Calvario de Mulher/O problema feminista em face da guerra

O problema feminista em face da guerra
 

Dizem os advogados do pacifismo, que a guerra é um estado de degenerescencia patologica. Que produz o erro, a embriaguez da conquista, a loucura, o erotismo de ambições, a precipitação ilegal e irreflectida do despotismo, a falta de raciocinio sereno e logico, emfim, o desequilibrio das ideias e dos actos.

Não conheço a fundo os tratados pacifistas. Mas entre alguns que tenho folheado, observo que se discutem todas as causas, que um aturado estudo scientifico vai salientando. Mas abordam-se essas causas segundo a etica antiga e contemporanea. A causa das causas que entra nos dominios do futurismo, está pouco revelada. Confirmam esta opinião alguns argumentos extraídos de um interessante opusculo de Bensabat Amzalak, A questão Pacifista, prefaciada pelo ilustre Pacifista dr. Magalhães Lima:

«Se o grupo de individuos que compõem uma sociedade estiver em estado de saude, isto é, se praticar acções colectivas segundo a natureza das coisas, essa sociedade estará sã, e será a mais prospera possivel. Se pelo contrario estiver influenciada pelo erro a sociedade virá a sofrer as consequencias d'esse estado patologico colectivo. ¿Como atingir o estado de prosperidade relativa individual e colectivamente? Creando o bem-estar individual que cria o bem-estar colectivo. O meio essencial é procurar e conservar a felicidade e a vida. E os individuos ou as Nações que a destroem estão em erro, portanto em estado de loucura. Eis como uma das causas da guerra é o erro de que provém a loucura».

Adaptemos agora estas considerações ao resumo de efeitos que venho detalhando. Somem-se com imparcialidade, com humanitarismo e inteligencia. E essa soma esculpirá este dilema de verdade e de justiça, no espirito sinistramente agitado dos Povos em luta. Dentro dos insondaveis prejuizos da guerra, agita-se como causa primordial o problema dos sexos. A mulher, que é o deposito invulneravel da vida, não póde permanecer na sociedade como uma parcela infima e desrespeitada. A sua função procriadora é a indicação solene, inviolavel da reabilitação dos seus destinos.

A divisão da sociedade provém da divisão dos sexos, e da desunião da familia. Homem e mulher são dois descontentes e dois vencidos. Separa-os o problema moral. Só o quebradiço fio material lhes serve de liame efemero. Rivais e contendores reduzem-se a reprobos expatriados, expulsando-se a si proprios do reino de uma felicidade que a sua ignorancia renega. Deportados que arrastam a vida n'um exilio de inconsciencia, em mendigar de falsas venturas, vegetam á tona d'essa vida desconhecendo-a como se desconhecem a si, ignorando as impressões reanimadoras e os meios de ser feliz. A incuria da higiene moral e material, perturba cada vez mais naturezas doentes. O direito de cultivar os vicios triunfa.

E no presidio da nostalgia, no abismo da loucura, no desespero cobarde de suicidio, ou no desfecho da morte prematura, e no delirio sangrento de guerras e conflitos politicos se despenha nma humanidade nevrotica que se infelicita ás portas do Paraizo. Não se sabe pedir á vida tantos confortos que ela encerra contidos na bondade do Bem, e na beleza do Belo. Não se sabe fazer a educação de si mesmo creando sobre a vontade fraca o influxo de sugestões nobres, incluindo a arte, a natureza, o fervor de ideias puras que geram os cultos aperfeiçoantes. Desconhecem-se as consolações que em si eria quem vê mais as infelicidades humanas de que as suas proprias, e faz d'elas linitivo, consolo e religião. Vencidos que deviam ser vencedores, vitimas do seu pessimismo, do seu personalismo, tombam, estereis, impotentes e anormais, sucumbidos em desalentos vãos e pueris.

Já sofri esse mal. Já caí d'essa queda.

Mas reagi, mas levantei-me. Confrange-me hoje a recordação da fase esteril da minha vida em que desumanizada, inferiorizada, concentrada na cobardia infima do meu eu, alimentei pensamentos suicidas e me definhei de desesperos intimos. Desconhecia a grandeza da vida moral e espiritual. O destino tinha-me fechado as suas portas. Ignorava a beleza agridoce da dôr que define no martirio os sentimentos de eleição. Mas venci-me, e triunfei. Adquiri o direito de apontar aos desalentados o caminho do salvamento.

E' certo que tinha em mim uma força ― o instinto. Mas todos podem crear uma outra força, estudando-se. Eu apliquei por instinto á minha queda moral, as teorias que ha dias li n'um belo livro La éducation de soi même de Dubois. Os que não tiverem esse natural estimulo procurem-n'o na sugestão dos bons livros, dos espiritos educados, das almas retemperadas na experiencia, na adversidade e no exercicio da vida util e sã.

Eu venci-me e venço-me tenazmente. Ainda hoje o faço trabalhando febrilmente, exgotantemente, sem gloria nem pro- veito material. Mas tenho a gloria e o proveito da minha consciencia em festa. Na minha qualidade de mulher, asfixiada n'um meio inculto onde se imobiliza e afronta o esforço e as ideias do meu sexo, tenho sustentado uma luta pavorosa, desigual. Tenho vivido entre a familia e as multidões, desconhecida, ignorada, anonima, perseguida, torturada.

Não tenho sido o que sou, nem acreditada conforme creio. A injustiça, a deturpação de actos e ideias que desejam desvendar o erro das consciencias barram na cegueira d'essas consciencias, teem muitas vezes trazido a flux no meu animo oprimido de dôr, revoltas e indignação, que não são da minha natureza, provando-se assim que a influencia da mediocridade de sentimentos e de ideias, não só semeia o mal por si, como ainda affecta aqueles que só pensam em realizar o bem.

D'esse facto eu extraio mais um estimulo para o urgente e escabroso combate do bem contra o mal, que descerre com a chave de ouro da emoção, racional, a palpebra lassa da cegueira que enche de trevas os espiritos.

Apontar á humanidade as causas de seu mal. Dizer-lhe que é doente porque se envenena com abusos de alimentação carnivora, apopletica, artritica. Que se requeima de alcoolismo, que se lança no crime, no vicio, na prostituição contre nature, pela consequencia de pruridos abusivos, e não reclamações da natureza. Que compra e vende a desgraça, a degenerescencia, n'esse mercado deprimente de escravatura feminina que clama o remedio na solução tão grave do problema moral e economico. Que é desmoralizada e desmoralizadora legalizando o vicio para vergonha da falsa moral. Que é cumplice e vitima, conservando a mulher em posição infima. Que é ela propria que faz de si uma humanidade desgraçada rugindo coleras e blasfemias, avida de gran- dezas, de glorias, de ostentação, de interesses, resolvendo pela guerra, a desgraça das Nações. E como estas causas se ligam á causa da rehabilitação feminina, por meio do seu estudo diminuirão todos os efeitos. A educação regularizará a vida domestica e social, a prosperidade moral, economica e espiritual.

E' tempo, soou a hora grave e tremenda em que é forçoso que enimudeça

a voz dos conservadores e dos rivais do valor feminino.

E' urgente que reconheçam que em todos os movimentos progressivos das nações adiantadas que honram e ennobrecem a civilização, é concedido á mulher o direito de colaboradora inteligente e infatigavel das obras de solidariedade. A' medida que o elemento feminino se integra na função social, reconhece-se que ela é a alma vivificante de todas as instituições, a sua força inspiradora, a centelha do amor, o exemplo da obstinação, da resistencia e da audacia empreendedora e inicial. Em Portugal perdem-se valores anonimos, preciosos concursos de inteligencia, de sentimento que vegetam no desconhecido e se inutilizam nas dificuldades e a revolta de seu esforço impo- tente. E' tempo, é a hora solene da guerra mundial em que a trombela da justiça deve lançar ao mundo o alarme da razão.

Retraiam-se as inepcias de concepção que argumentam que a mulher só tem lugar entre o fogão e o açafate das piugas. A mulher inteligente, instruida nos engenhos da ordem, do metodo, e da divisão do tempo e do trabalho, póde e deve dividir-se entre a familia e a sociedade, sendo regular em ambas as funções. O tempo gasto em dobrar e desdobrar frioleiras, em exibições publicas e estereis aplique-o em obras de educação moral e altruista, distraíndo-se e adoçando a rudeza do egoismo e dos costumes, fazendo o bem, pensando em coisas graves e humanas. Os que apregoam essa absurda razão, querem-n'a para o lar ignorante e boçal, para servir de instrumento ao egoismo das paixões reinantes. Repudiam a sua intervenção social. Mas desvanecem-se vendo-a passar o tempo na rua, grotesca de atavios, desnudada, provocante, vā, e sómente apropriada ao reinado dos instintos de desmoralizadora influencia.

 

E' tempo, sim. Clama-o a voz do direito, da razão intangivel proclamando as reinvindicações de sexo feminino, pela voz das mulheres que em nome da sua dôr, da sua resistencia, do seu sacrificio, da experiencia do seu raciocinio, da inspiração da sua fé, da luz triunfante da sua consciencia, representam a verdade d'esse humano direito.

Assiste-lhes a força que a natureza lhes deu para servirem de enfermeiras na doença de atrofia dos entendimentos, e provar-lhes que na opressão e na ignorancia em que vive a mulher, ela só póde dar á sociedade naturezas morbidas, impropriamente educadas, dispostas ás pai- xões eroticas, á vaidade, á ambição, á incoerencia, impulsivas, violentas, delinquentes. E d'estas naturezas só sáem individuos e caractéres incapazes de dirigir os Povos com acerto e exercer competentemente qualquer função publica, social ou familiar.

Eis a chave do enigma que alimenta no criterio confuso e amorfo das multidões, o espirito selvagem e louco das guerras.

 

Emfim, á custa do seu proprio sofrimento, o homem acabará por escutar a voz da mulher que é um eco da razão humana. E atraído por ela para o culto do sentimento, compreenderá melhor a lei do verdadeiro amor. Interpreta-lo-ha como agente da bondade. E cultivará assim o germinal da felicidade de ambos. E' preciso educar as almas, educar o amor, educar a bondade. Porque a bondade e o amor são os mais eficazes elementos de regeneração social. Ao seu subtilissimo influxo, adoça-se a rebelião dos instintos, amainam-se odios impetuosos, animam-se descrenças pessimistas, reprimem-se violencias ferozes e desabrocha a floração das simpatias. A bondade semeia sempre sorrisos, encanto, atracção pelo caminho que percorrem os corações onde se concentra o seu perfume.

E' um manancial de progresso social. O seu poder exerce-se prodigiosamente sobre a moral e o apuramento dos costumes. E essa bondade, que é a condensação suprema da emoção subtil, incorporea, feita de impalpaveis delicadezas de alma, exprimindo uma necessidade de praticar o bem, de crear a alegria e a felicidade em volta de nós, de consolar e amar, essa deve reflorir em corações de mulheres para que se converta em Paz e harmonia geral.

O sistematico afastamento que arreda do andamento dos negocios publicos e de quasi todos os movimentos colectivos o concurso da mulher, é, portanto, um tremendissimo erro contra as manifestações de solidariedade e altruismo. No nosso paiz, sobretudo, esse sistema é de um atrazo que denuncía uma percepção psicologica a que póde chamar-se torpór da razão. E' raro ver um nome de mulher fazer parte de qualquer movimento de solidariedade ou de progresso em associação com o elemento masculino. A mulher de valor tem pouca representação, embora afirme esse valor. Tem autoridade o mais boçal dos caeiques politicos. O criterio da mulher que sabe pensar é desdenhado. O Estado sustenta milhares de subordinados que esgotam o tesouro. Para a mulher que trabalha pela educação moral, não ha protecção nem consideração, porque se reputa dispensavel o seu esforço.

Prouvera ao destino que em vez de acusar eu louvasse com fervor e reconhecimento em nome dos interesses humanos. Mas na minha ardua luta, nenhuma força oficial me tem dado alento. Retraímento, desdem, incompreensão. De resto, a convencional consideração de louvor, que é cortesia. ¡E que paiz mais carece da obra da educação moral!

Mas é o preconceito, sempre o preconto, a eterna e nefas rotina, a tradição, o erro, o obscurantismo algemando forças que libertariam escravos, mutilando gestos que cultivam obras, mirrando seivas que seriam frutos, e matando anelos que seriam vida.

 

Considerando esta eventualidade uma contingencia anti-moralista, anti-socialista e anti-pacifista, é á propria mulher a quem compete revelar-se, nobilitar-se, cristalizar-se no apogeu das suas luminosas, prometedoras e ignoradas qualidades de espirito e de coração.

N'uma heroica renuncia de si propria, expurgada de mesquinhos impulsos que geram dissidencias, antipatias, rivalidades, deve unir-se em Portugal todo o elemento feminino capaz de preparar o seu advento perante a crise de desolação e devaste que estremece a vida da Europa.

De um recanto ao outro do emisferio perpassa, n'esta hora lugubre, um arrepio de terror e desgraça. Nuvens de presagio entenebrecem os horizontes impelidas pela guela fumegante, morticida, das metralhadoras assassinas.

E' forçoso que as consciencias femininas despertem para a luta dos grandes ideais, que serão a semente do pacifismo. N'esta fase tragica, não será escutado o seu clamor, abafado pelo uivo do chacal que se mistura ao troar lugubre dos canhões. Mas ele achará breve repercussão na humana e forte legião das Pacifistas que devem manter-se cada vez mais firmes no seu posto de combatentes, e a que o espectaculo da guerra deve dar novos alentos.

O triunfo manchado de sangue deixa sempre a macula sinistra da maldade. E o verdadeiro heroismo civico assumiria uma grandeza sublime se o homem, em vez de dar a vida ás baionetas, conseguisse a renuncia de si proprio, retrain- do as más paixões que originam as guerras.

Que a alma da mulher levante o seu protesto. Que as parcelas do seu sentimento esvoacem n'um espaço de progresso como crisalidas gentis e reprodutoras transformando a rudeza e o egoismo da humanidade barbara, em germens de fraternidade e amor. A guerra é a obra secular do dominio do homem. Que de ora ávante a Paz seja o vigor das sociedades futuras cultivado pelos corações femininos. Que eles orvalhem de lagrimas comovidas a terra onde alastra o sangue das vitimas, encorajando aqueles que o dever manda lutar e morrer, martires da tremenda hecatombe. Mas sobre a lugubre montanha dos seus cadaveres trucidados, sobre esses destroços de corpos cheios de vigor e mocidade que a natureza destinára para viver, cultivando-a e amando-a, construa a ternura da mulher, e a sua inteligencia, um monumento de bondade que demonstre ao mundo que o quilate de sentimentos humanitarios das verdadeiras mulheres, sabe fazer do coração um baluarte de amor para afugentar o monstro devorador da guerra. Que as mulheres Portuguezas sejam solidarias com todas as suas camaradas estrangeiras, provando ao homem que a guerra é obra do obscurantismo e que a Paz tem de ser a obra de ambos os sexos, esclarecidos, justos e bons.

E que o anceio confraternizador das almas generosas e das aspirações libertarias, vá de terra em terra, de Patria em Patria, como uma onda aromal e fluida, agitar o sentimento de todas as mulheres do mundo, nossas aliadas e irmãs espirituais.