- Em que se contam as desordens feitas nas festas que se celebraram nos desposórios do nosso sereníssimo infante, com a sereníssima infanta de Portugal.
Tu já tens, Doroteu, ouvido histórias
Que podem comover a triste pranto .
Os secos olhos dos cruéis Ulisses.
Agora, Doroteu, enxuga o rosto,
Que eu passo a relatar-te coisas lindas.
Ouvirás uns sucessos, que te obriguem
A soltar gargalhadas descompostas.
Por mais que a boca, com a mão, apertes,
Por mais que os beiços, já convulsos, mordas,
Eu creio, Doutor... Porém aonde
Me leva, tão errado, o meu discurso?
Não esperes, amigo, não esperes,
Por mais galantes casos que te conte,
Mostrar no teu semblante um ar de riso.
Os grandes desconcertos, que executam
Os homens que governam, só motivam,
Na pessoa composta, horror e tédio.
Quem pode, Doroteu, zombar, contente,
Do César dos romanos, que gastava
As horas, em caçar imundas moscas?
Apenas isto lemos, o discurso
Se aflige, na certeza de que um César,
De espíritos tão baixos, não podia
Obrar um fato bom, no seu governo.
Não esperes, amigo, não esperes
Mostrar no teu semblante um ar de riso;
Espera, quando muito, ler meus versos,
Sem que molhe o papel amargo pranto,
Sem que rompa a leitura alguns suspiros.
Chegou à nossa Chile a doce nova
De que real infante recebera,
Bem digna de seu leito, casta esposa.
Reveste-se o baxá de um gênio alegre
E, para bem fartar os seus desejos
Quer que, a despesas do senado e povo,
Arda em grandes festins a terra toda.
Escreve-se ao senado extensa carta
Em ar de majestade, em frase moura,
E nela se lhe ordena, que prepare,
Ao gosto das Espanhas, bravos touros;
Ordena-se, também, que, nos teatros,
Os três mais belos dramas se estropiem
Repetidos por bocas de mulatos;
Não esquecem, enfim, as cavalhadas.
Só fica, Doroteu, no livre arbítrio
Dos pobres camaristas, repartirem
Bilhetes de convites, pelas damas.
Amigo Doroteu, ah! tu não podes
Pesar o desconcerto desta carta,
Enquanto não souberes a lei própria
Que. aos festejos reais, prescreve a norma.
Enquanto, Doroteu, a nossa Chile
Em toda parte tinha, à flor da terra,
Extensas e abundantes minas de ouro,
Enquanto os taberneiros ajuntavam
Imenso cabedal, em poucos anos,
Sem terem, nas tabernas fedorentas,
Outros mais sortimentos, que não fossem
Os queijos, a cachaça, o negro fumo
E sobre as parteleiras poucos frascos,
Enquanto, enfim, as negras quitandeiras,
À custa dos amigos, sô trajavam
Vermelhas capas de galões cobertas,
De galacés e tissos ricas saias,
Então, prezado amigo, em qualquer festa
Tirava, liberal, o bom senado,
Dos cofres chapeados, grossas barras.
Chegaram tais despesas à notícia
Do rei prudente, que a virtude preza.
E, vendo que estas rendas se gastavam
Em touros, cavalhadas e comédias,
Aplicar-se podendo a coisas santas,
Ordena, providente, que os senados,
Nos dias em que devem mostrar gosto
Pelas reais fortunas, se moderem
E só façam cantar, no templo, os hinos
Com que se dão aos céus as justas graças.
Ah ! meu bom Doroteu, que feliz fora
Esta vasta conquista, se os seus chefes
Com as leis dos monarcas se ajustaram!
Mas alguns não presumem ser vassalos,
Só julgam que os decretos dos augustos
Têm força de decretos, quando ligam
Os braços dos mais homens, que eles mandam.
Mas nunca quando ligam os seus braços.
Com esta sábia lei replica o corpo
Dos pobres senadores e pondera
Que o severo juiz, que as contas toma,
Lhes não há-de aprovar tão grandes gastos.
Da sorte, Doroteu, que o bravo potro
Quando a sela recebe a vez primeira.
Enquanto não sacode a sela fora
E faz em dois pedaços cilha e rédea.
Mete entre os duros braços a cabeça
E dá, saltando aos ares, mil corcovos.
Assim o irado chefe não atura
O freio desta lei, espuma brama,
Arrepela o cabelo, a barba torce
E, enquanto entende que o senado zela
Mais as leis, que o seu gosto, não descansa
Aos tristes senadores não responde,
Mas manda-lhes dizer que, a não fazerem
Os pomposos festejos, se preparem
Para serem os guardas dos forçados,
Trocando as varas em chicote e relho.
Já viste, Doroteu, que o grande chefe,
O defensor das leis, o mesmo seja
Que insulte, que ameace ao bom vassalo
Que intenta obedecer ao seu monarca ?
Pois ainda, Doroteu, não viste nada.
Um monstro, um monstro destes não conhece
Que exista algum maior que, ousado, possa
Ou na terra ou no céu, tomar-lhe conta.
Infeliz, Doroteu, de quem habita
Conquistas do seu dono tão remotas!
Aqui o povo geme e os seus gemidos
Não podem, Doroteu, chegar ao trono.
E se chegam, sucede quase sempre
O mesmo que sucede nas tormentas,
Aonde o leve barco se sossobra
Aonde a grande nau resiste ao vento.
Que peito, Doroteu, que peito pode
Constante, persistir nos sãos projetos,
Ouvindo as ameaças do tirano
E, junto já de si, o som dos ferros?
Somente, Doroteu, os homens santos
Que a sua lei defendem, vêem os potros,
Vêem cruzes, cadafalsos e cutelos
Com rosto sossegado, os outros homens
Não podem, Doroteu, não podem tanto.
À força de temor o bom senado
Constância já não tem; afrouxa e cede.
Somente se disputa sobre o modo
De ajuntar-se o dinheiro, com que possa
Suprir tamanho gasto o grande Alberga.
Uns dizem que, das rendas do senado,
Tiradas as despesas, nada sobra.
Os outros acrescentam, que se devem
Parcelas numerosas, impagáveis
Às consternadas amas dos expostos.
Uns ralham, outros ralham, mas que importa?
Todos arbítrios dão, nenhum acerta.
Então o grande Alberga, que preside,
Vendo esta confusão, na mesma bate
E, levantando a voz, pausada e forte,
A importante questão assim decide:
"Há dinheiro, senhores, há dinheiro;
Vendam-se os castiçais, tinteiro e bancos,
Venda-se o próprio pano e mesa velha,
Quando isto não baste, há bom remédio,
As fazendas se tomem, não se paguem
E, para autorizardes esta indústria,
Eu vos dou, cidadãos, o meu exemplo".
Intentam replicar-lhe os camaristas,
A tão baixos calotes nunca afeitos.
Mas ele, que não sofre mais instâncias,
As grossas sobrancelhas arqueando,
Desta sorte prossegue, em tom azedo:
"Se os meus santos conselhos se desprezam,
Depressa vou dar parte ao nosso chefe.
Ah! pobres cidadãos, se assim o faço!
Já se me representa que vos sinto
Gemer, debaixo dos pesados ferros."
Só tu, maroto Alberga, só tu podes
Desta sorte falar aos teus colegas!
Que importa que os acuses e que importa
Que os prenda, com grilhões, o duro chefe?
São ferros estes, ferros muito honrados,
Que a honra só consiste na inocência.
Apenas, Doroteu, o vil Alberga
Fala em queixa fazer ao nosso chefe,
De susto os camaristas nem respiram,
Quais chorosos meninos, que emudecem
Quando as amas lhes dizem: cala, cala,
Que la vem o tutu que papa a gente.
Mandam-se apregoar as grandes festas,
Acompanha ao pregão luzida tropa
De velhos senadores. Estes trajam,
Ao modo cortesão, chapéus de plumas,
Capas com bandas de vistosas sedas.
Chega enfim o dia suspirado,
O dia do festejo. Todos correm
Com rostos de alegria ao santo templo.
Celebra o velho bispo a grande missa,
Porém o sábio chefe não lhe assiste
Debaixo do espaldar, ao lado esquerdo:
Para a tribuna sobe e ali se assenta.
Uns dizem, Doroteu, fugiu prudente,
Por não ver assentados os padrecos
Na capela maior, acima dele.
Os outros sabichões, que a causa indagam,
Discorrem que o senado lhe devia
Erguer, no presbitério, dossel branco,
Em honra dele ser Lugar Tenente.
Mas eu com estes votos não concordo,
E julgo, afoito, que a razão foi esta:
Porque estando patente e tendo posto
O seu chapéu em cima da cadeira,
Pudera duvidar-se se devia
O bispo ter a mitra na cabeça.
Acaba-se a função e o nosso chefe
À casa, com o bispo se recolhe.
A nobreza da terra os acompanha
Até que montam a dourada sege.
Aqui, meu Doroteu, o chefe mostra
O seu desembaraço e o seu talento!
Só numa função destas se conhece
Quem tem andado terras, onde habitam,
Despidas dos abusos, sábias gentes !
Vai passando por todos, sem que abaixe
A emproada cabeça, qual mandante
Que passa pelo meio das fileiras.
Chega junto da sege, à sege sobe
E da parte direita toma assento.
O bispo, o velho bispo atrás caminha.
Em ar de quem se teme da desfeita.
Com passos vagarosos chega à sege.
Encaixa na estribeira o pé cansado
E duas vezes por subir forceja.
Acodem alguns padres respeitosos
E, por baixo dos braços, o sustentam.
Então, com mais alento, o corpo move
Dá o terceiro arranco, o salto vence
E, sem poder soltar uma palavra,
Ora vermelho ora amarelo fica,
Do nosso Fanfarrão ao lado esquerdo.
Agora dirás tu: "que bruto é esse?
Pode haver um tal homem, que se atreva
A pôr na sua sege ao seu prelado
Da parte da boléia? Eu tal não creio."
Amigo Doroteu, estás mui ginja,
Já lá vão os rançosos formulários
Que guardavam à risca os nossos velhos.
Em outro tempo, amigo, os homens sérios
Na rua não andavam sem florete;
Traziam cabeleira grande e branca.
Nas mãos os seus chapéus. Agora, amigo,
Os nossos próprios becas têm cabelo.
Os grandes sem florete vão à missa.
Com a chibata na mão, chapéu fincado,
Na forma em que passeiam os caixeiros.
Ninguém antigamente se sentava
Senão direito e grave, nas cadeiras.
Agora as mesmas damas atravessam
As pernas sobre as pernas. Noutro tempo
Ninguém se retirava dos amigos,
Sem que dissesse adeus. Agora é moda
Sairmos dos congressos em segredo.
Pois corre, Doroteu, à paridade,
Que os costumes se mudam com os tempos.
Se os antigos fidalgos sempre davam
O seu direito lado a qualquer padre,
Acabou-se esta moda: o nosso chefe
Vindica os seus direitos. Vê que o bispo
É um grande que foi, há pouco, frade
E não pode ombrear com quem descende
De um bravo patagão que, sem desculpa,
Lá nos tempos de Adão já era grande.
Na tarde, Doroteu, do mesmo dia
Sai uma procissão, de poucos negros
E padres revestidos, só composta,
Que os brancos e os mulatos se ocupavam
Em guarnecer as ruas, pois que todos
Ocupados estão nas régias tropas.
Caminha o nosso chefe, todo Adônis,
Diante da bandeira do senado;
Alguns dos rigoristas não lho aprovam,
Dizendo que devia, respeitoso,
Da maneira que sempre praticaram
Os seus antecessores, ir ao lado,
Por ser esta bandeira um estandarte
Onde tremulam, do seu reino, as armas.
Mas eu não o censuro, antes lhe louvo
A prudência que teve: pois supunha
Que, à vista do seu sangue e seu caráter,
Podia muito bem querer meter-se
Debaixo, Doroteu, do próprio pálio.
Que destras evoluções não fez a tropa!
Uns ficam, ao passar o sacramento,
Com as suas barretinas nas cabeças,
Os outros se descobrem e ajoelham
E, enquanto não se avança o nosso chefe
Prostrados se conservam e, devotos,
Não cessam de ferir os brandos peitos.
Ah! grande general! com esta tropa
Tu podes conquistar o mundo inteiro!
Foram muitos felices os Lorenas,
Os Condés, os Eugênios e outros muitos,
Em tu não floresceres nos seus tempos.
Meu caro Doroteu, os sapateiros
Entendem do seu couro, os mercadores
Entendem de fazenda, os alfaiates
Entendem de vestidos, enfim todos
Podem bem entender dos seus ofícios.
Porém querer o chefe que se formem
Disciplinadas tropas de tendeiros,
De moços de taberna, de rapazes
E bisonhos roceiros, é delírio,
Que o soldado não fica bom soldado
Somente porque veste a curta farda,
Porque limpa as correias, tinge as botas
E, com trapos, engrossa o seu rabicho.
A negra noite em dia se converte
À força das tigelas e das tochas
Que em grande cópia nas janelas ardem.
Aqui o bom Robério se distingue:
Compõe algumas quadras, que batiza
Com o distinto nome de epigramas
E pedante rendeiro as dependura
Na dilatada frente, que ilumina,
Fazendo-as escrever em lindas tarjas.
Rançoso e mau poeta, não nasceste
Para cantar heróis, nem coisas grandes!
Se te queres moldar aos teus talentos,
Em tosca frase do país somente
Escreve trovas, que os mulatos cantem.
Andava, Doroteu, alegre a gente
Em bandos pelas ruas. Então vejo
Ao famoso Roquério neste traje:
As chinelas nos pés, descalça a perna
Um chapéu muito velho na cabeça,
E, fora dos calções, a porca fralda.
Em um roto capote mal se embrulha
E grande varapau na mão sustenta,
Que mais de estorvo que de arrimo serve,
Pois a cachaça ardente, que o alegra,
Lhe tira as forças dos robustos membros
E põe-lhe peso, na cabeça leve.
Não repares, amigo, que te conte
Este sucesso, que parece estranho:
Este grande Roquério é um daqueles
Que assenta, à sua mesa, o nosso chefe.
Agora, amigo, vê se esta pintura
Não pode muito bem à nossa historia,
Sem violência, servir, também, de enfeite.
Fiquemos, Doroteu, aqui, por ora,
Pois, de tanto escrever, a mão já cansa.
Em outra contarei o mais, que resta
E vi no grão passeio e mais no curro,
Aonde as cavalhadas se fizeram,
Aonde os maus capinhas maltrataram,
Em vez de touros, mansos bois e vacas.