracema, pirarucú...

— Isso mesmo, aprovou dona Benta; e "cui" significa farinha.

— Por que não falamos nós no Brasil a lingua dos indios, em vez da portuguesa ? Não era a lingua natural do país ?

— Quando numa região se chocam dois povos, como aqui, vence a lingua do mais forte. Os portugueses suplantaram os indios; era natural que predominasse a lingua portuguesa sobre a tupi. Mas a lingua brasileira, a que familiarmente falamos e que serve sobretudo as populações do interior do Brasil, é uma verdadeira mistura de português e tupi; tres quartos de português para um de tupi.

— E' verdade, vóvó, que a nossa lingua é a mais bonita e rica de todas?

— E' sim, minha filha, para nós; para os ingleses é a inglesa; para os franceses é a francesa, e assim por diante. Para os indios a mais bela está claro que seria a tupi.

— Que pena ser assim ! exclamou Narizinho.

— Pena por que, menina ?

— Porque então não ha uma primeira, de verdade.

— Tanto melhor. Sendo cada lingua a primeira para o povo que a fala, ha no mundo muito mais gente satisfeita do que se não fosse assim.


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Ilha ruim.
  2. Pilão grande.
  3. Lugar de tainhas.