1.ᴬ Parte






A Mr. Jean Finot



Mestre:


Não
nos conhecemos pessoalmente; todavia, conhecemo-nos profundamente.

Quando existe uma afinidade de princípios e uma espiritualidade semelhante de aspirações humanitárias, nunca se é desconhecido.

E na vossa obra tão nobre, tão admirável e justa, vive realmente o meu espirito e a minha alma, assim como os meus sonhos ardentes de libertação e de justiça.

Sou uma mulher quasi obscura. Mas sou uma irmã espiritual do vosso Ideal.

Identifico-me absolutamente com a vossa mentalidade de sociologo, cujos argumentos cheios de razão, de justiça e de verdade se iluminam de reflexos de uma bondade transcendental.

As vossas ideias revelam não só uma grande clareza de senso ético como também um espirito subtil, investigador.

A toda a parte onde chegue a minha voz, ela será um eco das vossas doutrinas.

E a minha devoção não exprime unicamente um sentimento pessoal; traduz também o da alma torturada do meu sexo.

Tenho sido uma vitima do prejuízo dos sexos. E d'esses prejuízos resultaram efeitos pessoais e sociais.

Poderia ter feito uma ampla obra social necessária ás exigências da humanidade, se esses mesmos prejuízos o não tivessem impedido.

Hoje sou uma vitima torturada de sofrimentos.

Não disponho de recursos artísticos, scientiíicos, sociologicos, como seria necessário para produzir um bom trabalho sociologico.

Possuo unicamente a educação do sentimento e da ideia esclarecida e depurada na experiência dos factos.

A minha obra tem apenas o mérito da espontaneidade da emoção intensa e da intuição profunda.

¡Quanta magua me oprime quando reconheço os defeitos d'essa obra!

Vejo n'elas as consequências terríveis do desdem convencional que imobiliza as vocações femininas reclamadas pelas leis naturais para adiantar o aperfeiçoamento das almas e das consciências.

¡Que grande erro é o que protege a ignorância psicológica, destruindo as garantias do progresso, no esquecimento votado á mulher!

A minha vida é a prova infalível das vossas nobres teorias, proclamando a verdade através das leis soberanas que regulam o Universo.

A escravidão da metade do genero humano é um crime social, um atentado contre-nature.

Vós o afirmais teoricamente.

E a minha vida o confirma praticamente.

E' a razão que fala dentro da minha dôr, talvez indicada pelas forças dinâmicas para ser um símbolo de luz.

Eu sofri durante longo tempo.

Dapois um dia o Destino, a dôr extrema e a compreensão tardia dos meus direitos, lançaram-me no caminho escabroso das reivindicações femininas.

¡Que combate desigual, formidável, tenho sustentado!

¡Quantas injustiças esmagam as pobres mulheres em luta com as falsas concepções éticas!

¡Que tragedia de angustias, de humilhações, de injustiça, de desolação e dificuldades teceu uma corôa de espinhos que refloriu em dôr dentro da minha alma!

Essa dôr, transformada em fé obstinada e ardente, é hoje a arma d'aço do meu combate inspirado num grande Ideal.

Tudo o que faz o desgosto e o descontentamento da vida me feriu.

Tudo o que constitue a alegria de viver e as exigências afectivas e espirituais das naturezas intensas me devorou o monstro feroz que se chama convenção, o carrasco da felicidade humana que se chama inconsciência.

Só, quasi exilada, prejudicada pelas consequências da ilegalidade dos direitos conjugais, que permitem todos os erros administrativos ao soberano do ménage, eu tenho sofrido amargamente. Uma força, porém, me fortificou : a confiança no meu instinto; e uma consolação meu deu coragem: a luz da minha consciência exclusivamente dedicada á causa sagrada da humanidade.

D'esta fórma se explica o meu gesto oferecendo-vos este trabalho insignificante mas sincero.

¿Que direito tenho eu para realizar esse gesto? O direito do reconhecimento que conduz as vitimas junto do seu advogado. E ainda o direito das leis naturais que atraem os espíritos precursores através da transmissão dos pensamentos, irmanando as suas ideias n'uma só e generosa aspiração. Hoje a minha alma, o meu coração, o meu espirito, a minha consciência, são raios de fé alentados pelo martírio e pela convicção de que existem poucas mulheres aptas para exteriorizar sugestivamente os seus pensamentos, e trabalhar activamente pela libertação do seu sexo.

Ao presente o meu sonho condensa-se no desejo de comunicar o fogo ardente das minhas aspirações libertadoras a todos os espíritos, a todas as almas de élite, para activar a emancipação e a concórdia do genero humano.

N'esse intuito desejava aproximar as forças intelectuais dos artistas portugueses n'um núcleo associativo que gerasse a consubstanciação das ideias, dos sentimentos e das iniciativas, fertilizando d'essa fórma o campo inculto das humanas reformas sociais.

Mas, ¡ suprema desolação!

No meu paiz não ha elementos suficientes para organizar uma semelhante agremiação.

O scepticismo e o pessimismo do século alimentam a obra da demolição. E os costumes, favorecidos por falsas concepções, desdenham de todo o esforço fóra das tradições.

Estes costumes são a placa da rotina conservadora. E sobretudo, a acção e a voz da sensibilidade feminina, são pequeninas gotas de orvalho perdidas no mar agitado das paixões politicas e das leis tradicionais e obscurantistas.

E, salvo raras excepções, ignora-se e esquece-se que as causas pessoais são as causas gerais. E que a causa da mulher é a causa dos dois sexos, é a causa da humanidade, a causa universal, a causa que precipita as pertubações horríveis da guerra e as anarquias nacionais e internacionais.

Em Portugal existem certamente grandes mentalidades, belos e luminosos espíritos, soberbos talentos artísticos. Falta, porém, o interesse pelas concepções que demonstram o prejuízo dos sexos.

A ideia feminista existe unicamente em teoria, mas muito pouco em facto. D'ai a necessidade de activar o movimento emancipador que é a carinhosa preocupação do vosso espirito e dos sociologos modernos, entre os quaes vós vos destacais como uma verdadeira gloria humanitária e altruista.

O que é essencial no meu paiz é estabelecer uma permuta de relações espirituais entre os sociologos estrangeiros e a nossa élite intelectual. Seria preciso ligar, n'uma corrente hipnótica de sentimento, todas as energias emotivas e ideológicas para as encadear n'um laço de simpatias florescendo em inspirações creadoras e evolutivas.

Esta confraternização produziria certamente a reacção ética do espirito português, estabelecendo ao mesmo tempo princípios mais justos sob o ponto de vista da sociologia moderna que estuda o problema dos sexos e da família.

A França é a alma mater da civilização, o facho triunfante das mais belas conquistas do pensamento humano; e vós sois um glorioso interprete das suas belas ideias civilizadoras.

Sois também um amigo dedicado e carinhoso de Portugal e do seu progresso.

Estas duas maravilhosas circunstancias inspiraram-me um desejo sedutor. Seria estabelecer a identificação do vosso espirito e da vossa orientação sociológica, tão fecunda e redentora, com a flôr da intelectualidade portuguesa que oferece garantias para um movimento de progresso ao mesmo tempo estetico e humanitário.

D'esta forma se estabeleceria uma cultura permanente de creações no vasto domínio dos sentimentos e das ideias.

¡Quantos estímulos fecundos!

¡Quanta inspiração creadora!

¡Quantas chamas ardentes podiam engendrar os belos pensamentos, as reacções sagradas da fé, a confraternização de esforços generosos tão necessários á marcha vitoriosa do progresso!

Entre muitos nomes que sobresaem na orbita da intelectualidade nacional, menciono alguns belos espíritos que eu conheço mais de perto e com os quais penso realizar esta associação internacional de humanidade e progresso.

O primeiro é o de Magalhães Lima.

Ha muito que conheceis esse nome brilhante, que admirais como de resto todos os grandes intelectuais e pacifistas do mundo literário e scientifico que rende homenagem á sua mentalidade admirável, ao seu coração de cristalina bondade, ao seu caracter imaculado e á sua consciência identificada com lodos os nobres pensamentos de justiça, de amor e de liberdade.

Ele deve ser o director espiritual e querido d'essa obra confraternizadora.

Menciono outros nomes de brilho que deverão cooperar n'essa bela iniciativa. São autores de belas obras literarias e jornalisticas que todo Portugal admira.

Antero de Figueiredo, Julio Dantas, Mayer Garção, Sousa Costa, João Grave, Afonso Lopes Vieira, João de Deus Ramos, João de Barros, André Brun, Joaquim Manso, Antonio Correia de Oliveira, constituem, entre muitos outros, uma honra á literatura nacional e estão comigo em pensamento.

Na esfera feminina destacam-se também nomes de valor que apoiarão esta iniciativa.

Em primeiro lugar a Doutora D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

Esta mulher extraordinária, tão justamente glorificada por todo o mundo culto que admira os seus méritos de filologa, de investigadora eminente, é uma amiga de Portugal, que a venera extremamente pelos seus magníficos trabalhos históricos, artísticos, scientificos, consagrados ao estudo da nossa literatura, da nossa lingua, das nossas tradições.

Ela é uma amiga espiritual das minhas ideias e uma dôce consoladora das minhas dôres.

O seu nome prestigioso representa sem duvida uma força suprema para esta agremiação.

Outras mulheres ha ainda que teem o seu lugar superior na orbita intelectual e feminista.

D. Virginia de Castro e Almeida, D. Maria Amalia Vaz de Carvalho, D. Domitilia de Carvalho, D. Branca de Gonta Colaço, D. Lutegarda de Caires, D. Emilia de Sousa Costa, D. Maria Clara Correia Alves, D. Ana de Castro Osorio, D. Angelina Vidal, D. Maria Benedita Mousinho de Albuquerque, D. Maria O'Neill, D. Maria Veleda e ainda algumas outras de merito mas que eu não conheço pessoalmente.

Porém o espirito associativo não está ainda cultivado nos elementos femininos. A intransigência, a diversidade de seitas, talvez a intolerância e os pequeninos nadas pessoais, prejudicam lamentavelmente as colectividades e engendram sistemas violentos.

Por essa razão as forças dispersas e mutiladas ficam n'uma fraca minoria.

Não existe esta rara intuição, esta sabia e subtil divisa da evolução de crear o perfeito dentro do imperfeito, inspirada pelas doutrinas do Evangelho que ensina a perdoar para aperfeiçoar, visto que cada um tem as suas fraquezas e os seus defeitos.

Seriam estes princípios a alma da instituição nascente que deverá denominar-se Congresso Permanente de Educação, Humanidade, Arte e Pacifismo.

Este Congresso será um centro de permanente expansão moral, uma agencia de todas as belas ideias novas e de todas as obras emancipadoras.

Confesso-vos que os embaraços que dificultam esta inovação são formidáveis e que é preciso muita coragem, obstinação e confiança para afrontar os rudes golpes do pessimismo e da hostilidade quasi geral.

Mas a minha fé é tão grande como infinita é a minha, esperança. Creio por isso no êxito d'essa iniciativa.

Conto com a vossa generosa cooperação e a de todos os vossos ilustres camaradas e compatriotas.

Nunca devemos duvidar do triunfo de todas as novas idealizações de bondade moral, cristalizando a essencia do Bello e do Justo.

Ha uma força suprema que triunfa sempre. E' a que nasce do sentimento. E' ela a estrela das mais audaciosas conquistas da ideia.

Mas é preciso que se agite activamente, n'uma larga esfera. E' preciso que atraia e aproxime os espíritos e as almas n'uma atmosfera de amor e doce emoção de elevação espiritual, que estreite os laços das simpatias estéticas e emotivas.

Os deveres do humanitarismo transformar-se-hâo então em fonte de doces consolações, de intimas e puras alegrias.

O vosso espirito de bondade o compreende decerto, ligando-se á obra de educação moral a que prendo os meus sonhos, e onde o vosso nome ficará esculpido como um disco de exemplar e nobre grandeza espiritual.