A velha e gloriosa corveta — que pena! — já nem sequer lembrava o mesmo navio d’outrora, sugestivamente pitoresco, idealmente festivo, como uma galera de lenda, branca e leve no mar alto, grimpando serena o corcovo das ondas!...

Estava outra, muito outra com o seu casco negro, com as suas velas encardidas de mofo, sem aquele esplêndido aspecto guerreiro que entusiasmava a gente nos bons tempos de “patescaria”. Vista ao longe, na infinita extensão azul, dir-se-ia, agora, a sombra fantástica de um barco aventureiro. Toda ela mudada, a velha carcaça flutuante, desde a brancura límpida e triunfal das velas té à primitiva pintura do bojo.

No entanto ela aí vinha — esquife agourento — singrando águas da pátria, quase lúgubre na sua marcha vagarosa; ela aí vinha, não já como uma enorme garça branca flechando a líquida planície, mas lenta, pesada, como se fora um grande morcego apocalíptico de asas abertas sobre o mar...

Havia pouco entrara na região das calmarias: o pano começava a bater frouxo, mole, inchando a cada solavanco, para recair depois, com uma pancada surda e igual, no mesmo abandono sonolento; a viagem tornava-se monótona; a larga superfície do oceano estendia-se muito polida e imóvel sob a irradiação meridional do sol, e a corveta deslizava apenas, tão de leve, tão de leve que mal se lhe percebia o movimento.

Nem sinal de vela na linha azul do horizonte, indício algum de criatura humana fora daquele estreito convés: água, somente água em derredor, como se o mundo houvesse desaparecido num dilúvio medonho..., e no alto, lá cima, o silêncio infinito das esferas obumbra­das pela chuva de ouro do dia.

Triste e nostálgica a paisagem, onde as cores desmaiavam à força de luz e a voz humana perdia-se numa desolação imensa!

Marinheiros conversavam à proa, sentados uns no castelo, outros em pé, colhendo cabos ou estendendo roupa ao sol, tranqüilamente, esquecidos da faina. As chapas dos mastros, a culatra das peças, varais de escotilha, tudo quanto é aço e metal amarelado reluz fortemente, encandeando a vista.

De vez em quando há um grande rebuliço: a mastreação geme, como se fora desprender-se toda, o pano bate com força de encontro às vergas, chocam-se cabos com um ruidozinho seco, e ouve-se o cachoeirar da água no bojo da velha nau.

— Agüenta! diz uma voz.

E volta o sossego e continua a pasmaceira, o tédio, a calmaria sem fim...

Já os primeiros sintomas de indolência refletiam-se no semblante da gente, convertendo-se em bocejos e espreguiçamentos de sesta, e ainda ficavam tão longe as montanhas da costa e os carinhos da família!...

Escasseavam os gêneros, e o regímen da carne-seca e das conservas em lata aproximava-se ameaçadoramente, causando apreensões à marinhagem.

Tinham dado onze horas na sineta de proa.

O tenente que estava de quarto no passadiço conferiu o relógio d’algibeira, um belo cronômetro de ouro comprado em Toulon, torceu o bigode, passou uma vista d’olhos no aparelho, e, dirigindo-se para a espada que descansava junto ao mastro, numa voz clara um pouco metálica:

— Cometa!

Era um oficial distinto, moço, moreno, os olhos vivos e inteligen­tes, grande calculista, jogador da sueca e autor de um Tratado elementar de navegação prática.

Ninguém a bordo o excedia na procura dos logaritmos. Calculava d’olhos fechados, e senos e co-senos acudiam-lhe à ponta do lápis de um modo admirável. Era, invariavelmente, o primeiro que achava a hora meridiana. Tornara-se conhecido logo ao sair da escola pelo seu entranhado amor às matemáticas e à vida naval Como guarda-marinha deixava-se ficar a bordo nas dias de folga, somente “para não perder ohábito”. Inimigo de terra, preferia o far-niente de seu camarote, ali ao pé dos livros e das fotografias marítimas, ao movimento esterilizador e absorvente dos cafés e dos teatros.

— Cometa! repetiu, carregando o semblante numa sombria expressão de constrangimento.

Outras bocas foram transmitindo a ordem té que surgiu, correndo, a figura exótica de um marinheiro negro, d’olhos muito brancos, lábios enormemente grossos, abrindo-se num vago sorriso idiota, e em cuja fisionomia acentuavam-se linhas características de estupidez e subser­viência.

— Pronto! disse levando a mão ao boné com um jeito marcial.

— Toca mostra, ordenou o tenente.

Às primeiras notas da cometa, límpidas e sem eco no silêncio do mar alto, houve logo um estranho bulício em todos os recantos da corveta. — Agora os marinheiros, que descansavam à proa, olhavam-se por cima dos ombros com ar desconfiado. Na tolda e pelas cobertas o movimento foi-se acelerando à proporção que o toque finalizava, sobressaindo no atropelo a voz das guardães: — Sobe, sobe — tudo pra cima! — de envolta com um barulho de ferros que vinha dos porões.

O “mestre d’armas”, cabrocha pedante, muito cheio de si e de seus galões reluzentes, ia enfileirando a marinhagem por alturas, num exagero metódico de instrutor de colégio, arredando uns para colocar outros, advertindo estes porque não traziam a camisa abotoada e aqueles porque não tinham “fita” no boné, ameaçando estoutro de levá-­lo à presença de “seu” tenente porque recusava-se a perfilar...

Oficiais começavam a aparecer em segundo uniforme — boné e dragonas —, arrastando as espadas, mirando-se d’alto a baixo, aperta­dos no talim de pano azul, por cima da farda.

Com pouco estava tudo pronto, marinheiros e oficiais — aqueles alinhados a dois de fundo, num e noutro bordo, estes a ré, perto do mastro grande, em atitude respeitosa de quem vai assistir um ato solene.

Tinha-se feito silêncio. Uma ou outra voz segredava baixinho, timidamente. E agora, no silêncio da mostra, é que se ouvia bem o cachoeirar da água no bojo da corveta caturrando...

— Agüenta!

Por fim apareceu o comandante abotoando a luva branca de camurça, teso na sua farda nova, o ar autoritário, solta a espada num abandono elegante, as dragonas tremulando sobre os ombros em cachos de ouro, todo ele comunicando respeito.

Era homem robusto de feições e presença nobre, olhar enérgico, muito moreno, desse moreno carregado, cor de bronze, que o sol imprime nos homens do mar, bigode largo e compacto, levemente grisalho, com uma ponta de arrogância convencional.

Silêncio absoluto nas fileiras da marinhagem. Cada olhar tinha um brilho especial de indiscreta curiosidade. Um frêmito de instintiva covardia, como uma corrente elétrica, vinha à face de toda aquela gente abespinhada ali assim perante um só homem, cuja palavra trazia sempre o cunho áspero da disciplina. Era um respeito profundo chegando às raias da subserviência animal que se agacha para receber o castigo, justo ou injusto, seja ele qual for.

— Os presos..., fez o comandante, sem se alterar, dando um puxão na manga da farda.

Todos os olhares voltaram-se para o fiel d’artilheria, vivamente curiosos, enquanto este, obedecendo à ordem, precipitou-se pela escada que ia ter à coberta, mudo e taciturno.

O tenente continuava no passadiço, a passear, como se tudo corresse às mil maravilhas naquele pequeno mundo flutuante de que ele era, agora, uma espécie de rei provisório. Ouvia-se-lhe o passo vagaroso e igual como o de uma sentinela noturna.

A luz intensa do sol caía do alto, pondo brilhos de malacacheta no cristal imenso do mar calmo. Um calor forte e asfixiante penetrava a carne, acelerando a circulação, congestionando, irritando o sistema nervoso atrozmente, implacavelmente.

Toda a atmosfera parecia vibrar num incêndio universal.

E o pano, largo e frouxo, a bater, a bater como uma coisa desesperada...

— Calmaria estúpida! pensava o tenente consultando os horizon­tes. — Ele, o grande patesca, a olhar o tempo, sem fazer nada, por causa de um diabo de calma interminável! Raríssimas vezes lhe acontecia aquilo: era mesmo para danar uma pessoa...

Chegam os presos: um rapazinho magro, muito amarelo, rosto liso, completamente imberbe; outro regulando a mesma idade, mas um pouco moreno, também grumete; e um primeira-classe, negro alto, espadaúdo, cara lisa.

Vinham em ferros, um a um, arrastando os pés num passo curto e demorado, e encaminharam-se para o meio do convés, fazendo alto a um aceno do comandante. Este imediatamente segredou a outro oficial, que estava a seu lado com um livro na mão, e, dirigindo-se ao primeiro sentenciado, o da frente, o rapazinho amarelo, cor de terra:

— Sabe por que vai ser castigado?

O grumete, sem levantar a cabeça, murmurou afirmativamente: que sim, senhor...

Chamava-se Herculano e no seu rosto imberbe de adolescente havia uns longes de melancolia serena, assim como uma precoce morbidez sintomática..., um secreto arrependimento.

Na gola quadrangular de flanela azul destacava a divisa branca da sua classe.

As unhas metiam náusea, muito quilotadas de alcatrão, desleixa­das mesmo. Triste figura essa, cujo aspecto deixava uma impressão desagradável e persistente.

O comandante, depois de um breve discurso em que as palavras “disciplina e ordem” repetiam-se, fez um sinalzinho com a cabeça e logo o oficial imediato, um louro, de bigode, começou a leitura do Código na parte relativa a castigos corporais.

A marinhagem, analfabeta e rude, ouvia silenciosa, com um vago respeito no olhar, aquele repisado capítulo do livro disciplinar, em pé, à luz dura e mordente do meio-dia, enquanto o oficial do quarto, gozando a sombra reparadora de um largo toldo estendido sobre sua cabeça, ia e vinha, de um bordo a outro bordo, sem se preocupar com o resto da humanidade.

Junto aos presos equilibrava-se um homem de grande estatura, largo e reforçado, tipo de caboclo nascido no Amazonas, trajando fardeta e boné e segurando com ambas as mãos, sobre o joelho em descanso, o instrumento de castigo: era o guardião Agostinho, o célebre guardião Agostinho, especialista consumado no ofício de aplicar a chibata, o mais robusto e valente de todos os guardiães, e cujo zelo em coisas de “patescaria” tornara-se proverbial. Nos momentos de ma­nobra difícil, era ele quem auxiliava o mestre na faina, invariavelmente munido de um apito de prata, não se afastando nunca de suas obrigações.

— Caboclo macho! diziam os companheiros.

Se acontecia desprender-se um moitão, um cabo qualquer, lá cima nos mastros, em lugar arriscado, ele, mais que depressa, galgava os enfrechates, com aquele corpo muito pesado, transpunha o cesto de gávea, sem olhar pra trás, e ei-lo agarradinho aos vaus, atando e desatando, ligeiro, alvo de todos os olhares, oscilando com o navio, em termos de precipitar-se no mar. Homem de poucas palavras, muito metido consigo, tolerante e enérgico ao mesmo tempo em matéria de serviço, não compreendia disciplina sem chibata, “único meio de se fazer marinheiro”.

E tinha sempre esta frase na ponta da língua: — Navio de guerra sem chibata é pior que escuna mercante...

Por isso os marinheiros não o estimavam muito; pelo contrário, evitavam a sua presença, procurando intrigá-lo com o mestre e com os outros inferiores. — O guardião Agostinho, sim, que era homem valente, capaz de comandar um quarto...

E riam às escondidas, praguejando contra “o burro do Agostinho, que nem ao menos tinha jeito para capitão de proa..”

Ele ali se achava também, no seu posto, à espera de um sinal para descarregar a chibata, implacavelmente, sobre a vítima. Sentia um prazer especial naquilo, que diabo! cada qual tem a sua mania .....

— Vinte e cinco...., ordenou o comandante.

— Tira a camisa? quis logo saber Agostinho radiante, cheio de satisfação, vergando o junco para experimentar-lhe a flexibilidade.

— Não, não: com a camisa...

E solto agora dos machos, triste e resignado, Herculano sentiu sobre o dorso a força brutal do primeiro golpe, enquanto uma voz cantava, sonolenta e arrastada:

— Uma!... e sucessivamente: duas!...três ..... vinte e cinco!

Herculano já não suportava. Torcia-se todo no bico dos pés, erguendo os braços e encolhendo as pernas, cortados de dores agudíssimas que se espalhavam por todo o corpo, té pelo rosto, como se lhe rasgassem as carnes. A cada golpe escapava-lhe um gemido surdo e trêmulo que ninguém ouvia senão ele próprio no desespero de sua dor.

Toda a gente assistia aquilo sem pesar, com a fria indiferença de múmias.

— Corja! regougou o comandante brandindo a luva. Não se compenetram de seus deveres, não respeitam a autoridade! Hei de ensiná-los: ou aprendem ou racho-os!

O caso era simples: Herculano tinha uns modos esquisitos de viver sempre retraído, pelos cantos, evitando a companhia dos outros, fazendo seu serviço calado, não se envolvendo em sambas, à noite, na proa. Tímido e esquivo, cada vez mais pálido, o olhar morto com uma pronunciada auréola de bistre, a voz cansada, caindo de fraqueza,— tinham-lhe dado o apelido ridículo de Pinga.

O grumete não podia se conformar com esse tratamento, por mais inofensivo que ele fosse, e vingava-se dos companheiros atirando-lhes palavrões de regateira aprendidos ali mesmo a bordo.

— Ó Pinga!...

Bastava isto para que ele desenrolasse o vocabulário do insulto numa cólera ameaçadora que às vezes chegava ao delírio.

Os outros, porém, caíam na gargalhada:

— Olha o Pinga! Segura ele!

Pinga é....

E lá ia uma obscenidade, um calão grosseiro.

Palavra puxa palavra, quase sempre o gracejo acabava em questões de outra ordem e daí prisões, castigos...

Ora, aconteceu que, na véspera desse dia, Herculano foi sur­preendido, por outro marinheiro, a praticar uma ação feia e deprimente do caráter humano. Tinham-no encontrado sozinho, junto à amurada, em pé, a mexer com o braço numa posição torpe, cometendo, contra si próprio, o mais vergonhoso dos atentados.

O outro, um mulatinho esperto, que tinha o hábito de andar espiando, à noite, o que faziam os companheiros, precipitou-se a chamar o Santana e, riscando um fósforo, aproximaram-se ambos “para examinar”... No convés brilhava a nódoa de um escarro ainda fresco: Herculano acabava de cometer um verdadeiro crime não previsto nos códigos, um crime de lesa-natureza, derramando inutilmente, no convés seco e estéril, a seiva geradora do homem.

Grande foi o seu desapontamento ao ver-se apanhado em flagrante naquela grotesca situação. Investiu para o Santana, fulo de raiva, extremamente pálido, e com pouco estavam os dois agarrados numa luta corpo a corpo, aos trambolhões, acordando os que dormiam por ali o bom sono da madrugadinha... Terminou o alvoroço com a prisão de ambos.

— Ah! seu Pinga, seu Pinga !... repetia o guardião do quarto. Não pense que, por ser branco, há de fazer das suas...

Tal fora o delito de Herculano e do seu camarada Santana que também ia ser castigado.

O Santana, porém, não era lá rapaz que sofresse calado: tinha sempre o que dizer na ocasião do castigo, desculpando-se como podia perante a autoridade a fim de escapar manhosamente à ação criminal, o que nunca lhe sucedera, porque toda a gente o conhecia bastante.

Era um pobre-diabo de terceira-classe, moreno cor de jeni­papo, cabelo rente, à escovinha, olhos negros, nariz acaçapado, cara magra, e cujo nome lá estava no livro de castigas um ror de vezes. Gago de nascença, fazia rir aos companheiros quando abria a boca para dizer qualquer coisa, principalmente se estava num de seus momentos de sobre excitação colérica, porque, então, ninguém o compreendia.

Tinha a facilidade ingênita das lágrimas: a mais leve comoção fazia-o chorar, transformando-lhe os olhos em duas fontes de úmida ternura.

Pôs-se logo a gaguejar uma história de “implicações”: que estava bem sossegadinho no seu canto e o Herculano fora provocá-lo, “implicar com ele”...

— Vamos guardião, vamos, que é tarde. Não estou para ouvir histórias. Vá!

Agostinho vergou o junco e, resolutamente, sem inquirir coisa alguma, com um risinho de instintiva malvadez no canto da boca, desfechou o primeiro golpe:

— Uma! contou a mesma voz de há pouco.

O rapaz empinou-se na ponta dos pés, arregalando muito os olhos, esfregando as mãos.

— Ah! gemeu com um grito de dor. — Pe...pe .... pelo amor de... de... de Deus, seu... seu.... seu comandante!

— Vamos, vamos!...

Seguiram-se as outras chibatadas implacáveis, brutais como cáus­ticos de fogo, caindo uma a uma, dolorosamente, no corpo franzino do marinheiro.

Ele não teve jeito senão suportá-las todas, uma a uma, porque de nada lhe serviam os gritos, as súplicas e as lágrimas...

— Hei de corrigi-los, bradava o comandante, aceso em súbita cólera, mal-humorado sob a luz ardentíssima do meio-dia tropical.

— Hei de corrigi-los: corja!

Nenhum frêmito de comoção na marinhagem, testemunha habi­tual daquelas cenas que já não logravam produzir efeitos sentimentais, como se fora a reprodução banal de um quadro muito visto.

Começava a cair uma aragenzinha leve, tão leve que apenas ate­nuava a força cáustica do sol, inflando as velas quase imperceptivelmente.

O tenente, um pouco animado agora com a viração que precede os ventos largos, tomava notas num pequeno caderno, ansioso por chamar a gente aos “braços”.

Meio-dia quase e ainda não estava acabado o castigo.

Seguia-se o terceiro peso, um latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre, desafiando, com um formidável sistema de músculos, a morbidez patológica de toda uma geração decadente e enervada, e cuja presença ali, naquela ocasião, despertava grande interesse e viva curiosidade: era o Amaro, gajeiro da proa, — o Bom-Crioulo na gíria de bordo.

— Aproxime-se, disse o comandante imperiosamente, carregando na voz e no semblante.

Houve um sussurro longínquo, um leve, um tímido murmúrio nas fileiras da marinhagem, assim como o vago estremecimento que assalta os espectadores de um teatro nas mutações de cenário. Agora a coisa era outra, na verdade. O Herculano e o Santana, de resto, não passavam de uns pulhas, de uns miseráveis marinheiros que dificil­mente agüentavam no lombo vinte e cinco chibatadas: uns criançolas!... Queria-se ver o Amaro, o célebre, o terrível Bom-Crioulo.

Fez-se nova leitura do Código em voz lenta e cadenciada de ofício religioso, e o comandante, formalizando-se dentro de sua farda muito justa e luzida:

— Sabe por que vai ser castigado?

— Sim senhor.

Estas palavras, Bom-Crioulo proferiu-as num tom resoluto, sem o mais ligeiro constrangimento, firmando o olhar, atrevidamente, nos galões de ouro daquele oficial. Em pé, junto ao mastro, unidos os calcanhares, os braços caindo ao longo do corpo, militarmente perfi­lado, havia, contudo, na linha dos ombros, no jeito da cabeça, onde quer que fosse, um recolhido e traiçoeiro cunho de flexibilidade e destreza felinas.

Com efeito, Bom-Crioulo não era somente um homem robusto, uma dessas organizações privilegiadas que trazem no corpo a so­branceira resistência do bronze e que esmagam com o peso dos músculos.

A força nervosa era nele uma qualidade intrínseca sobrepujando todas as outras qualidades fisiológicas, emprestando-lhe movimentos extraordinários, invencíveis mesmo, de um acrobatismo imprevisto e raro.

Esse dom precioso e natural desenvolvera-se-lhe à força de um exercício continuado que o tornara conhecido em terra, nos conflitos com soldados e catraieiros, e a bordo, quando entrava embriagado.

Porque Bom-Crioulo de longe em longe sorvia o seu gole de aguardente, chegando mesmo a se chafurdar em bebedeiras que o obrigavam a toda sorte de loucuras.

Armava-se de navalha, ia para as cais, todo transfigurado, os olhos dardejando fogo, o boné de um lado, a camisa aberta num desleixo de louco, e então era um risco, uma temeridade alguém aproximar-se dele. O negro parecia uma fera desencarcerada: fazia todo mundo fugir, marinheiros e homens da praia, porque ninguém estava para sofrer uma agressão...

Quando havia conflito no cais Pharoux, já toda a gente sabia que era o Bom-Crioulo às voltas com a polícia. Reunia povo, toda a população do litoral corria enchendo a praça, como se tivesse acon­tecido uma desgraça enorme, formavam-se partidos a favor da polícia e da marinha... uma coisa indescritível!

O motivo, porém, de sua prisão agora, no alto-mar, a bordo da corveta, era outro, muito outro: Bom-Crioulo esmurrara desapiedada­mente um segunda-classe, porque este ousara, “sem o seu consen­timento”, maltratar o grumete Aleixo, um belo marinheirito de olhos azuis, muito querido por todos e de quem diziam-se “coisas”.

Metido em ferros no porão, Bom-Crioulo não deu palavra. Admiravelmente manso, quando se achava em seu estado normal, longe de qualquer influência alcoólica, submeteu-se à vontade superior, esperando resignado o castigo. — Reconhecia que fizera mal, que devia ser punido, que era tão bom quanto os outros, mas, que diabo! estava satisfeito mostrara ainda uma vez que era homem... Depois estimava o grumete e tinha certeza de o conquistar inteiramente, como se con­quista uma mulher formosa, uma terra virgem, um país de ouro... Estava satisfeitíssimo!

A chibata não lhe fazia mossa; tinha costas de ferro para resistir como um hércules ao pulso do guardião Agostinho. Já nem se lembrava do número das vezes que apanhara de chibata.....

— Uma! cantou a mesma voz — Duas!.... três!...

Bom-Crioulo tinha despido a camisa de algodão, e, nu da cintura pra cima, numa riquíssima exibição de músculos, os seios muito salientes, as espáduas negras reluzentes, um sulco profundo e liso d’alto a baixo no dorso, nem sequer gemia, como se estivesse a receber o mais leve dos castigos.

Entretanto, já iam cinqüenta chibatadas! Ninguém lhe ouvira um gemido, nem percebera uma contorção, um gesto qualquer de dor. Viam-se unicamente naquele costão negro as marcas do junco, umas sobre outras, entrecruzando-se como uma grande teia de aranha, roxas e latejantes, cortando a pele em todos os sentidos.

De repente, porém, Bom-Crioulo teve um estremecimento e soergueu um braço: a chibata vibrava em cheio sobre os rins, empol­gando o baixo-ventre. Fora um golpe medonho, arremessado com uma força extraordinária.

Por sua vez Agostinho estremeceu, mas estremeceu de gozo ao ver, afinal, triunfar a rijeza do seu pulso.

Marinheiros e oficiais, num silêncio concentrado, alongavam o olhar, cheios de interesse, a cada golpe.

— Cento e cinqüenta!

Só então houve quem visse um ponto vermelho, uma gota rubra deslizar no espinhaço negro do marinheiro e logo este ponto vermelho se transformar numa fita de sangue.

Nesse momento o oficial, ponteirando o óculo de alcance, procurava reconhecer uma sombra quase invisível que parecia flutuar muito longe, nos confins do horizonte: era, talvez, a fumaça dalgum transatlântico...

— Basta! impôs o comandante.

Estava terminado o castigo. Ia recomeçar a faina.