III
O páteo da antiga Prisão por Dividas está com o
calçamento completamente estragado. Os muros, que o
cercam, são altissimos, e tão humidos, tão humidos, que
chegam a estillar agua... Era ahi, sob um céo cálido,
respirando uma atmosphera empesteada, que elle tomava
fresco, tendo sempre um guarda, de cada lado, porque
temiam que viesse a succumbir.
A’s vezes, costumava sentar-se entre aquelles que lhe vigiavam a Agonia; que o vigiavam, quando se levantava para chorar, ou quando se ajoelhava para rezar ; que o vigiavam a todo o momento, receiando que roubasse ao Patibulo a sua Prêza...
Duas vezes por dia, fumava no seu cachimbo, e bebia um caneco de cerveja... Su’Alma estava tão cheia de resolução e firmeza, que, em nenhum dos seus intimos recessos, abrigava o Medo... Em certas occasiões, elle chegava mesmo a dizer que se sentia contente por ver proximas as mãos do Carrasco.
Não obstante referir-se a cousas tão extranhas, os guardas não ousavam interrogal-o... Quem tem por missão vigiar Encarcerados, deve de fechar a bocca a sete chaves, e afivelar ao rosto a mascara da Impassibilidade.
Si assim não fizer, poderá, por ventura, commover-se, e tentar consolar o Prisioneiro que lhe confiarem... Nesse caso, que viria fazer a Piedade Humana, no Covil dos Assassinos ? !... Que palavra de Esperança poderia soccorrer, em tal logar, a Alma de um Irmão ? !...
Realisámos a Procissão dos Loucos, rodeando o páteo, em marcha lenta e cadenciada... Não nos importava celebrar essa ridicula ceremonia tradicional, pois bem sabiamos que eramos a propria Brigada do Diabo ; e que homens de cabeça raspada e pés acorrentados constitúem alegre Mascarada.
Quebrando as unhas e ensanguentando os dedos, desfiavamos cordas alcatroadas ; esfregavamos as portas das masmorras; limpavamos os tectos ; areiavamos os luzentes varões ; e, por turmas, ensaboavamos os assoalhos, fazendo grande ruído com os baldes d’agua.
Tambem cosiamos saccos ; quebravamos pedra ; batiamos no chão com as gamellas em que comiamos ; desentoavamos os Hymnos Religiosos ; e suavamos, fazendo mover a roda do moinho... Alegremente executavamos todos esses barbaros e pesados serviços, a que eramos obrigados, para ver si adormeciamos o Terror, tranquillamente, dentro do Coração.
E conseguimol-o, por momentos. Tão calmo repousava elle, que os dias deslisavam serenos, como uma balsa levada ao sabor da corrente... Estavamos já como que olvidados do tenebroso Destino que aguarda os Réprobos, quando, de uma feita, ao regressarmos de fatigante trabalho, passámos junto a uma cova recem-aberta.
Com a guela hyante, ameaçadoramente escancarada, aquelle buraco amarello abria a bocca, á espera de alimento... A propria lama reclamava sangue ao páteo de asphalto arruinado !... E soubemos que, antes de surgir a loura Aurora, um de nós balançar-se-ia no Espaço, pendente da Forca.
Hirtos e solennes, entrámos, com a Alma attenta á Morte, ao Espanto e ao Destino. O Carrasco passou, arrastando os pés, carregando o seu sacco de ferramentas... Cada Preso tremia, ao entrar para o seu Tumulo numerado...
Por toda aquella noite, os Phantasmas do Medo povoaram os corredores vasios... Na Cidade de Ferro, de cima a baixo, sentiam-se passos furtivos, que, porém, se não podiam ouvir... Pelas grades de ferro, que occultam as Estrellas, rostos lívidos pareciam espiar curiosamente...
Elle era o unico que repousava, tal alguem que adormecesse, deitado sobre a macia relva de um prado, e sonhasse alegremente... Os guardas velavam-lhe o somno ; e não comprehendiam como se póde dormir tão socegado, quando se está tão perto do Carrasco.
Os que choram por quem jamais soube o que era chorar, esses, sim, não pódem conciliar o somno !... Por isso, nós outros, os Desventurados, passámos em claro aquella noite d’infindavel Angustia... Cada qual soffria mais cruciantemente, ao recordar a Dôr immensa que devia de estar a tortural-o...
Ah ! é horrivel padecer-se por outrem !... O Soffrimento enterra-nos n’Alma, até o punho, toda a lamina envenenada do seu gládio... Foram como chumbo derretido, as lagrymas que carpimos, pelo sangue que não derramámos.
Os guardas, calçando sapatos de feltro sem salto, para não serem presentidos, rondavam, espiando para dentro das enxovias, pelos postigos gradeados... Com olhar de espanto e pavor, avistavam aquellas Fórmas indecisas, genuflexas no chão... E interrogavam-se uns aos outros, como era que oravamos por quem jamais orára !...
Passámos a noite inteira, ajoelhados, em oração — Dementes conduzindo o luto de um cadaver !— sentindo as extranhas e penosas sensações de quem vela o corpo d’algum Ente querido. E o sabor do Remorso era tal o de um vinho azedo, dado a beber numa esponja...
A Noite proseguia lentamente o seu curso, mas a Aurora parecia nunca mais querer surgir !... Os medonhos Phantasmas do Terror arremessavam-se, unidos, aos cantos dos carceres, onde jaziamos. Dir-se-ia que, rodeados pelas Trevas que os envolviam, vinham zombar de nós, provocar-nos, até em nossa frente!...
Passavam e repassavam... Deslisavam rapidamente, como transeúntes em manhã de nevoeiro... Bailando, saltando, subindo, descendo, deslocando-se, fazendo mil contorsões, cada qual mais subtil, fingiam os raios da Lua, coando-se atravez da folhagem do arvoredo... Caminhando com passos ceremoniosos, e cheios de tregeitos e esgares, vinham chegando para o ponto de reunião.
Fazendo caretas e gestos funambulescos, vimol-os passar, quaes Sombras impalpaveis, dando-se as mãos... Gyrando, gyrando, em grande ronda phantastica, dansaram uma sarabanda... Os passos de dansa desses Arlequins do Diabo tão floreados eram, tão caprichosamente feitos, que faziam lembrar os arabescos impressos pelo Vento na areia.
Com piruetas de marionettes, dansavam agilmente nas pontas dos pés. Soprando nas flautas do Medo, atordoavam-nos os ouvidos, ao celebrarem aquella horrenda Mascarada... Cantavam ruidosamente, longamente cantavam, porque cantavam para despertar os Mortos...
Esses ridiculos Sêres, que com tanta alegria cancaneavam, não eram, de modo algum, Fórmas aéreas... Para nós, que tinhamos a Existencia acorrentada, e cujos pés não podiam caminhar em liberdade, ah ! pelas Chagas de Christo ! eram vivos e bem vivos, e de horrendo aspecto !...
Rodando... rodando... walsavam e redomoinhavam... Alguns, cheios de affectação, gyravam dois a dois, aos pares... Outros, com passos pretenciosamente sérios, galgavam as escadas... E todos elles, com finos sarcasmos e carinhosas olhadellas, chegavam a immiscuir-se nas nossas preces...
O Vento da madrugada principiou a gemer, mas a Noite seguia o seu curso... Lenta... lentamente, fio a fio, uma a uma, até a ultima, as Trevas terminaram todas as malhas do manto collossal que tecem nocturnamente... Emquanto oravamos, temiamos a Justiça do Sol !...
O Vento gemebundo veiu errar em torno do Presidio, até que, talqualmente uma roda de aço, que gyrasse, sentimos os minutos penetrando dentro de nós... O’ Vento gemedor ! que crime commettemos, para termos tal Carcereiro ? !...
A sombra dos varões de ferro, em fórma de xadrez, projectou-se, emfim ! na parede caiada, fronteira ao meu grabato de táboas !... Ah ! nesse momento, eu soube que, em certo logar do Universo, a Aurora do Senhor, em vez de loura e rosada, é horrorosa e côr de sangue !..,
A’s seis horas da manhã varrèmos os nossos cubiculos. A’s sete, tudo repousava em socego. Mas um sôpro fremente de poderoso vôo, parecia agitar a Prisão, como si um passaro collossal, tatalasse invisivelmente as grandes azas... E’ que a Deusa sinistra da Morte, de halito glacial, nelle havia penetrado para matar !...
O Desgraçado passou... Não vestia trajes de purpura deslumbrante, nem cavalgava um ginete, alvo como o luar... Tres metros de corda e um nó corredío — eis tudo quanto necessita o Patibulo... Por isso, com a corda do Opprobrio, o Arauto veiu executar a sua nefanda Missão secreta.
Estavamos como alguem que, chafurdado em lodoso paul, caminhasse, ás apalpadelas, tacteando na escuridão... Não ousavamos balbuciar siquer uma prece, nem dar livre curso á nossa Angustia. Alguma cousa jazia morta dentro de nós... E essa cousa morta, era a Esperança !...
A Justiça Humana segue direito o seu caminho, sem delle se desviar uma unica pollegada... Ella tanto fere o Forte, como o Fraco... Sua marcha é implacavel... Com calcanhar de ferro, a monstruosa parricida esmaga o Forte !...
Esperavamos que soassem oito horas. Tinhamos a lingua pegagenta e grossa. A pancada das oito, era a pancada do Destino, que torna um homem maldito. E o Destino emprega um nó bem corredío, tanto para o melhor, como para o peior dos Homens.
Nada mais tinhamos a fazer, que esperar pelo signal annunciado. Semelhantes a rochedos fincados num valle deserto, conservavamo-nos quêdos e mudos. Mas, cada Coração, batia precípite, como um Doido rufando um tambor...
De subito, o relogio da Prisão abalou o ar fremente... De todo o Presidio elevou-se, então, unísono gemido d’impotente Desespero, tal o grito que se escutasse, soltado por algum leproso no seu antro.
Assim como se vêem as cousas mais horrorosas, atravéz do crystal dum Sonho, vimos a corda de cânamo pendente do Pelourinho... E ouvimos o começo de prece, que o laço do Carrasco abafou, num grande clamor...
A Dôr, que abalou o Condemnado, foi tão grande, tão grande, que o fez soltar aquelle angustiosissimo grito... Ah ! ninguém conheceu tão bem, como eu, o seu despedaçador Remorso e os seus suores de sangue !... Porque, aquelle que vive mais de uma vida, também deve de morrer mais de uma morte !...
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.