Calvario de Mulher/A critica e os seus efeitos

A critica e os seus efeitos
 

Quando o ilustre e brilhante escritor João Grave publicou o seu humanitario livro «Reflorir», eu escrevi n'um artigo inserto no magnifico diario do Porto O Primeiro de Janeiro as seguintes considerações a proposito de opiniões criticas:

«A submissão exclusiva a certas regras classicas de arte literaria, que servem de norma ás apreciações criticas, nem sempre é elemento aperfeiçoador. Em determinados casos constitue um prejuizo social. Compreende-se que aqueles que professam o rigoroso determinismo literario, se cinjam a detalhes exigentemente esteticos. Mas é preciso notar que quando uma obra literaria tem como objectivo principal a difusão de ideias belas, se porventura falha em pureza de fórma, ou incorrecções de construção artistica, nem por isso deve amesquinhar-se o seu valor. A grandeza da ideia, por si só, basta por vezes para iluminar e valorizar um livro. Obscurece-la por exagero de diletantismo critico em vez de fazer triunfar os pensamentos n'ele contidos, enaltece-los assimilando-os sobre a inconsciencia dominante, que representa o cativeiro da humanidade, é um verdadeiro delito social. Imaginando render culto ao Belo, renega-se a religião do Bem.

Partindo d'estes principios ― o Reflorir de João Grave deve merecer a consagração de todos os criticos e de todos os espiritos libertadores. A rede ideologiea d'esta obra, abrange um dos mais graves problemas de sociologia. Conglobam-se na sua tese, por assim dizer, as principais eausas ligadas á degenerescencia fisica e moral da sociedade contemporanea.

Dentro da prostituição cabem prejuizos sem conta. Medra a corrupção das consciencias e de organismos já hereditariamente decompostos por causas semelhantes. Medra o crime, cresce o vicio, recrudesce a perversão dos costumes. Trabalhar pelo saneamento d'esse mal pestifero, e de outras doenças sociais, é para todo o artista um scetro de supremacia humanitaria.

Sendo assim, todos os criticos deviam pôr em fóco o alcance de livros que combatam erros e vicios, embora lhes fique o direito de apreciar a feição literaria sem prejudicar o efeito da ideia e dos seus intuitos moralizadores. Seguindo este criterio conseguir-se-ia pôr um dique ás correntes demolidoras de caracter sistematicamente improgressivo. Desde que ha mais cerebros impregnados de fórmas escravizadas a dogmas instaveis e relativos de estetica literaria, do que espiritos e almas vibrando em inspirações intensas de resgate, é humano, é generoso não interceptar o caminho dos mineiros da luz, sob o pretexto de que a sua obra peca por defeitos que nunca devem apagar ou diminuir-lhe os fins. A reconstrução de uma sociedade nova requer o aproveitamento de todas as energias e esforços. Inutilizar ou retardar o resultado das ideias-forças, com certeza é culpa de mór responsabilidade atentatoria dos direitos da libertação humana. E a compenetração de que a sociedade carece de um colossal e unido labor de reabilitação, deverá concentrar todos os entendimentos. superiores na missão que lhes compete de saberem aproveitar com engenho todos os elementos, em vez de dispersá-los e amesquinhá-los perante essa sociedade imperfeita que tanto precisa de soerguer-se triunfalmente ao nivel das concepções modernas. Fixando a luz das descobertas naturalistas que transformam a interpretação da vida mergulhada em erro por um passado tradicionalista, devemos avançar para a claridade do futuro alimentada pelo combustivel da justiça, coroada pelo resplendor da bondade, cristalizando em reflexos de salutar e verdadeira civilização. Aqui está a razão por que o livro de João Grave é para mim um Evangelho de luz, embora alguem pretenda apontar-lhe defeitos literarios. Antes a beleza da ideia suprindo a arte pura do que a arte pura servindo ideias falsas.»

 

A's considerações anteriores acrescentarei mais um resumo de argumentos sobre as responsabilidades de sabios e artistas na obra da refundição social.

A verdadeira arte, a verdadeira sciencia, é fazer reconhecer á humanidade os erros em que vegeta, os vicios e habitos que a degradam e infelicitam; é aplicar a quimica da razão dentro da emoção como reagente evolutivo; é arrotear a gleba rude para a germinação de principios renovadores que criem gerações felizes segundo as leis da natureza e em relação aos bens que ela nos oferece para fruir a felicidade sem o sacrificio de vidas, quer sejam de homens quer de animais.

A arte só póde ser verdadeiramente sublime conduzindo através da beleza o veículo da bondade suprema que tem de iluminar consciencias para frutificar em paz e amor entre as criaturas.

Os artistas que vão na corrente das clausulas antigas, são muitas vezes inconscientemente factores de infelicidade e degradação. Um porque faz desabrochar entre rendas vaporosas de elegancia estilista a flor rubra e venenosa do pecado representante do vicio; outro porque celebra em rasgos de elegancia artistica os episodios da guerra a que se chama brio e heroismo no jogo falso das constituições politicas, entoando assim um hino á maldade e ás paixões que tecem a urdidura das guerras julgando-as indispensaveis á grandeza dos Povos.

Eu penso que é obrigação de todo o artista moderno, pertencente á élite que tem jus á aristocracia espiritual, alçar o alaude mavioso da arte estetica no vasto e trascendente dominio da razão e da verdade, esclarecendo o espirito da humanidade em trevas.

A Arte pela arte é uma volupia dos sentidos, que serve apenas uma determinada élite de espiritos cultos. Emquanto que a Arte, realçando ideias de larga emancipação, serve a causa geral da humanidade.

Só assim a Arte atinge um fim simultaneamente divino e humano. Só em tais casos realiza a sublimidade do seu fim, transformando-se em corrente fluida de beleza, constelação fulgurante de luz, perfume rescendente de bondade, arroio limpido de justiça, arco-iris de amor e elo sacrosanto de fraternidade e redenção.

Bem quizera eu ser artista e erudita para fazer da Arte a sugestão da ideia, e da ideia o resplendor da Arte. Não sou uma nem outra coisa. Mas, «nada se perde», dizem ha seculos as verdades bihlicas. Não foi debalde que o destino acumulou a efervescencia de pensamentos n'um cerebro elastico de mais para os crear, e demasiado estreito para os conter. Assim como previdentemente dispoz a circunstancia que interceptou a evolução gradual das faculdades intelectuais para fixar em prova, o prejuizo mencionado por Novicow na Emancipação da Mulher, onde o grande sociologo diz:

«Cada talento de mulher que não chega ao seu pleno desabrochar, é um passo a menos para a obra da civilização.»

Demonstrarei esta verdade estabelecendo uma comparação entre duas existencias de mulheres, das quais a primeira foi na corôa gloriosa da literatura francesa uma fulguração de brilho imortal, e a segunda permaneceu uma obscura obreira da luz, mal revelada na penumbra do desconhecido á falta de combustivel proprio que falha n'um meio deturpado pelas consequencias do atrazo social

A estrela de scintilação imensa foi George Sand. Ao seu lado a modesta obreira da luz, é apenas nma restea humilde anciosa de ser claridade. Alguns espiritos cultos teem comparado a sua obscura feição de combatente, á da celebre pensadora francesa que iluminou e electrizou na sua dualidade vibrante de filosofia-sentimentalista, tantos artistas ilustres a quem comunicou o fogo da sua alma, as scentelhas fosforescentes do seu espirito.

¿Quantos passos avançou a evolução das ideias n'essa França espiritual e progressiva, sob o dominio instigador e sugestivo d'aquela original e fecunda inteligencia de mulher? ¿E qual a razão que marca uma distancia enorme entre dois espiritos femininos, que podendo ser semelhantes por natureza, são tão diferen- tes em condições e efeitos?

Uma atingiu a alta esfera da arte elevando-se ao apogeu da soberania intelectual. Creou muito, brilhou, glorificou o seu nome, glorificando a Patria que se engrandeceu engrandecendo-a, orgulhosa do legado precioso de ideias que o seu talento soberbo depositou no tesouro da literatura e da sociologia.

Emquanto que outra passou de um embrião para um meio tambem embrionario, escasso de condições propicias á dilatação das ideias renovadoras ligadas á causa da mulher e á importancia da sua obra.

George Sand, encetou a sua carreira literaria a tempo e a horas. Encontrou embora houvesse de combater e vencer os obstaculos que são o percalço infalivel na vida de espiritos anormais e percursores, sempre sujeitos á incompreensão e á perseguição dirigida ao valor dos seus raciocinios e actos innovadores.

A restea de luz que desejára ser clarão, irrompeu precocemente em promessa de maior intensidade. Mas esse refulgir prematuro estacionou quasi despercebido, suspendeu-se, retraiu-o a rêde estreita dos preconceitos aprisionando os vôos de uma imaginação ardente de futura socialista que aos dez anos exprimia a sua dolorosa e enternecida revolta em trovas de simplicidade ingenua que interrogavam humanitariamente:

 

«Porque é que somos tão ricos
Se ha gente tão pobresinha,
Sem ter pão, sem ter um lar
Nem uma pobre caminha?

Tanto vinho nas adegas,
Tanta fruta no pomar,
E vêr tanto pobresinho
A's portas a mendigar!

Nossa Senhora da Graça,
Que estás sorrindo no altar,
Lança sobre os desgraçados
A benção do teu olhar.»

 

Estas quadras infantis e outras do mesmo genero, foram publicadas n'um Almanach pelo falecido Poeta Antonio Xavier Rodrigues Cordeiro, acompanhadas de uma previsão que afinal um destino de grilheta convencional renegou.

Frisando todos estes detalhes, eu desejo vincar nos espiritos que lerem estas paginas sentidas, o prejuizo que resulta de se imobilizarem atributos que constituem beneficio individual ou social. Se existissem as necessarias habilitações psicologicas que impõem responsabilidades melindrosas aos pais e aos pedagogistas, a criança que era castigada pelas suas abstracções de idealista e pensadora precoce; que era ridicularizada pelas condiscipulas por fazer versos; que chorava perante os maus tratos infligidos aos animais; que amava carinhosamente os pobres, os serviçais, os humildes, os desgraçados, teria sido estudada e bem dirigida.

E assim averiguado pelas condições de hereditariedade e de natureza dispostas nas proporções que engendram um conjunto de promesas excepcionais, teria atingido na vida o grau nobilitante da supremacia artistica e sociologica que con- stitue a celebridade das grandes ideias, dos grandes apostolos do Bem, e das Nações poderosas e cultas.



Mas, cada um dá o que tem, diz o adagio. E seria da minha parte uma cobardia, um retraímento egoista, delinquente, não expôr á critica a minha pobre e imperfeita prosa, renunciando á devoção de divnlgar ideias belas e humanas e cuja difusão é de incontestavel alcance no futuro das sociedades. Justificam-se na carencia de condições todos os defeitos da minha obra.

A's minhas proprias e exigentes concepções de arte não satisfaz o trabalho que realizo. ¿Mas em que circunstancias o produzo? São tão extraordinariamente anormais, que só as explica um fenomeno de fé realizando um milagre de resistencia. Com alguns anos apenas de exercicio literario, lendo pouco, sem boas revistas, sem viagens, continuamente perturbada pelas responsabilidades e dificil solução de toda a minha vida moral e material, ¿poderia fazer obra perfeita?

Tem-me valido sómente a actividade laboriosa do espirito e dos movimentos decisivos e rapidos, assim como a força do instinto que apreende com facilidade, talvez por fenomeno de adivinhação, o conteúdo de um livro folheado ligeiramente, ou o alcance de factos e ideias abordados pela rama mas compreendidos rapidamente. As regras de arte, ― embora essas regras sejam instaveis e relativas ― cingidas a determinadas condições de elegancia, de brilho, de sintese, só podem observar-se desde que um estudo regular, e a assiduidade de convivencia intelectual, constituam um curso pratico e teorico de arte literaria.

O ambiente exerce tambem grande influencia sobre as fontes da inspiração e embelezamento da fórma.

Dá-se comigo um caso curioso. Se me encontro n'um recinto confortavel, artisticamente decorado e rodeado de bons livros, sinto que o espirito desdobra azas de arte, e um fluxo e refluxo de ideias afloram ao cerebro embelezadas por uma sensação de intimo e fecundo conforto. Dir-se-ia que os livros dardejam a scentelha que iluminou e inspirou os autores. E' que d'entre as paginas geniais comprimidas nas estantes, se desprendem fluidos magneticos, forças ocultas e espiritas, que adejam em torno dos meus pensamentos em correntes invisiveis de transmissora. espiritualidade.

Mas bem longe d'esse ambiente, a pobre imaginação torturada, tem-se expandido apenas entre as apertadas paredes inesteticas, inexpressivas e mercantis, de casas hoteleiras onde recrudesce a toda a hora a nostalgia requeimante do home, a saudade desalentadora dos afectos familiares.



Todas estas explicações detalhadas, teem um sentido educador ligado ao prejuizo resultante das apreciações irreflectidas e demolidoras que se fazem por falta de ponderação, depreciando muitas vezes valores e ideias generosas.

Ainda ha poucos dias me sucedeu colher uma grande injustiça dentro da apreciação da obra de dous artistas portugueses. Alguem realçava injustamente a soberania e a exuberancia literaria de um artista notavel, querendo colocar a sua obra em nivel superior,―tanto em qualidade como em quantidade,― á obra de outro artista. Avaliadas as condições devidas, o segundo era afinal superior, não só pelo ilate das ideis, como pela delicadeza artistica da fórma. A diferença é que um era livre, independente, conseguira um desafogo material que lhe permitia dedicar-se á arte, ao estudo, publicando as suas obras com sucesso e prestigio. O outro tinha familia, encargos, prisões burocraticas, embaraços, cuidados economicos que comprimem o espirito e restringem a produção.

Depois um retraía-se, evitava a exibição do seu genuino talento. O outro vivia cercado de condições prestigiosas. A arte d'este era uma caprichosa filigrana de estilo, um filtro capitoso de estetica, uma volupia espiritual que falava aos sentidos. A do outro era a harmonia sonora e maviosa do sentimento falando ao coração. E se um era um arco-iris, uma fosforescencia, um insecto alado de azas irisadas e frementes sugando o nectar das flores que o destino semeára no seu caminho desabrochando em gloria e proveito, o outro era uma claridade de aurora, era um grito de justiça e liberdade, era um sonho de poeta, era um poema de sentimento, deixando nas almas um rastro de perfume, de bondade e de beleza. Se um deslumbrava e embriagava, o outro aperfeiçoava, comovia e embelezava. E se um era gloria e brilho, o outro era gloria e luz, projectando clarões de altruismo.

Mas é tão dificil ponderar, saber julgar, distinguir valores, aquilatá-los, realçá-los fazendo ver que o exito nem sempre é valor, e o valor se recalca e perde fóra do éxito ostensivo...



Emfim, o meu grande sonho, o vôo alongado das presentes considerações, resume-se n'estas tres palavras: justiça, verdade, redenção.

Para que a sua essencia entre rapidamente na alma humana, convertendo-a em harmonia, todos os elementos me parecem poucos.

Sinto um fanatismo idolatra pelos artistas que fazem da arte uma florida roseira de progresso de onde brotam continuamente as rosas da bondade. Venero todos os que inspiram a sua obra no ideal do futuro, apagando os traços negros do passado que vincam na alma das multidões, influencias barbaras de guerras, sugestões de tirania, tradições de inconsciencia, de libertinagem galante e fóra das aspirações nobres que devem ser a plataforma da vida futura.

Sobretudo, a minha alma de mulher curva-se religiosamente perante a grandeza espiritual de artistas que se consagram ao culto das gerações. E ao fechar este livro, de alma concentrada na preocupação dolorosa da crise convulsa, alucinante, que agita a Europa em pleno seculo das luzes e faz recuar o esforço civilizador de seculos, mais se afervora a minha calorosa e comovida admiração por todos os artistas devotados á obra da infancia. Fazer menção de Afonso Lopes Vieira, o mavioso poeta das crianças, é encerrar com chave de ouro estas singelas paginas de verdade. ¿Haverá corôa de gloria mais fulgente para um artista, do que fazer das almas das crianças canticos de amor, alfobres de bondade, onde a brandura frutifique, onde a emoção realce e aperfeiçõe? Realizar essa obra é amar a humanidade inteira, é crear no futuro a mais bela, a mais pacifica, a mais tocante cristalização da solidariedade. E' cultivar a arvore da Paz, é fazer brilhar o sol do resgate que sazonará os frutos da união entre a familia, a sociedade e as nações.

Os artistas, os poetas que fazem da Arte a corrente divina da beleza e do sentimento, aformoseando as almas infantis no amor por tudo quanto vive e sofre, por tudo quanto é puro e nobre, são os verdadeiros herois da redenção, os conquistadores e os paladinos da liberdade humana. Semear a jorros, eis o meio de solver o grande e confuso problema social. São ainda em minoria as élites partidarias da religião do amor, os combatentes da obra da violencia e da destruição.

Eis porque n'esta hora de carnificina e odio, em que as nossas aspirações de Paz ganham em ardor e profundeza, devemos saudar, instigar e glorificar aqueles que ensinam o credo do amor ás criancinhas de hoje, preparando o raiar de uma aurora de luz que será o triunfo da harmonia das gerações de amanhã. Só então as crianças fortes e boas serão delicadas e justas. E deixará com certeza de existir o Calvario da Mulher e o Calvario da Humanidade.