XLVI


Mesa


A tôdas estas cousas assista a previdência, e não a soberba ; que sendo guiadas por aquela, serão justas, e excelentes ; e por esta demasiadas, e escandalosas. Convenho em que o casado principal tenha a sua mesa não faminta, limpíssima, e bem servida ; mas, que seja mesa para a bôca, não para os olhos. Quero dizer, que ministre a necessidade, e não a vaidade.

Ora contarei duas cousas a êste propósito estranhas, e que ambas vi, e alguma experimentei com meu dano. Havia um grande de Espanha tam grande na vaidade, certo, como na miséria ; mandava-se servir de dôze pratos ao jantar, e outros tantos à ceia, que se lhe ministravam em público com notável cerimónia ; e era certíssimo que só dêles os três levavam iguaria, e os nove passavam sua carreira tam vazios como a cabeça de seu dono.

A outro vi, que tendo, por razão de seu cargo, o prato de certo príncipe, a quem servia, mandava levar as iguarias a sua casa, as quais lhe serviam a êle à mesa, e de que pouco se servia. Sucedia-lhe logo outra mesa de seu filho herdeiro, que comia com hóspedes de ordinário, e de quem eu o fui algumas vezes ; e eis aqui que apareciam outra vez aqueles pratos, sendo já a terceira que no mesmo dia tinham saído a público ; mas não parando nesta mesa, se armava o tinelo, e lá iam aos criados maiores, e dêles desciam os resíduos aos menores ; de feição que cinco papeis faziam os pobres pratos antes de serem de todo consumidos. Por onde, com agudeza bem da sua terra, dizia um dos criados desta casa, que el N. su señor era el mayor cavallero de España ; porque se servia com nietos de infantes ; porque todos sus criados estavam en el quarto grado con S. A. Aludindo às quatro mesas, por onde, como graus, vinham descendo a êles as cousas, que na sua se comiam.

Tanto pode, senhor N., a vaidade com os homens, e mais no tempo de hoje, que lança sancadilhas à natureza, e a derruba. Que o homem côma bem por necessidade, pode passar ; que côma bem por regalo, pode passar ; mas que funde seu crédito em pratos vazios, ou aparecidos como figuras de comédias, guarde-nos Deus de tal semsaboria.

O servir à mesa com os criados, cousa é costumada ; mas em verdade que êstes nossos portugueses servem com tal descuido, ou confusão, que tinha por não grande perda o servir com as criadas. Misturas dêles, e delas não fizera eu nunca ; e sempre aconselhára ao senhor se servisse com as criadas, senão fôra destituí-los a êles para nunca o saberem servir quando vem hóspedes : onde é necessário que os criados assistam, e onde convém que saibam melhor o que fazem ; cousa, que raramente sabem fazer os nossos.

Achei-me na côrte de Londres, em casa dos embaixadores de S. Majestade a aquele trágico rei Carlos I ; e havendo-se de dar ali uma ceia às damas da raínha, e às maiores senhoras de Inglaterra, suposto que na casa se tinha mui decentemente preparado aqueles ministros ; eu que sou assim proluxo, e não vi em nenhum de seus criados a arte necessária para tal ministério, o tomei à minha conta ; e com um filho, e um neto de um embaixador, o genro de outro, e o secretário da embaixada, o negócio se dispôs de feição, que se deram as convidadas por melhor servidas ainda do que regaladas. Tanto importa o saber servir às mesas nobres, que verdadeiramente é a principal iguaria delas ; mas entre nós poucas vezes achada ; e também digo que nem muitas achada menos.

Acabo isto com o exemplo de S. Majestede, que põe fim a tôdas as razões, e esforça a minha ; pois podendo ser servido de seus criados, os deixa, e certo que com grande acôrdo, e se serve com as damas, e criadas da rainha. Tenho para a pessoa de qualquer estado por mais limpo, e quieto modo de servir à mesa, aquele das mulheres, ainda que não sejam anjos as que ministrem. E por isto dizia um convidado de uma sua parenta, que o fazia servir de duas criadas, uma feia, e outra bem parecida : Senhora, cá viera todos os dias, se a feia só me servisse ; porque estoutra é anjo, que me deixa anjo.

Já que aqui estamos, diga-se (pois também importa) que não se côma desorado ; quero dizer, fora de tempo. É grande inconveniente para as pessoas a quem assistem seus criados. Quando o ministério, o ofício, ou negócio assim o pedissem, fôra de parecer que os criados comessem primeiro ; porque de outra sorte seria intolerável, e anda sempre a casa mal servida : acontecendo que por esperar o senhor que comam os criados, se comem depois dêle, perder mil vezes o negócio, ou saída, por não ter de quem se acompanhe.

Gabo muito, senhor meu, um conservar nas casas certos costumes nossos familiares, e antigos, que as fartam, alegram, e agasalham, corroborando de novo o amor que se tem ao senhor da casa. Teve v. m. um parente grandíssimo mestre destas políticas, e o mais amado amo de seus criados que eu vi jàmais, por estas e outras utilíssimas humanidades que guardava com êles.