Inda estava longe, bem longe a vitória do abolicionismo, quando Bom-Crioulo, então simplesmente Amaro, veio, ninguém sabe donde, metido em roupas d’algodãozinho, trouxa ao ombro, grande chapéu de palha na cabeça e alpercatas de couro cru. Menor (teria dezoito anos), ignorando as dificuldades por que passa todo homem de cor em um meio escravocrata e profundamente superficial como era a Corte —ingênuo e resoluto, abalou sem ao menos pensar nas conseqüências da fuga.

Nesse tempo o “negro fugido” aterrava as populações de um modo fantástico. Dava-se caça ao escravo como aos animais, de espora e garrucha, mato a dentro, saltando precipícios, atravessando rios a nado, galgando montanhas... Logo que o fato era denunciado — aqui-del-rei! — enchiam-se as florestas de tropel, saíam estafetas pelo sertão num clamor estranho, medindo pegadas, açulando cães, rompendo cafezais. Até fechavam-se as portas, com medo... Jornais traziam na terceira página a figura de um “moleque” em fuga, trouxa ao ombro, e, por baixo, o anúncio, quase sempre em tipo cheio, minucioso, explícito, com todos os detalhes, indicando estatura, idade, lesões, vícios, e outros característicos do fugitivo. Além disso, o “proprietário” gratificava ge­nerosamente a quem prendesse o escravo.

Conseguindo, porém, escapar à vigilância dos interessados, e depois de curtir uma noite, a mais escura de sua vida, numa espécie de jaula com grades de ferro, Amaro, que só temia regressar à “fazenda”, voltar ao seio da escravidão, estremeceu diante de um rio muito largo e muito calmo, onde havia barcos vogando em todos os sentidos, à vela, outros deitando fumaça, e lá cima, beirando a água, um morro alto, em ponta, varando as nuvens, como ele nunca tinha visto...

Depois mandaram-no tirar a roupa do corpo (até ficou enver­gonhado...), examinaram-lhe as costas, o peito, as virilhas, e deram-lhe uma camisa azul de marinheiro.

No mesmo dia foi para a fortaleza, e, assim que a embarcação largou do cais a um impulso forte, o novo homem do mar sentiu pela primeira vez toda a alma vibrar de uma maneira extraordinária, como se lhe houvessem injetado no sangue de africano a frescura deliciosa de um fluido misterioso. A liberdade entrava-lhe pelos olhos, pelos ouvidos, pelas narinas, por todos os poros, enfim, como a própria alma da luz, do som, do odor e de todas as coisas etéreas... Tudo que o cercava: a planura da água cantando na proa do escaler, o imaculado azul do céu, o perfil longínquo das montanhas, navios balouçando entre ilhas, e a casaria imóvel da cidade que ficava atrás — os companheiros mesmo, que iam remando igual, como se fossem um só braço —, e sobretudo, meu Deus!, sobretudo o ambiente largo e iluminado da baía: enfim, todo o conjunto da paisagem comunicava-lhe uma sensação tão forte de liberdade e vida, que até lhe vinha vontade de chorar, mas de chorar francamente, abertamente, na presença dos outros, como se estivesse enlouquecendo... Aquele magnífico cenário gravara-se-lhe na retina para toda a existência; nunca mais o havia de esquecer, ó, nunca mais! Ele, o escravo, “o negro fugido” sentia-se verdadeiramente homem, igual aos outros homens, feliz de o ser, grande como a natureza, em toda a pujança viril da sua mocidade, e tinha pena, muita pena dos que ficavam na “fazenda” trabalhando, sem ganhar dinheiro, desde a madrugadinha té... sabe Deus!

No princípio, antes de ir para bordo, foi-lhe difícil esquecer o passado, a “mãe Sabina”, os costumes que aprendera nos cafezais... Muita vez chegava a sentir um vago desejo de abraçar os seus antigos companheiros do eito, mas logo essa lembrança esvaía-se como a fumaça longínqua e tênue das queimadas, e ele voltava à realidade, abrindo os olhos, num gozo infinito, para o mar crivado de em­barcações...

A disciplina militar, com todos os seus excessos, não se comparava ao penoso trabalho da fazenda, ao regímen terrível do tronco e do chicote. Havia muita diferença... Ali ao menos, na fortaleza, ele tinha sua maca, seu travesseiro, sua roupa limpa, e comia bem, a fartar, como qualquer pessoa, hoje boa carne cozida, amanhã suculenta feijoada, e, às sextas-feiras, um bacalhauzinho com pimenta e “sangue de Cristo”... Para que vida melhor? Depois, a liberdade, minha gente, só a liberdade valia por tudo! Ali não se olhava a cor ou a raça do marinheiro: todos eram iguais, tinham as mesmas regalias — o mesmo serviço, a mesma folga. — “E quando a gente se faz estimar pelos superiores, quando não se tem inimigos, então é um viver abençoado esse: ninguém pensa no dia d’amanhã!”.

Amaro soube ganhar logo a afeição dos oficiais. Não podiam eles, a princípio, conter o riso diante daquela figura de recruta alheio às praxes militares, rude como um selvagem, provocando a cada passo gargalhadas irresistíveis com seus modos ingênuos de tabaréu; mas, no fim de alguns meses, todos eram de parecer que “o negro dava para gente”. Amaro já sabia manejar uma espingarda segundo as regras do ofício, e não era lá nenhum botocudo em artilharia; criara fama de “patesca”.

Nunca, durante esse primeiro ano de aprendizagem, merecera a pena de um castigo disciplinar: seu caráter era tão meigo que os próprios oficiais começaram a tratá-lo por Bom-Crioulo. Seu maior desejo, porém, sua grande preocupação era embarcar fosse em que navio fosse, acostumar-se a viver no mar, conhecer, enquanto estava moço, os costumes de bordo, saber praticamente “amichelar uma verga, rizar uma vela, fazer um quarto na agulha...” Podia muito bem ser promovido logo... Invejava os que andavam no alto-mar, longe de terra, bordejando à solta por esses mundos de Deus. Como devia de ser bom para a alma e para o corpo o ar livre que se respira lá fora, sobre as águas!...

Divertia-se a construir pequenas embarcações de madeira imi­tando navios de guerra com flâmula no tope do mastro e portinholas, cruzadores em miniatura, iatezinhos, tudo à ponta de canivete e com a paciência tenaz de um arquiteto.

Mas, nada de o fazerem embarcar definitivamente! Ia para bordo, às vezes, em exercício, remando no escaler, mas voltava logo com a turma dos outros aprendizes, triste por não ter ficado, sonhando histórias de viagens, coisas que havia de ver, quando pela primeira vez saísse barra fora...

Chegou afinal esse dia. Bom-Crioulo estava nomeado para embar­car num velho transporte que seguia para o sul.

— Ora, até! fez ele, erguendo os braços com um gesto de maravilhosa surpresa. Até que enfim, graças a Deus, lembraram-se do Bom-Crioulo!

E saiu por ali muito feliz, muito alegre, todo alvoroçado, anun­ciando seu destino. — Queriam alguma coisa do sul? Nem uma lembrançazinha do Rio Grande? Nada, nada?...

— Traze uma paraguaia, ó Bom-Crioulo, gracejava um.

— Olha, eu me contento com uma dúzia d’ovos, de Santa Catarina...

Outros encomendavam-lhe coisas impossíveis: um pedaço de “gringo” assado; uma terça de sangue espanhol; a orelha de um “barriga-verde”...

E riam todos no rancho, e todos o que estimavam é que Amaro fosse muito feliz na sua primeira viagem, que voltasse gordo e forte “pra matar galego no cais dos Mineiros”.

Alguns gabavam o comandante do transporte, o velho Novais, bom homem, que não gostava de castigar e que até era amigo dos marinheiros.

— E o imediato?

Ora, o imediato era um tal Pontes, um de suíças, que naufragara na corveta Isabel, muito feio, coitado, mas boa pessoa; também não fazia mal a ninguém, pelo contrário — marinheiro que lhe caísse nas graças era tratado a vinho do Porto...

Bom-Crioulo exultava!

O embarque devia se efetuar à tardinha, pouco antes de “arriar a bandeira”.

Todo ele estava pronto, e via-se no olhar, na fala, nos modos, o grande contentamento de que estava cheio seu coração. Era uma feli­cidade estranha, um bem-estar nunca visto, assim como um começo de loucura inofensiva e serena, que o fazia mais homem vinte vezes, que o tornava mais forte e retemperado para as lutas da vida. Suave em­briaguez dos sentidos, essa que vem de uma grande alegria ou de uma tristeza imensa... Bom-Crioulo só experimentara prazer igual quando o tinham obrigado a conhecer o que é liberdade, recrutando-o para a marinha. Essa liberdade ampliava-se agora a seus olhos, crescia desme­suradamente em sua imaginação, provocando-lhe frêmitos de aluci­nado, abrindo-lhe n’alma horizontes cor-de-rosa, largos e ignorados.

Não deixava um só inimigo, um rival sequer na fortaleza; ia bem com todos, egoísta na sua felicidade, mas levando a saudade irresistível dos que se vão embora...

Quando o escaler que o conduzia se afastou da ponte, onde os companheiros acenavam com os bonés, num entusiasmo comovente, ele sentiu a quentura de uma lágrima fugitiva descer-lhe rosto abaixo e, disfarçando, pôs-se também a acenar, em pé na embarcação, vendo sumirem-se, pouco a pouco, na bruma do crepúsculo, os contornos da ilha e as saudações da maruja.

Parecia-lhe ouvir ainda, na proa do transporte, como as últimas reminiscências de um sonho, a voz dos companheiros abraçando-o:

— Adeus, ó Bom-Crioulo: sê feliz!

Não dormiu toda essa noite. Estendido no convés sobre o dorso, como se estivesse num bom leito macio e amplo, viu desaparecerem as estrelas, uma a uma, na penumbra da antemanhã, e o dia ressurgir glorioso, dourando os Órgãos, ourejando os edifícios, cantando o hino triunfal da ressurreição.

E pouco depois o esplêndido cenário da baía transformara-se num vastíssimo oceano deserto e resplandecente, desdobrando-se num círculo imenso d’água, onde não verdejava sequer um canto de oásis... A grandeza do mar enchia-o de uma coragem espartana. Ali se achava, ao redor dele, a sublime expressão da liberdade infinita e da soberania absoluta, coisas que o seu instinto alcançava muito vagamente através de um nevoeiro de ignorância.

Dias e dias correram. A bordo todos o estimavam como na fortaleza, e a primeira vez que o viram, nu, uma bela manhã, depois da baldeação, refestelando-se num banho salgado — foi um clamor! Não havia osso naquele corpo de gigante: o peito largo e rijo, os braços, o ventre, os quadris, as pernas, formavam um conjunto respeitável de músculos, dando uma idéia de força física sobre-humana, dominando a maruja, que sorria boquiaberta diante do negro. Desde então Bom-Crioulo passou a ser considerado um “homem perigoso”, exercendo uma influência decisiva no espírito daquela gente, impondo-se incon­dicionalmente, absolutamente, como o braço mais forte, o peito mais robusto de bordo. Os grandes pesos era ele quem levantava, para tudo aí vinha Bom-Crioulo com o seu pulso de ferro, com a sua força de oitenta quilos, mostrar como se alava um braço grande, como se abafava uma vela em temporal, como se trabalhava com gosto!

Entretanto, o seu nome ia ganhando fama em todos os navios.

— Um pedaço de bruto, aquele Bom-Crioulo! diziam os marinheiros.

— Um animal inteiro é o que ele era!

Tinha um forte desejo ainda: suspirava por embarcar em certo navio, cujo comandante, um fidalgo, dizia-se amigo de todo marinheiro robusto; excelente educador da mocidade, perfeito cavalheiro no trato ameno e severo.

Bom-Crioulo conhecia-o de vista somente e ficara simpatizando imensamente com ele. Demais, o comandante Albuquerque recompen­sava os serviços de sua gente, não se negava a promover os seus afeiçoados. Isso de se dizer que preferia um sexo a outro nas relações amorosas podia ser uma calúnia como tantas que se inventam por aí... Ele, Bom-Crioulo, não tinha nada que ver com isso. Em uma questão à parte, que diabo! ninguém está livre de um vício.

Mas, anunciou-se a viagem da corveta, e lá Bom-Crioulo deixou o cruzador para seguir seu novo destino.

Contava então cerca de trinta anos e trazia gola de marinheiro de segunda-classe. Por sua vontade não sairia mais barra fora: em dez anos viajara quase o mundo inteiro, arriscando a vida cinqüenta vezes, sacrificando-se inutilmente. — Afinal a gente aborrece... Um pobre marinheiro trabalha como uma besta, de sol a sol, passa noites acordado, atura desaforo de todo mundo, sem proveito, sem o menor proveito! O verdadeiro é levar a vida “na flauta”...

Nessa viagem Bom-Crioulo não foi mais feliz que nas outras. Nomeado gajeiro de proa, espécie de fiscal do mastro do traquete, a princípio dera conta irrepreensivelmente de suas obrigações e podia-se ver o asseio e a boa ordem que reinavam ali, desde a borla do tope té embaixo à chapa das malaguetas. Fazia gosto a presteza com que se efetuavam as manobras. A faina corria sempre na melhor ordem, livre de acidentes, como se todo o mastro fosse uma grande máquina movida a vapor, desafiando a gente dos outros mastros.

Agora, porém, de torna-viagem, as coisas tinham mudado. O traquete era um dos últimos a estar pronto, havia sempre um obstáculo, uma dificuldade: era um cabo que “pegava”, um “andarivelo” que se partia ou uma coisa que faltava...

— Anda com isso! bradava o oficial do quarto já impaciente.

E só depois de muito tempo é que Bom-Crioulo anunciava lá de cima do mastaréu, com a sua voz estragada:

— Pronto!

Diziam uns que a cachaça estava deitando a perder “o negro”; outros, porém, insinuavam que Bom-Crioulo tornara-se assim, esquecido e indiferente, dês que “se metera” com o Aleixo, o tal grumete, o belo marinheiro de olhos azuis, que embarcara no sul. — O ladrão do negro estava mesmo ficando sem-vergonha! E não lhe fossem fazer recriminações, dar conselhos... Era muito homem para esmagar um!

O próprio comandante já sabia daquela amizade escandalosa com o pequeno. Fingia-se indiferente, como se nada soubesse, mas conhe­cia-se-lhe no olhar certa prevenção de quem deseja surpreender em flagrante...

Os oficiais comentavam baixinho o fato e muita vez riam malicio­samente na praça d’armas entre copos de limonada.

Tudo isso, porém, não passava de suspeitas, e Bom-Crioulo, com o seu todo abrutalhado, uma grande pinta de sangue no olho esquerdo, o rosto largo de um prognatismo evidente, não se incomodava com o juízo dos outros. — Não lho dissessem na cara, porque então o negó­cio era feio... A chibata fizera-se para o marinheiro: apanhava até morrer, como um animal teimoso, mas havia de mostrar o que é ser homem!

Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem precedentes de espécie alguma, no momento fatal em que seus olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento indefinível que acomete ao mesmo tempo duas naturezas de sexo contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua, essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas as espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante coisa, nunca homem algum ou mulher produzira-lhe tão esquisita impressão, desde que se conhe­cia! Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de quinze anos, abalara toda a sua alma, dominando-a, escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a força magnética de um imã.

Chamou-o a si, com a voz cheia de brandura, e quis saber como ele se chamava.

— Eu me chamo Aleixo, disse o grumete abaixando o olhar, muito calouro.

— Coitadinho, chama-se Aleixo, tornou Bom-Crioulo.

E imediatamente, sem tirar a vista de cima do pequeno, com a mesma voz branda e carinhosa:

— Pois olhe: eu me chamo Bom-Crioulo, não se esqueça. Quando alguém o provocar, lhe fizer qualquer coisa, estou aqui, eu, para o defender, ouviu?

— Sim senhor, fez o marinheirito levantando o olhar com uma expressão de agradecimento.

— Não tenha vergonha, não: Bom-Crioulo, gajeiro da proa. É só me chamar.

— Sim senhor...

— Olhe mais, tomou o negro segurando a mão do pequeno: —Muito sossegadinho no seu lugar para não sofrer castigo, sim?

Aleixo só fazia responder timidamente: — sim senhor — com um arzinho ingênuo de menino obediente, os olhos muito claros, de um azul garço pontilhado, e os lábios grossos extremamente vermelhos.

Era filho de uma pobre família de pescadores que o tinham feito assentar praça em Santa Catarina, e estava se pondo rapazinho. Seu trabalho a bordo consistia em colher os cabos e arcar os metais, quando não se ocupava na ronda pela noite.

Bom-Crioulo metia-lhe medo a princípio, e quase o fizera chorar uma vez porque o encontrara fumando em intimidade com o sota de proa na coberta. O negro deitara-lhe uns olhos!... Felizmente não aconteceu nada. Mas daí em diante Aleixo foi-se acostumando, sem o sentir, àqueles carinhos, àquela generosa solicitude, que não enxergava sacrifícios, nem poupava dinheiro, e, por fim, já havia nele uma acentuada tendência para Bom-Crioulo, um visível começo de afeição reconhecida e sincera.

Foi então que o negro, zeloso da sua nova amizade, quis mostrar ao grumete o seu grande poder sobre os outros e té onde o levava esse zelo, esse egoísmo apaixonado, esmurrando implacavelmente o segunda-­classe que maltratara Aleixo.

A idéia de que Bom-Crioulo sofrera por sua causa calou de tal maneira no espírito do grumete que ele agora estimava-o como a um protetor desinteressado, amigo dos fracos...

Quando regressou dessa longa viagem ao sul, estava ainda mais forte, mais viçoso e mais homem. Era uma massa bruta de músculos ao serviço de um magnífico aparelho humano. No tocante à disciplina mudara também um pouco: já ninguém lhe via certos escrúpulos de obediência e seriedade, perdera mesmo aquele ar, aquela compostura de respeito que o fazia estimado pelos oficiais em Villegaignon, e o distinguia da marinhagem insubmissa e desbriada. A maioria dominara­-o positivamente; aquele caráter dócil e tolerante, deixara-o ele no alto-mar ou nas terras por onde andara. Agora tratava com desdém os superiores, abusando se esses lhe faziam concessões, maldizendo-os na ausência, achando-os maus e injustos. Uma coisa, porém, ele soubera conservar: a força física, impondo-se cada vez mais aos outros mari­nheiros, que não ousavam agredi-lo nem brincando. Sua fama de homem valente alargara-se de modo tal que mesmo na província falava-se com prudência no “Bom-Crioulo”. — Quem é que não o conhecia, meu Deus? Por sinal tinha sido escravo e até nem era feio o diabo do negro...

Do transporte em que fizera sua primeira viagem passou a servir num cruzador chegadinho da Europa. Aí a vida não lhe correu muito calma. O comandante, um Varela, capitão-de-mar-e-guerra, severo e inflexível como nenhum outro oficial do seu tempo, homem que não ria nunca, chamou-o à conta um belo dia, e quase o deixou sem fala, simplesmente porque Bom-Crioulo dera com um remo na cabeça de outro marinheiro por uma questiúncula de ofício. Tal foi o seu primeiro castigo depois de quatro anos de serviço. Profundamente magoado, concentrou-se para reaparecer mandrião e insubmisso, cheio de ressen­timento, não se importando, como dantes, com os seus deveres, trabalhando “por honra da firma” sem vexame nem sacrifício. — “Tolo era quem se matava. Havia de receber seu soldo quer trabalhasse quer não trabalhasse. — ... que os pariu!”

E ia se fazendo esquerdo, cuidando mais de seus interesses que de outra coisa, passando um mês no hospital e outro mês a bordo, ou em terra, com licença.