Em que se conta o resto dos festejos.

Eu ontem, Doroteu, fechei a carta

Em que te relatei da igrejája as festas .

E como trabalhava, por lembrar-me

Do resto dos festejos mal descalço

Na cama, os lassos membros, me parece

Que vou entrando na formosa praça.

Não vejo, Doroteu, um curro feito

De pedaços informes de outros curros

Sim vejo o mesmo curro, que o bom chefe

Riscou na seca praia, e nele vejo

As mesmas armações, as mesmas caras.

Ora vou, doce amigo, aqui pintá-lo

Na frente se levanta um camarote

Mais alto do que todos uma braça:

Enfeitam seu prospecto lindas colchas

E pendentes cortinas de damasco.

À direita se assenta o nosso chefe;

Os régios magistrados não o cercam,

Nem o cerca, também, o nobre corpo.

Dos velhos cidadãos, aquele mesmo

Que faz de toda a festa os grandes gastos.

Com ele só se assenta a sua corte,

Que toda se compõe de novos Martes.

Aqui alguns conheço, que inda vivem

De darem o sustento, o quarto, a roupa.

E capim para a besta, a quem viaja.

Conheço, finalmente, a outros muitos

Que foram almocreves e tendeiros.

Que foram alfaiates e Fizcram.

Puxando a dente o couro, bem sapatos

Agora, doce amigo, não te rias

De veres que estes são aqueles grandes

Que. em presença do chefe, encostar podem

Os queixos nos bastões das finas canas.

Os postos, Doroteu, aqui se vendem,

E, como as outras drogas que se compram,

Devem daqueles ser. que mais os pagam.

No meio desta turba, veio um vulto

Que moça me parece, pelo traje.

Não posso conceber o como deva

Estar uma senhora em tal palanque.

O chefe, (eu discorria), inda é solteiro,

E, quando não o fosse, a sua esposa

Não havia sentar-se com barbados.

Mil coisas, Doroteu, mil coisas feias

Me sugere a malicia, e todas falsas.

Aplico mais a vista, então conheço

Que é uma muito esperta mulatinha

Que dizem filha ser do seu lacaio.

Eis aqui, Doroteu, o como, às vezes

Que tudo é desta classe, e, se viveres

Ainda o hás-de ver obrar milagres.

Pegado ao camarote do bom chefe

Se vê outro palanque, igual em tudo

Aos rasos camarotes do mais povo.

Aqui têm seu lugar os senadores;

Com eles se encorporam outros muitos

Que lograram de edis as grandes honras.

Nos outros adornados camarotes

Assistem as famílias mais honestas:

Aqui nada se vê que seja pobre.

Recreia, Doroteu, recreia a vista

O vário dos matizes; cega os olhos

O continuo brilhar das finas pedras.

No meio de um palanque então descubro

A minha, a minha Nise: está vestida

Da cor mimosa com que o céu se veste

Oh ! quanto, oh! quanto é bela! a verde olaia

Quando se cobre de cheirosas flores

A filha de Taumante, quando arqueia,

No meio da tormenta, o lindo corpo;

A mesma Vênus, quando toma e embraça

O grosso escudo e lança, porque vence a

A paixão do deus Marte com mais força,

Ou, quando lacrimosa se apresenta

Na sala de seu pai, para que salve

Aos seus troianos das soberbas ondas,

Não é, não é como ela tão formosa.

Qual o tenro menino, a quem se chega

Defronte do semblante a vela acesa.

Umas vezes suspenso, outras risonho,

Os olhos arregala e, bem que o chamem,

A tesa vista não separa dela,

Assim eu, Doroteu, apenas vejo

A minha doce Nise, qual menino,

Os olhos nela fito cheios de água,

E, por mais que me chamem, ou me abalem.

De embebido que estou, não sinto nada.

No meio, Doroteu, de tanto assombro,

Me finge a perturbada fantasia

Novo sucesso, que me aflige e cansa.

Aparece, no curro passeando,

Sexagenário velho, em ar de moço:

Traja uma curta veste, calções largos

Da cor da seca rosa, a quem adorna

O brilhante galão de fina prata.

Na bolsa do cabelo, que se enfeita

De duas negras plumas e de flocos,

Branquejam os vidrilhos, e no peito,

De flores se sustenta um grande molho.

Traz dois anéis nos dedos e fivelas

De amarelos topázios. Não caminha

Sem que, avante, caminhe um branco pajem

Atrás da cadeirinha, e o seu moleque

Em forma de lacaio. Ah! velho tonto!

Esse teu tratamento imita, imita

Ao estado que tem o rei do Congo.

Ponho os meus olhos no caduco Adônis,

Então se me afigura que ele oferta

A Nise uma das flores, e que Nise

Com ar risonho, no seu peito a prega.

Aos zelos, Doroteu, ninguém resiste;

Sentem a sua força os altos deuses,

Os homens mais as feras; e, em Critilo,

Não podes esperar paixões diversas.

Apenas isto veio, exasperado

Meto a mão no florete e, quando intento

O peito transpassar-lhe, então acordo

E, vendo-me às escuras sobre a cama

Conheço que isto tudo foi um sonho.

Pintei-te, Doroteu. o grande curro

Da sorte que minha alma o viu sonhando:

Agora vou pintar-te os mais sucessos

Que impressos inda tenho na memória.

Ainda, Doroteu, no largo curro

Caretas não brincavam, nem se viam,

Nos rasos camarotes, altas popas,

Enfeites com que brilham néscias damas

Quando já no castelo de madeira

As peças fuzilavam, sinal certo

De que o nosso herói e o velho bispo

No adornado palanque se assentavam.

Agora dirás tu: "é forte pressa!

Os chefes nos teatros entram sempre

Às horas de correr-se acima o pano.

Amigo Doroteu, tu nunca viste

Uma criança a quem a mãe promete

Levá-la a ver de tarde alguma festa

Que logo de manhã a mãe persegue,

Pedindo que lhe dispa os fatos velhos ?

Pois eis aqui, amigo, o nosso chefe.

Não quer perder de estar casquilho e teso

No erguido camarote um breve instante.

Chegam-se, enfim, as horas do festejo;

Entra na praça a grande comitiva;

Trazem os pajens as compridas lanças

De fitas adornadas, vêm à destra

Os formosos ginetes arreados,

Seguem-se os cavaleiros, que cortejam

Primeiro ao bruto chefe, logo aos outros,

Dividindo as fileiras sobre os lados.

Não há quem o cortejo não receba

Em ar civil e grato; só o chefe

O corpo da cadeira não levanta,

Nem abaixa a cabeça, qual o dono

Dos míseros escravos, quando juntos

A benção vão pedir-lhe, porque sejam

Ajudados de Deus no seu trabalho.

Feitas as cortesias do costume,

Os destros cavaleiros galopeiam

Em círculos vistosos, pelo campo.

Logo se formam em diversos corpos,

A maneira das tropas que apresentam

Sanguinosas batalhas. Soam trompas,

Soam os atabales, os fagotes,

Os clarins, os boés, e mais as flautas:

O fogoso ginete as ventas abre

E bate com as mãos na dura terra;

Os dois mantenadores já se avançam.

Aqui, prezado amigo, aqui não lutam,

Como nos espetáculos romanos,

Com forçosos leões, malhados tigres,

Os homens, peito a peito e braço a braço.

Jogam-se encontroadas, e se atiram

Redondas alcancias, curtas canas.

De que destro inimigo se defende

Com fazê-las no ar em dois pedaços.

Ao fogo das pistolas se desfazem

Nos postes as cabeças. Umas ficam

Dos ferros trespassados, outras voam,

Sacudidas das pontas das espadas;

Airoso cavaleiro ao ombro encosta

A lança, no princípio da carreira;

No ligeiro cavalo a espora bate;

Desfaz com mão igual o ferro, e logo

Que leva um argolinha, a rédea toma

E faz que o bruto pare. Doces coros

Aplaudem o sucesso, enchendo os ares

De grata melodia. Então, vaidoso,

Guiado de um padrinho, ao chefe leva

O sinal da vitória, que segura

Na destra, aguda lança. O bruto chefe

Aceita a oferta em ar de majestade;

À maneira dos amos, quando tomam

As coisas que lhes dão os seus criados.

Nestes e noutros brincos inocentes

Se passa, Doroteu, a alegre tarde.

Já no sereno céu resplandeciam

As brilhantes estrelas, os morcegos

E as toucadas corujas já voavam,

Quando, prezado amigo, nas janelas

Do nosso Santiago se acendiam.

Em sinal de prazer, as luminárias;

Ardem, pois, nas janelas de palácio

Duas tochas de pau, e sobre a frente

Da casa do Senado se levanta

Uma extensa armação, a quem enfeitam

Quatro mil tigelinhas. Meu Alberga

Aqui o prêmio tens, do teu trabalho.

Tu farás, de torcidas e de azeite,

Aos tristes camaristas, contas largas;

E as arrobas de sebo, que não arde

Desfeitas em sabão, mui bem te podem

Toda a roupa lavar por muitos anos.

Nas margens, Doroteu, do sujo corgo,

Que banha da cidade a longa fralda,

Ha uma curta praia, toda cheia

De já lavados seixos. Neste sitio

Um formoso passeio se prepara:

Ordena o sábio chefe que se cortem

De verdes laranjeiras muitos ramos,

E manda que se enterrem nesta praia

Fingindo largas ruas. Cada tronco

Tem, debaixo das folhas, uma táboa.

Sem lavor nem pintura, que sustenta

Doze tigelas do grosseiro barro.

No meio do passeio estão abertas

Duas pequenas covas, pouco fundas

Que lagos se apelidam. Sobre as bordas

Ardem mil tigelinhas e o azeite

Que corre, Doroteu, dos covos cacos

Inda é mais do que são as sujas águas

Que nem os fundos cobrem destes tanques.

A tão formoso sitio tudo acode

Ou seja de um ou seja de outro sexo,

Ou seja de uma ou seja de outra classe.

Aqui lascivo amante, sem rebuço

A torpe concubina oferta o braco

Ali mancebo ousado assiste e faia

A simples filha, que seus pais recatam;

A ligeira mulata, em trajes de homens,

Dança o quente lundu e o vil batuque,

E, aos cantos do passeio, inda se fazem

Ações mais feias, que a modéstia oculta.

Meu caro Doroteu, meu doce amigo,

Se queres que este sitio te compare

Como sério poeta, aqui tens Chipre,

Nos dias em que os povos tributavam

A deusa tutelar alegres cultos.

Se queres que o compare, como um homem

Que alguma noção tem das sacras letras,

Aqui Sodoma tens e mais Gomorra.

Se queres, finalmente, que o compare

A lugar mais humilde, em tom jocoso,

Aqui, amigo, tens esse afamado

Quilombo, em que viveu o pai Ambrósio.

Depõe o nosso chefe a majestade

E, por ver as madamas, rebuçado

No capote de berne; corre as ruas,

Seguido, Doroteu, das suas guardas.

Depois de dar seus giros, vai sentar-se

Em um dos toscos bancos, onde tomam

Assento certas moças que puderam,

Não sei por que razão, cair-lhe em graça.

Não diz uma fineza às tais mocinhas,

Pois não é, Doroteu, porque não saiba,

Que ele tem muito estudo de Florinda,

Da Roda da Fortuna e de outros livros,

Que dão aos seus leitores grande massa.

É, sim, por sustentar a gravidade

Que, no público, pede o seu emprego.

Mas, para lhes mostrar o quanto as preza,

(Oh! força milagrosa do bestunto!)

Descobre esta feliz e nova traça:

Vai sentar-se na ponta do banquinho,

Umas vezes suspende ao ar o corpo,

Outras vezes carrega sobre a taboa

E, desta sorte, faz que as belas mocas,

Movidas do balanço, dêem no vento

Milhares e milhares de embigadas.

Chega-se, Doroteu, defronte dele

Um máscara prendado: não estima

Os discretos conceitos, nem se agrada

De ver executar vistosos passos.

Manda, sim, que arremede o nosso bispo,

Que arremede, também, o modo e o gesto

De um nosso general. São estes momos

Os únicos que podem comovê-lo

No público a mostrar risonha cara.

Oh ! alma de fidalgo, oh ! chefe digno

De vestir a libré de um vil lacaio!

Cresceram, doce amigo, alguns foguetes

Da noite em que o Senado fez no curro

De pólvora queimar barris imensos.

Em uma noite clara, qual o dia.

Ordena que os foguetes vão aos ares.

Vai se pôr no passeio, reclinado

Sobre um monte de pedras; faz-lhe a corte

A velha poetisa, que repete

Um soneto que fez a certos males.

Começam os vapores do ribeiro

A formar, sobre a terra, nuvens densas

Não se vêem, dos foguetes, os chuveiros

Não se vêem as estrelas, nem as cobras

Mas ele os deixas arder, e gasta a noite

Contente com ouvir alguns estalos

E a bulha, que eles fazem, quando sobem.

Já chega, Doroteu, o novo dia

O dia em que se correm bois é vacas.

Amigo Doroteu, é tempo, é tempo

De fazer-te excitar, no peito brando

Afetos de ternura, de ódio e raiva.

No dia. Doroteu, em que se devem

Correr os mansos touros, acontece

Morrer a casta esposa de um mulato,

Que a vida ganha por tocar rabeca;

Dá-se parte do caso ao nosso chefe

Este, prezado amigo, não ordena

Que outro músico vá em lugar dele

A rabeca tocar no pronto carro;

Ordena que ele escolha ou a cadeia

Ou ir tocar a doce rabequinha

Naquela mesma tarde, pela praia.

Que é isto, Doroteu, estás confuso?

Duvidas que isto seja ou não verdade ?

Então que hás de fazer, quando me ouvires

Contar desordens, que inda são mais calvas?

Indigno, indigno chefe, as leis sagradas

Não querem se incomodem alguns dias

Os parentes chegados dos defuntos,

Ainda para coisas necessárias;

E tu, cruel, violentas um marido

A deixar sobre a terra o frio corpo

Da sua terna esposa, sem que tenhas

Ao menos uma honesta e justa causa

Bárbaro, tu praticas tudo junto

Quanto obraram, no mundo, os maus tiranos!

Mezêncio ajuntava os corpos vivos

Aos corpos já corruptos, e tu segues

Outros caminhos, que inda são mais novos;

Separas dos defuntos os que vivem,

Não queres que os parentes sejam pios,

Dando as últimas honras aos seus mortos!

Chega-se, finalmente, a tarde alegre

Do festejo dos touros. Já no curro

Aparecem os dois formosos carros.

O primeiro derrama sobre a terra,

Por bocas de serpentes escamosas,

Dois puros chorros de água; no segundo

Se levantam, alegres, doces vozes,

Que vários instrumentos acompanham.

Aqui, entre os que tocam, se divisa

Um triste rosto, que se alaga em pranto.

Não sabes, Doroteu, quem este se!a ?

Pois é, prezado amigo, aquele triste

Que tem a mulher morta sobre a cama.

O nosso grande chefe mal conhece

Ao pobre do viúvo, compassivo

Mete a mão no seu bolso e dele tira

Um famoso cartucho, que lhe entrega.

O néscio rebequista, que a ação nota,

Um pouco suaviza a sua mágoa,

E, enquanto não recebe o tal embrulho,

Consigo assim discorre: "Que ditosa,

Que ditosa violência, que socorre,

Em tal ocasião, a minha falta!

Já tenho com que pague ao meu vigário,

Já tenho com que pague a cera, a cova,

A mortalha, o caixão, e mais os padres."

Assim o bom viúvo discorria,

Quando pega no embrulho, e mal o rasga,

Encontra, Doroteu, confeitos grandes,

Encontra manuscriti e rebuçados.

Que é isso, Doroteu, de novo pasmas?

De novo desconfias da verdade ?

Amigo Doroteu, o nosso chefe

Estudou medicina, e como alcança

Que o chorar faz defluxo, providente

Ministra rebuçados a quem chora,

Para, com eles, acudir-lhe ao peito.

Principiam os touros, e se aumentam

Do chefe as parvoíces. Manda à praça

Sem regra, sem-discurso e sem concerto.

Agora sai um touro levantado,

Que ao mau capinha, sem fugir, espera.

Acena-lhe o capinha, ele recua

E atira com as mãos, ao ar, a terra.

Acena-lhe o capinha novamente,

De novo raspa o chão e logo investe

Lá vai o mau capinha pelos ares.

Lá se estende na areia, e o bravo touro

Lhe dá, com o focinho, um par de tombos

Nem deixa de pisá-lo, enquanto o néscio

Não segue o meio de fingir-se morto.

Meu esperto boizinho, em paz te fica,

Que o nosso chefe ordena te recolham

Sem fazeres mais sorte, e te reserva

Para ao curro saíres, quando forem

Do Senhor do Bonfim as grandes festas.

Agora sai um touro, que é prudente.

Se o capinha o procura, logo foge.

Os caretas lhe dão mil apupadas

Um lhe pega no rabo, e o segurâ,

Outro intenta montá-lo, e o grande chefe

O deixa passear por largo espaço.

Manda soltar-lhe os cães, manda meter-lhe

As garrochas de fogo, que primeiro

Quem rompam do ligeiro bruto

Nos destros dedos do capinha estalam.

Com estes maus festejos, que aborrecem,

Se gastam muitos dias. Já o povo

Se cansa de assistir na triste praça

E, ao ver-se solitário, o bruto chefe

Nos trata por incultos, mais ingratos.

Soberbo e louco chefe, que proveito

Tiraste de gastar em frias festas

Imenso cabedal, que o bom Senado

Devia consumir em coisas santas ?

Suspiram pobres amas e padecem

Crianças inocentes, e tu podes

Com rosto enxuto ver tamanhos males?

Embora! sacrifica ao próprio gosto

As fortunas dos povos que governas;

Virá dia em que mão robusta e santa

Depois de castigar-nos, se condoa

E lance na fogueira as varas torpes.

Então rirão aqueles que choraram,

Então talvez que chores, mas debalde.

Que suspiros e prantos nada lucram

A quem os guarda para muito tarde.