Carta de guia de casados/Cachorrinhos e outros bichos
XX
Ora já que vou tam miúdo, hei de me aventurar um pouco mais ; servirá de alegrar a melancolia, que até aqui guardamos. Senhor N., não sou de cachorrinhos enfeitados, que sempre tem nomes misteriosos. Já me sucedeu em uma igreja vir-me perguntar um pagem esbaforido, se vira eu por ali o cuidado da senhora D. fulana, que andava perdido : e perguntando qual era o cuidado daquela senhora, que pudera bem ter outros, achei que era um cachorrinho daquele nome. Papagaios, saguins, são praças mortas, mui escusadas, e que as mais vezes induzem ligeireza. Senhor meu, os mineiros pelas ervas, pelas flores, que dá a terra cá por fóra, conhecem logo qual tem ouro lá dentro, e qual não tem ouro. Tanto podem os sinais exteriores.
Vou estando tam impertinente, que nem pássaros hei deixar. Roussinol de todo o ano, que canta de noite, e dizem logo que faz saudades, ¿ de que serve ? ¿ De que servem saüdades estando o marido em casa ? Não convém que haja saüdades neste tempo, nem que se conheçam. Negrinho, negrinha a que se digam requebros ; enjeitadinhos graciosos, vilões simples (que às vezes não são simples) vestidos de côres, que se chamam Dons fulanos, entram, e vão por donde querem, não quisera eu que entrassem, nem fôssem por casa de v. m. Tudo isto na minha má opinião é repreensível ; e folgara de o ver longe das portas de meus amigos.
Juro a v. m. que tôda a vida me enfadaram as damas dos livros de cavalarias, porque sempre as achava acompanhadas de cachorros, de leões, e de anões. Tam inimigo sou destas tais sevandilhas, que nem em livros mentirosos as sofro ; ¿ veja v. m. que será nas cousas verdadeiras ? Mas o que é humor, ou capricho meu, não é razão que se assente por regra geral. Seja advertido para quem tiver outro tam mau gôsto.