Brasileiras celebres (1862)/VI: Patria e independencia

AS SENHORAS BAIANAS DURANTE A GUERRA — JOANA ANGÉLICA, A FREIRA MÁRTIR — DONA MARIA DE MEDEIROS, A GUERREIRA — AS SENHORAS PAULISTANAS

Fatos sublimes e gloriosos apresenta a sagrada guerra da independência nacional, que é necessário não deixá-los nas trevas do olvido, embora se percam como sombras ou como acessórios do quadro grandioso da nossa emancipação política, para mais e mais realçar em toda a sua magnificência o vulto eqüestre e venerando do herói do Ipiranga, que com o braço hercúleo lança a sua espada na balança da nossa causa. Que grupos heróicos o rodeiam!

Aqui são os vereadores do antigo senado da câmara, que hasteiam entre as suas brancas varas o seu estandarte, com aquela inscrição simples e magnânima: “Fico!” Ali são os seus primeiros ministros, almas ardentes, consciências puras, ilustrações perfeitas.

Aqui são os seus conselheiros, os legisladores do novo império, que trazem as suas tábuas fundamentais, o livro de sua liberdade. Ali são os seus sábios com suas penas de diamantes; os seus poetas com suas liras de esmeralda, encordoadas de ouro; os seus pregadores coroados com a chama da inspiração divida, trazendo nos lábios a voz dos profetas; os seus oradores políticos, abrasados do amor da pátria.

Aqui são os seus guerreiros enramados com os louros da vitória,com os seus estandartes rotos e enfumaçados, tendo inscritos pelo crivo das balas os nomes eternos de Pirajá, Itaparica, Caxias, Itapicurumirim; e ali, ao longe é o mar, são as velas da nova esquadra, sulcando as ondas e desprendendo pela primeira vez as brisas livres do oceano, a bandeira da primavera!

O grito do dom Pedro I despertou os ânimos, que ainda detinha a fria indiferença, e acordou o nobre patriotismo do primeiro ao ultimo dos brasileiros. Gratos à voz do magnânimo príncipe, que os convoca a se constituírem em nação, infileiram-se de entorno aos pendões auriverdes, para a guerra da independência, e as senhoras brasileiras acompanharam-nos em seus generosos movimentos. Elas provocaram os brios de seus cosortes, incitando-os a combater contra os inimigos da liberdade pátria, armaram o braço ainda infantil de seus filhos em sua justa defesa, e comprazeram-se em embalar os recém-nascidos penhores de seu consórcio, recitando-lhe canções patrióticas.1 Na Bahia, não falando em outras províncias do Norte, onde mais tenaz foi a luta onde o patriotismo redobrou de esforços ante a resistência armada, distiguiram-se as senhoras por mais de um modo.


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A antiga capital do Brasil, que havia aderido à proclamação da constituição portuguesa agitava-se ainda, e patenteava na sua efervescência tendências mais ou menos pronunciadas para a emancipação nacional; as nuvens estavam cheias de eletricidade, quando o vento compelindo-as deu lugar ao choque e apareceu a explosão.

A rivalidade dos partidos dos generais Madeira e Manuel Pedro tocou o seu auge e correu às armas, quando chegou àquela cidade de designação vinda de Lisboa do General Madeira para comandante das armas, em prejuízo da causa nacional, que via no exercício daquele posto pelo general Manuel Pedro a expressão popular simbolizada pelo voto da junta provisória, que dirigia então os destinos da província.

A junta, pretextando a ilegalidade do titulo conferido ao general português, instalou um conselho militar para comandar as tropas; mas estas, compostas pela maior parte de soldados de além-mar, procuravam lisonjear o amor-próprio do seu general, levando-o a não ceder; os brasileiros reagiram e os dois partidos acharam-se em hostilidade aberta no meio das ruas da cidade, entre as habitações dos seus pacíficos moradores, que ficaram expostas a todas as calamitosas vexações da guerra civil.

O dia 19 de fevereiro foi um dia de luto para a cidade da Bahia; as tropas portuguesas, logo ao amanhecer, se derramaram pelas ruas e praças, e cometeram toda a casta de depredações; atacaram os quartéis onde se abrigavam as tropas liberais, e conseguindo entrá-los travaram braço a braço, peito a peito, uma luta feroz e encarniçada, uma luta de morte; e o saque foi geral, nem sequer pouparam as sagradas jóias da capela da Senhora do Rosário, ricamente paramentada, que existia dentro do aquartelamento do extinto 1º Regimento de Linha.

Já não guerreavam com as armas belicosas; soldados grosseiros, estúpidos e desenfreados, armados de alavancas, como um bando de salteadores, faziam saltar as portas, penetravam nos santos templos, roubavam as sagradas jóias, violavam as casas, profanavam o santuário sagrado de famílias inofensivas, e levavam o desacato ao seio das virgens. Tudo sacrificavam à sua brutalidade, à sua concupiscência, à sua avareza, e, bárbaros, assassinavam a mãe, que apertava ao peito o fruto de suas entranhas, cravavam o ferro tinto do sangue ainda fumante nos coraçõezinhos de seus filhos! As tripulações dos navios portugueses vinham também juntar-se à soldadesca e adjudá-la em suas crueldades.

Estas cenas de sangue aterraram a população pacífica, e o general Madeira, frio e impassível como Nero, contemplava-as com um sorriso satânico. Animados os seus soldados com a sua tácita aprovação, renovaram os horrores, redobraram de atrocidades. Entre tantas profanações restava intacto o asilo sagrado das esposas de Deus, das virgens votadas ao culto do Senhor, e o grito tremendo, horrível, sacrílego: “Aos conventos!” partiu dentre eles, e seus olhos ávidos de ouro e de sangue se voltaram para o mosteiro da Lapa. Que silêncio, apenas interrompido pelo compassado ruído de seus passos, precede a bárbara tempestade!...

A madre Joana Angélica, senhora baiana, digna, por suas virtudes, por seus conhecimentos e por suas qualidades, da estima pública, tinha merecido o acatamento e a veneração de suas irmãs, que a escolheram para dirigi-las. Toda a cidade da Bahia apontava para o mosteiro da Lapa, como o asilo de virgens sem nodoa, e falava com orgulho de sua madre abadessa.

Essas virgens votadas ao culto do Senhor estavam prostradas ante os altares, subiam suas preces ardentes e fervorosas, levavam seus rogos a nossa mãe comum, e pediam a sua intervenção na causa da pátria, que se pleiteava nas ruas da cidade, quando as portas estremeceram e caíram pedaços aos golpes dos machados. Os soldados entraram, mas detiveram-se ante o postigo, que dava entrada para o interior; parecia que a unção, que se respirava naquele recinto os havia contido, de repente abriu-se o postigo e se apresentou ante eles uma débil mulher, seu traje era respeitável, o hábito carmelitano cobria os cilícios, que apertavam as carnes, que haviam morrido para o mundo, e sua cabeça veneranda e sublime resplandecia com os cabelos, que lhe branquearam os anos e as macerações.

Era a madre abadessa, era a soror Joana Angélica.

Que de suasões não empregou ela, como não falou eloqüentemente em nome de Deus, como não conjurou-os a que se retirassem, como não lhes mostrou a ignomínia, que lhes resultava de tanta covardia, a eles, os bravos da guerra peninsular, que, degenerados se glorificavam com o triunfo dos salteadores, e se coroavam com os louros do saque!

E a turba, rugindo, como um leão, avançava compacta e ameaçadora.

Detende-vos, bárbaros, bradou a madre abadessa com o acento nobre da indignação e da mais santa coragem, aquelas portas caíram aos vaivéns de vossas alavancas, aos golpes de vossos machados, mas esta passagem está guardada pelo meu peito, e não passareis, senão por cima do cadáver de um a mulher!

E eles, avançando sempre, lhe atravessavam e peito com as baionetas. A madre abadessa cruzou os braços sobre o seio ensangüentado, como se apertasse contra ele a gloriosa palma do martírio, que recebia com a sua morte, alçou os olhos para o céu, e expirou com um sorriso nos lábios.

O capelão do convento, Daniel da Silva Lisboa, respeitável pelas suas virtudes e idade, acudiu ao conflito, entrou e contemplava cheio de horror o cadáver de uma santa no meio de tanta profanação, quando recebeu também a morte na ponta das baionetas! Que pavor! O pavimento, tinto do sangue dos mártires, estremeceu, como a terra sacudida por suas comoções internas, e as abóbadas ecoaram os gritos da soldadesca, que se derramava pelos longos corredores, que profanava o asilo sagrado, onde reboavam há pouco, ao som da música grave e profunda dos santos profetas, as vozes puras das esposas do Céu, os hinos sagrados das filhas de Sião. As freiras, espavoridas fugiram, e buscaram no convento da Soledade uma guarida contra aqueles monstros, que ávido das riquezas de seu claustro, se embriagavam no saque!


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A Bahia corria às armas, os brasileiros deixaram a cidade, retiraram-se para o recôncavo e sitiavam os inimigos, tendo à sua frente o tenente-coronel Carvalho e Albuquerque depois Visconde da Torre. Do arraial da Feira de Capuame, dirigia ele as suas proclamações chamando os baianos à guerra, e enviava emissários a todos os lugares, para angariar patriotas, que viessem voluntariamente engrossar as fileiras dos independentes.

As senhoras baianas por sua parte não se mostraram indiferentes ao grito da pátria. Escolheram um cidadão distinto para vir trazer ao trono da imperatriz Leopoldina, então princesa real, os votos de sua adesão à causa nacional e oferecer-lhe em seus nomes a suas jóias, caso fossem necessárias, para a manutenção da santa guerra da independência.

O cidadão M. J. Pires Camargo, incumbido de tão honrosa missão, exprimiu-se assim em nome das senhoras baianas interpretando tão nobremente os patrióticos sentimentos, que as animavam:

“Real senhora! Se a sensibilidade é a virtude, que gradua o entusiasmo daquelas ações, que tem por objeto a glória da pátria e o interesse de suas prosperidades, ninguém poderá disputar às ilustres baianas o direito de vir à presença de Vossa Alteza Real oferecer suas homenagens, na época em que o Brasil, sua pátria comum, principia a se elevar do abatimento, em que enlangueceu por séculos, com manifesta afronta dos grandes recursos, que ele oferecia, para poder entrar na jerarquia das nações mais famosas.

“Animadas por este mesmo espírito, por esta mesma energia de caráter, que sempre distinguiu os cidadãos da Bahia, elas não podiam deixar de mostrar sua indignação à vista das temerárias e insultadoras pretensões de alguns gênios facciosos, que pretendem erguer no seio daquela cidade os monumentos da antiga escravidão do despotismo colonial, quando todas as províncias suas irmãs levantavam debaixo da sagrada égide da constituição a grande árvore de sua liberdade política.

“A formidável perspectiva das baionetas já tintas no sangue de pessoas de seu sexo, bem longe de amortecer o seu patriotismo, só serviu para as obrigar a correr mais depressa a se unirem à brilhante cadeia, que ligará todo o Brasil em roda do trono do incomparável príncipe regente, defensor perpétuo dos seus direitos. Roma se lisonjeou em outros séculos de achar em suas ilustres matronas os testemunhos do mais público interesse pela sorte de suas vitórias: elas salvaram a pátria ameaçada pelas lanças do inflexível Breno; ofereceram com o maior heroísmo todas as suas jóias depois da batalha, e quando sobre as ruínas de Veies o célebre Camilo deliberava sobre o modo de ajuntar a soma de ouro necessária para a oferta, que se devia enviar a Apolo, elas apareceram com uma generosidade sempre admirável, apresentando para desempenho do voto o ouro, que possuíam. A Bahia teria o prazer de ver renovado este espetáculo, se as circunstâncias chegassem a ponto de exigirem os mesmos sacrifícios, e as nações da Europa conheceriam que o gênio das senhoras baianas é em tudo igual ao dessas heroínas, que ainda vivem, e recebem louvores sobre as páginas da História, que nos transmite a lembrança de suas virtudes. O direito de viver na posterioridade é o mais honroso e a maior recompensa, que as senhoras baianas procuram, vindo à augusta presença de Vossa Alteza Real oferecer os seus corações, como as mais belas oferendas, que a natureza pôs ao alcance de seu sexo.

“Na augusta linha das princesas do antigo hemisfério qual será mais digna desta homenagem, do que Vossa Alteza Real? Filha dos Césares, herdeira daquelas virtudes políticas, que sustentam há séculos a glória da augusta casa da Áustria, enriquecida dos conhecimentos literários, que na Alemanha sempre fizeram o ornamento de muitas senhoras respeitáveis, Vossa Alteza Real promete ao Brasil na sereníssima família das princesas e príncipes futuros os penhores mais infalíveis de sua glória à sombra da constituição, que cobrindo o Trono, o fará mais respeitável, do que jamais foi. Nós acreditamos, que as potencias da Europa já nos contemplam com ciúme, porque somos possuidores de príncipes tão liberais, tão amigo dos povos, e tão afastados dessa antiga política, que fazia sempre inacessíveis as pessoas dos reais aos infelizes, quando eles os procuravam em sua aflições. Só o Brasil não tivesse esta fortuna na crise do desenvolvimento de suas forças físicas e morais, não poderia conceber esperanças de subir à altura, a que ele se propõe chegar. O império mais florente hoje no norte da Europa deve a sua rápida elevação ao gênio de um príncipe, que, voltando das cortes estrangeiras levou as artes e as ciências ligadas ao carro triunfal, em que entrou em seus estados, deve a sua legislação a uma princesa, que mandou aos sábios, que pesassem em uma balança imparcial os direitos de seus povos, para que nunca reclamassem contra a justiça. Nós deveremos nossa fortuna a um príncipe, que viajando pelas províncias do Brasil, desassusta os povos ainda receosos de que volte o antigo despotismo, e o convida a gozarem das vantagens da regeneração política, que lhes oferece, a um príncipe, que pondo em prática o exemplo de Luís XIV, inspirado pelo patriotismo do nosso Colbert brasileiro, chama de todas as partes do globo os sábios e os artistas para virem adentrar o gênio dos brasileiros e oferecer-lhes as riquezas da árvore da ciência, que nos fora defendida por uma política menos fundada, do que as do Paraíso; deverão igualmente a Vossa Alteza Real a inviolabilidade dos nossos direitos, porque transmitirá aos nossos príncipes estes sentimentos do amor dos povos e da conservação das suas regalias, segundo os príncipes constitucionais.

“Digne-se portanto Vossa Alteza Real acolher com benignidade os protestos de respeito, de submissão e do particular amor, que as baianas consagram a Vossa Alteza Real, como o brasão de seu sexo na Europa, e no Brasil, aceitando esta felicitação, que eu com infinito prazer, encarregado pelas mesmas ilustres baianas, ofereço a Vossa Alteza Real.”


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Não se limitaram as senhoras baianas à simples manifestação de seus patrióticos sentimentos. Algumas dentre elas se distinguiram além do que se devia esperar de seu sexo: empunharam as armas, voaram ao campo da batalha!

Tanto pode o entusiasmo inspirado pelo amor da pátria!

Entre estas corajosas mulheres, de almas varonis, de corações guerreiros, tornou-se célebre dona Maria de Medeiros.

Tranqüilo e indiferente à causa, que se pleiteava, achava-se no seu sítio do rio do Peixe, não longe da então villa da Cachoeira, o colono português Gonçalo de Medeiros, que vivia da criação de gado e cultura de algodão, quando um desses emissários veio bater-lhe à porta. Recebeu-o Gonçalo de Medeiros com aquela hospitalidade brasileira, que tanto admiram os estrangeiros, apresentou-o à sua família, levou-o para sua mesa e ofereceu-lhe o seu jantar.

Sentou-se à mesa com o seu hóspede, tendo a seu lado a sua esposa e seus filhos, bem como dona Maria de Medeiros, filha de sua primeira mulher, que era senhora portuguesa. Rolou a conversa sobre os recentes acontecimentos, e sobre o que mais havia de interessante para se falar? O emissário demonstrou com as mais vivas cores o progresso e riqueza desta terra, que primeiro se chamou da Cruz, como um dos mais belos países do mundo, e quais seriam os benefícios, que resultariam para o seu engrandecimento e progresso, se se tornasse independente, formando com todas as suas províncias um dos maiores impérios. Expôs a degradante condição, a que o reino português queria de novo reduzir o Brasil, tornando-a simples colônia, para fazê-lo voltar à opressiva e humilhante tirania, que tanto impediria a sua marcha na senda da prosperidade e da civilização. Narrou com entusiasmo e eloqüência a proclamação da emancipação política, que sem derramamento de sangue triunfava nas províncias do Sul, narrando os longos serviços, e mostrando a glória de Dom Pedro I, como fundador da monarquia americana e exaltando as virtudes da jovem imperatriz, acabou por apelar para o amor da pátria e generosidade de seu hóspede.

As palavras, como mágicas expressões, acendem o entusiasmo no coração da jovem baiana, dona Maria de Medeiros. O colono porém, que se mostrara frio, insensível e indiferente, respondeu que estava velho, e que portanto não podia ir reunir-se ao exército; que não tinha filho algum, que pudesse dar em seu lugar, e que um ou outro escravo dentre vinte e tantos, que possuía, que mandasse para as fileiras dos independentes, nenhum interesse teria em pelejar pela liberdade de país, que não era o seu, e terminou ajuntando, que aguardaria com paciência o resultado da guerra, e seria súbdito pacífico do vencedor.

— É verdade que não tendes um filho, meu pai, lhe disse Maria, mas lembrai-vos que as baianas do Recôncavo manejam as armas de fogo, e o exercício da caça não é mais nobre, do que a causa da pátria. Tenho o coração abrasado; deixai-me ir disfarçada empunhar as armas em tão justa guerra.

— As mulheres, respondeu o velho, fiam, tecem e bordam, e não vão à guerra.

Maria de Medeiros calou-se, suspirando tristemente; o emissário admirando o contraste, que se dera entre o pai e a filha, louvou tanto patriotismo, elogiou tão nobre empenho e retirou-se.

A jovem dirigiu-se furtivamente à casa de sua irmã casada, que morava a pouca distância. As palavras do emissário ainda lhe retiniam nos ouvidos, e pois, com os olhos brilhantes de entusiasmo, relatou tudo a sua irmã, e terminou dizendo, que desejava ser homem, para poder ir reunir-se a seus compatriotas.

— Pois eu, respondeu a irmã, a não ser casada e ter filhos, era bastante ouvir metade do que me contas, para ir alistar-me nas fileiras do imperador.

Esta linguagem determinou o ânimo da jovem Maria, fazendo-a se decidir pela idéia, que a dominava; pediu à irmã alguma roupa de seu cunhado para seu próprio uso, e retirou-se. No dia seguinte Maria de Medeiros seguia de longe, sem ser vista, a seu pai, que se dirigia à vila da Cachoeira a vender seus algodões; aproveitava-se assim da companhia, sem que ele o soubesse, para que o seu socorro lhe fosse útil no caso de necessidade. Ao avistar a vila da Cachoeira, fez alto, apartou-se da estrada, perdeu-se de seu pai, vestiu os trajes varonis, que levava, e entrou na povoação: dali a dois dias um soldado fazia a guarda do quartel do regimento de artilharia.

Era ela.

Conheceu porém que o serviço lhe pesava por demasiadamente impróprio à debilidade de seu corpo, à delicadeza de seu sexo, e passou-se para o batalhão de caçadores denominado dos voluntários do príncipe Dom Pedro, organizado sob o comando do bravo major José Antônio da Silva Castro. Já então era conhecido o seu disfarce. Traiu-a o próprio pai quando, sabendo de seus desígnios, dirigiu-se ao quartel para reclamá-la; já era tarde; tinha prestado o juramento solene ante o altar da pátria, que reclamava o concurso de seus filhos, repetindo o brado sagrado do Ipiranga.

As fileiras do exército da independência não tiveram simplesmente um defensor. Dona Maria de Medeiros mostrou-se guerreira corajosa e distinguiu-se por seus feitos d'armas. Quando os inimigos tentarão de novo apoderar-se de Itaparica e outros muitos pontos da costa, ela achou-se à frente de muitas senhoras baianas, e guiou-as à vitória. Repelida de Itaparica pelo bravo general J.J. de Lima e Silva, a esquadra inimiga aproou à foz do Paraguaçu. Nem a chuva de metralha, que varria a praia, despedida das bocas-de-fogo das embarcações, nem as ondas embravecidas as detiveram; investiram, protegidas pelo impávido e intrépido capitão Vítor José Topázio, com água até aos seios, e viram com glorio o inimigo ceder de seu intento e afastar-se para longe de suas balas mortíferas.2

O brado do Ipiranga retumbou finalmente nos campos de Pirajá e nas praias de Itaparica! Os louros da vitória coroaram as armas brasileiras! O general Madeira, desanimado pelo aperto do cerco, sentindo os horrores da fome, embarcou-se com as suas tropas e fez-se de vela para o Reino.

Raiava então o 2 de julho, e o grande exército pacificador entrava triunfantemente na capital da província e fazia tremular sobre as eminências a bandeira auriverde! O general Madeira ouviu ainda o estampido do canhão, saudando o pavilhão de um novo povo!

As freiras da Soledade tinham preparado brilhante recepção aos defensores da pátria, que tão nobre e corajosamente haviam vingado o martírio da sua irmã, a madre Joana Angélica. Um arco triunfal, enramado de folhas verdes, se elevava por onde tinha de desfilar o exército em sua passagem. Enviado pela superiora madre Maria José do Coração de Bulcão, o padre vigário Antônio José Gonçalves de Figueiredo, então capelão interino das religiosas, veio em nome das mesmas saudar o general J. J. de Lima e Silva, dirigindo-lhe a seguinte alocução:

“A madre superiora e mais religiosas deste convento, inundadas do mais justo prazer e alegria pela plausível e triunfante entrada do exército pacificador nesta cidade, tem a honra de oferecer a V. Exc. e aos Srs. Chefes e oficiais do valoroso exército do seu comando, estas verdes e frondosas coroas de louro, para passar com elas neste arco triunfal. E como as mesmas religiosas, pela sua profissão, não podem pessoalmente adornar-lhes as frontes, digne-se V. Exc. receber das minhas mãos este público testemunho das grandes virtudes e patriotismo, de que se acha revestida toda esta ilustre comunidade.”

As portas do claustro estavam abertas em sinal de regozijo, e o general Lima e Silva foi com a sua oficialidade agradecer pessoalmente esta prova de estima, esta demonstração de amor da pátria. Acompanhava-o também a celebre guerreira D. Maria de Jesus. As religiosas, cheias de entusiasmo, espargiram-na de flores, coroaram-na de grinaldas entrançadas das folhas verdes e floridas do cafezeiro, e abraçando-a pediram-lhe que transmitisse esse abraço de gratidão aos bravos do exército pacificador.

Assim as tropas do general Madeira se retiraram, levando as espadas nodoadas do sangue de mártir Joana Angélica, enquanto que as tropas do exército pacificador entravam na capital, coroadas com as grinaldas tecidas pelas mãos das religiosas baianas.

Pacificada a Bahia, embarcou-se Dona Maria de Medeiros e veio trazer a Dom Pedro I a nova da feliz restauração. O imperador, que amava os bravos, que se entusiasmava com a glória das armas, tomando uma insígnia de cavaleiro da sua Imperial Ordem do Cruzeiro, colocou-lhe no peito com a própria mão, dirigindo-lhe estas simples, mas sinceras palavras, que tanto a sensibilizaram: “Concedo-vos a permissão de usar esta insígnia como um distintivo, que assinale os serviços militares, que com denodo raro entre as mais do vosso sexo prestastes à causa da independência do império na porfiosa restauração da Bahia.”3

Dela faz Wanden honrosa menção na sua História do Império do Brasil.

A ilustre inglesa Maria Graham, que viajou pelo nosso país, e escreveu e publicou em Londres o jornal de sua viagem, ornou a sua obra com o retrato de Dona Maria de Medeiros, deu algumas notícias biográficas, e teceu-lhe o seguinte e modesto elogio: “Dona Maria não é instruída, mas é hábil. Creio que com alguma educação poderia ter-se tornado notável. Pouco ou nada tem a sua aparência de varonil; suas maneiras são belas e agradáveis, pois não obstante viver entre soldados, não só não contraiu os seus hábitos grosseiros, bruscos e vulgares, como até nada se pode dizer contra a sua honra.”

Trajava o uniforme de seu batalhão, porém para mais recato adicionava-lhe um saiote; não era Joana d'Arc, mas um highlander.4

Da geração, que assistiu às peripécias do grande drama da independência, já pouco resta. Já quase que todos os heróis dormem no seu leito de glória entre os troféus, em que nascera o império americano. Que a pátria reconhecida jamais se esqueça de seus nomes, e que ao repeti-los rememore também alguma vez o nome da mulher guerreira, que combateu pela liberdade, o nome de Dona Maria de Medeiros. Por que não soará também ele entre os hinos e as ovações de 2 de Julho? Por que a nossa História, muda para ela, não lhe consagrará também uma de suas brilhantes páginas?


✻ ✻ ✻

No princípio do século XVIII ergueram os paulistas o brado de guerra contra os filhos de além-mar. Da designação de Emboabas ou Forasteiros, que lhes davam, passaram infelizmente às agressões armadas, e começou a luita civil tão renhida com sangüenta. Era o prólogo do grande drama da independência que se representava então na capitania de Minas Gerais, e ainda hoje Capão da Traição guarda em seu nome a lembrança dos horrores e atrocidades de que foram vítimas os paulistas, vencidos pela mais negra das perfídias. Reduzidos a um pequeno exército e perdida a esperança dos socorros que aguardavam do governador D. Fernando Martins Mascarenhas, retiraram para S. Paulo; mas seus compatriotas os receberam friamente. Correram aos braços de suas próprias mulheres, mas as paulistanas lhes lançaram em rosto o haverem se ausentado das Minas como fugitivos, sem que procurassem pelo seu valor e coragem o desforço dos agravos, a vingança da derrota, a punição da traição, e estimulando-lhe os brios, conseguiram fazê-los retroceder. “Este fogo”, diz o historiador Rocha Pitta, “soprado por aquele sexo em que se acha mais pronto o furor vingativo, e em que mais ardem os corações dos homens, crescendo nos paulistas com a consideração do crédito, que deixaram ultrajado, e da fama, que tinham perdido (chama interior, que os não abrasava menos pelos seus naturais brios), os fez juntar um numeroso exército de paisanos, para tornarem de novo à palestra com os seus contedores, e elegendo por seu general a Amador Bueno, pessoa entre eles de maior reputação no valor e na prática das armas, marcharam para as Minas.”

Cem anos depois aparecia de novo na nossa história o nome das nobres paulistanas. Entusiasmadas com a independência brasileira, mostraram-se também interessadas pela causa sagrada da pátria. Uma deputação especial de senhoras paulistanas felicitou a augusta imperatriz Leopoldina, pela sua gloriosa aclamação, e nas seguintes palavras, cheias de sinceridade, inspiradas pelo amor da pátria e não eivadas de lisonja, lhe ergueram monumento de gratidão, que, como confessa o visconde de Cairu, honra o belo sexo da província de S. Paulo:

“Senhora! Se o amor da pátria, se a gratidão são as primeiras virtudes das grandes almas; se a natureza, formando o coração do homem, plantou nele esses germes preciosos, que se desenvolvem e se elevam à vista dos objetos dignos dele; se estes não foram atributos do sexo varonil, não é para admirar que as paulistanas, em cujos peitos se agasalharam sempre virtudes heróicas, dando desafogo aos sentimentos mais caros de seus corações, se animem a aparecer junto ao trono imperial a beijar a egrégia e liberal mão de vossa majestade imperial, e render-lhe os mais justos protestos de submissão, respeito e eterna gratidão, e dar na augusta presença de Vossa Majestade Imperial sinceros parabéns ao Brasil e à cara pátria, que fazer da justiça aos elevados merecimentos de Vossa Majestades Imperiais, a quem tanto deve, os aclamou seus primeiros imperadores.

“Se nossas vozes não tiveram a ventura de chegar imediatamente aos pés do Trono: se não nos coube a glória sem par de beijarmos as imperiais mãos de nossa protetora (glória, que tanto ambicionamos), seja ao menos este um testemunho de nosso amor e particular adesão à augusta pessoa de Vossa Majestade Imperial.

“Entretanto nós dirigimos ao Céu os mais ardentes votos pela conservação da preciosa vida de Vossa Majestade Imperial, de seu augusto consorte, nosso idolatrado imperador, e toda a família imperial; pela segurança e firmeza do trono brasileiro, por cuja estabilidade estamos prontas, transcendendo a debilidade do nosso sexo, a derramar até a última gota do nosso sangue.

“Tais são, augusta senhora, nossos votos; a gratidão e o patriotismo não têm outra linguagem.”

O orador encarregado de apresentar a felicitação à augusta imperatriz, José Arouche de Toledo Rendon, varão esclarecido e um dos ardentes colaboradores da independência, dirigiu-se respeitosamente à mesma augusta senhora nestas sublimes palavras, que são elogio de suas patrícias.

“Senhora! Se tenho a satisfação de haver presenciado nos altas campinas de Piratininga o primeiro brado, que os pauilistas deram em defesa da liberdade, e que fez abalar as abóbadas do Congresso lisbonense, onde se tramara e decretara escravidão eterna no Brasil; se então mesmo fui honrado pelos meus patrícios, para com mais dos ilustres deputados irmos em janeiro deste ano assistir, presenciar e coadjuvar os primeiros fundamentos do edifício imperial, que felizmente está levantado; se neste curto período de dez meses tenho adquirido nunca interrompido contentamento de ver que uma força incógnita, mas superior a tudo, tem feito germinar, vegetar e erguer com passos de gigante a árvore de nossa liberdade constitucional; agora, augusta senhora, o meu amor da glória parece ter enchido a seu vazio, quando as minhas patrícias, as fiéis heroínas de S. Paulo, me elegem para chegar à presença tão respeitável como amável de Vossa Majestade Imperial, e em seu nome com o mais profundo respeito beijar-lhe a augusta mão pela sua exaltação ao trono imperial, que como consorte, filha e neta de imperadores, em tudo grande, elas a conceituam como progenitora de uma nova série de Césares, que elevarão o nascente império do Brasil àquela grandeza que lhe marcam os germes que a natureza tem criado nele.

“As paulistas, senhora, ainda que nascidas e educadas longe da civilização das cortes, têm contudo a nobre ambição de circularem o trono de vossa majestade imperial, e com seus cândidos peitos formarem nova muralha em defesa de sua augusta pessoa, mas não podendo realizar tão brioso projeto, elas protestam e juram à face do mundo todo não interromper o costume de educar seus filhos na moral santa, no amor ao soberano, e à pátria, na coragem e nas mais virtudes sociais; elas lhes irão desde a tenra idade fortificando os débeis braços com que um dia defenderam o augusto trono da casa de Bragança no império do Brasil.

“Algumas dentre elas com a justa vaidade de herdarem o sangue do imortal paulista Amador Bueno da Ribeira, conservam os virtuosos desejos de terem filhos de igual fidelidade ao augusto ramo da casa de Bragança, que vai ser o trono do império brasileiro.

“Outras, descendentes dos que primeiro vadeando os vastos sertões do Brasil, descobriram as riquezas com que se ensoberbeceu o Tejo, e se enriqueceu o mundo; e netas dos que à sua custa, no meio de mil privações e perigos tiveram a coragem e patriotismo de destruir e arrasar as cidades de Vila Rica, de Guaíra, e Real, erigidas pelos espanhóis nos nossos campos de Guarapuava, obrigando os seus colonos a repassar a medonha catarata das Sete Quedas no rio Paraná, têm iguais estímulos de que a sua descendência faça iguais serviços à pátria, e ao augusto esposo de Vossa Majestade Imperial.

“Elas o cumpriram, excelsa senhora; e quem as conhece de mais perto será injusto, se não confessar que aquelas tenras e amorosas matronas, orvalhando de cristalinas lágrimas as rosadas faces, despedem de seus braços para o serviço do estado seus maridos, seus filhos, seus irmãos, recomendando-lhes, com semblante sereno, coragem e fidelidade. O Céu que tanto nos protege, guarde a Vossa Majestade Imperial para ver realizado o que eu pela minha idade apenas posso prognosticar.”

Notas

1 Que entusiasmo não houve por toda a parte e em todos os corações! As mães amamentando os seus filhinhos, os embalavam depois entoando canções patrióticas: A mais sabida e seguida era a que começava assim:

Acalenta-te, ó menino,
Dorme já para crescer,
O Brasil precisa filhos,
Independência ou morrer!

2 Ladislau dos Santos Titara não se esqueceu desse feito quando compôs o seu poema Paraguaçu. Os versos, que tratam do ataque tão bravamente repelido pelo capitão Vitor José Topázio, são os seguintes:

. . . . . . . . . . . . . . . . . . Por fim investem
A do Paraguaçu foz, em que o Vítor,
Valente defensor, vigia ativo
As tretas ab-rogar-lhes. Mas reteimam
Aqui as hóstis proas; porém forte
Barreira opõem-lhes os patrícios peitos
E armígeras baianas, que terríveis
Do frágil sexo deslembrando-o mimo
Os aguardam na praia, iras nutrindo.
Tu, destemida Pentesília heróica,*
Tinta de iras, rancor e toda fogo,
Mais e mais n’alma delas sopras flamas
E exemplar condutora a todas bradas:
“— Jurai de coração, ó feliz sexo,
“(Deus em vão não chameis!) jurai comigo
“Justas penas tomar da raça iníqua,
“Que o recinto da paz violar ousando,
“À vil sanha imolarão vestal pia:
“E, entre pilhar infame, à pátria ultraje,

“Massacrando ferozes, roubar tentam
“Jóias, que a vida de mais alta estima!
“Como, oh como vereis dos brutos gumes
“Pendente espernegar, morrer a prole;
“Roto o peito, morrer o pai querido,
“Morrer o esposo terno e o terno amante?
“Como guerreiras? Ah! Voe-se às águas!…”
Cessaste; mais que todas pressurosa
Té nas ondas, que o seio alvo te afogam,
Penetras guerreando, e dos pelouros
Não te acurvam relâmpago e tempestade
Oh férvida amazona, quem primeiro,
Quem derradeiro ao Orco lançarias,
Mil clavinaços disparando a frouxo?
Já mastros mordem os rompidos lusos,
Outros sumir-se, e as vidas vão no pego,
E às baianas d’aqui realça a glória.
Renegado o inimigo abrindo as velas
Cedem a palma e o passo, e vão em giro
Sítios outros tentando; mas em todos
Caloroso chofra-os pátrio brio,
Que em pátrio peito, liberdade, geras.”

* Dona Maria de Medeiros. — No canto épico a festa do Cruzeiro, procurei celebrar os feitos d'armas de tão distinta brasileira.

3 Querendo conceder a dona Maria Quiteria de Jesus Medeiros um distintivo, que assinale os serviços militares, que com denodo, raro entre as mais de seu sexo, prestara à causa da independência deste império, na porfiosa restauração da Bahia: hei por bem permitir-lhe o uso da insígnia de cavalheiro da Ordem Imperial do Cruzeiro. Paço, em 20 de agosto de 1823, segundo da independência e do império. Com a rubrica de S. M. I. — João Inácio da Cunha.

4 Recebi hoje (29 de agosto de 1823) a visita de dona Maria de Jesus, jovem senhora, que ultimamente distinguiu-se na guerra do Recôncavo. Trajava o uniforme de um dos batalhões do imperador, com a adição de um saiote, que me disse a optara do figurino de um highlander, por lhe parecer mais conveniente a seu sexo. O que dirão os Gordon e Mac-Donald? O vestuário do antigo Gaul, escolhido como adorno mulheril! Journal of a Voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821, 1822, 1823, by Maria Graham. 1 v. In-4, Londres, 1824, p. 292.