XLVIII


Quintas


O ir às quintas louvo, o morar nelas não gabo ; não porque me pareça indecente, mas porque o tenho por desacomodadíssimo ; vindo a ser estas quintas uma quinta essência da ciganaria. Estraga as casas, desbarata os móveis, destroça os criados ; nada se forra, antes se gasta mais ; e os homens nem gozam a quietação do campo, nem a autoridade da côrte. Entendo por estas qiuntas aquelas, das quais se pode vir cada dia a Lisboa, onde com comodidade, ou sem ela, nenhum dos vizinhos deixa de vir cada dia : pelo que disse com a graça que costuma, um nosso discreto, que o côche de fulano ia três vezes cada ano a Jerusalém, lançando as contas certas às léguas que andava cada dia o côche e seu dôno, indo e vindo de outra tal paragem.

Os grandes cortesãos fazem a vivenda do campo aborrecível, que ela de seu não é ; antes alegre, e conveniente. Sendo um convidado de certo fidalgo para estar com outros em uma sua quinta dous dias, ao segundo sem se despedir dos companheiros, tomou o caminho da cidade ; gritavam-lhe os mais, que se detivesse, e como o fizesse assim, e lhe perguntassem aonde ia, respondeu : Amigos, vou-me, porque se estou mais de vinte e quatro horas no campo, cuido que me torno boi.

Julgo por importante acção não viver de contínuo na côrte, e me parece que há uns tempos próprios de se retirar (o casado com sua família) a viver no seu logar, comenda, ou herdade ; enfim aquela parte que mais cómoda fôr para a vida. Se hei-de apontar regras a êste tal retiro, dissera que tendo o casado mais de dous filhos, era o próprio tempo. E que os anos da ausência da côrte podiam bem ser aqueles enquanto os três filhos crescem, e não perdem por não ser conhecidos até então ; como se disséssemos, até idade de oito, e dez anos.

Depois é bom tornar à côrte a introduzi-los nela, para que o rei os conheça, e êles se criem sem espanto dos paços, que sem dúvida o causam aos que os não viram desde a mocidade, como se diz das águas do Nilo, cujo estrondo é medonho ao forasteiro, e do natural não é ouvido. Dizia o Duque de Alva, pai do que hoje é, sendo Mordomo mór de El-Rei de Castela : Si dos dias estoy sin venir a Palacio, al tercero ya tropieço en las esteras, o ellas se burlan de mi.

Parece-me que depois de vindo até casar êstes filhos, se não deve fazer ausência ; e que, casados êles, se faça para descansar a velhice, ou maior idade ; e dar um cristão intervalo entre os negócios, e a morte : que é o mais importante negócio para os vivos.

Esta observação só compreende aquele que vive só para si, e consigo ; porque para o ministro, para o soldado, e para o criado do príncipe, que vai de uns empregos subindo a outros, e merecendo cada dia mais, não é meu ânimo dar por conselho que sem causa deixe cada um sua profissão, e aumentos. Com causa não lho negára ; nem, quando o fôsse, fôra tam indiscreta a minha confiança que esperasse dêsses tais se governariam pelas regras de um homem que tam mal se governou.

Estas ausências trazem grandes, e muitos proveitos à vida, à saúde, à fazenda, à salvação. À vida, porque no campo se vive mais ; à saúde, porque seus exercícios a conservam ; à fazenda, porque se gasta menos ; à salvação, porque faltam as ocasiões que a arriscam, e anda o ânimo mais livre para cuidar em Deus, e em si mesmo.

Não falece contudo quem tudo isto contradiga, porque, como dizia um discreto, todo o homem põe outro nome à sua vontade. Assim é notável a controvérsia, que houve sempre sôbre êste modo de vida retirada. Um fidalgo nosso antigo se gabava que só de « não no há aí » poupava no campo a metade de sua fazenda. Mas não fazia isso assim outro castelhano, que quando se viu alcançado, fingia que se retirava, e não saía da côrte, e dizia que : Para descançar cada uno a su casa, no havia cosa como comerse media dozena de pajes y lacayos sin salir de su tierra.

Estas tais retiradas costumam sempre ter grande contradição nas mulheres ; e quanto elas na côrte são melhor vistas, mais aparentadas, e gozam maior aplauso, tanto mais impugnam tal resolução dos maridos. Contra isso não tenho mais que dizer, que o que disse um mesquinho a outro que lhe pediu dinheiro emprestado, oferecendo-lhe sete razões, pelas quais lho devia de emprestar : Nas mesmas sete me fundo eu (disse o mesquinho) para não fazer o que v. m. me pede.