Aquele que se jacta de fidalgo
Não cessa de contar progenitores
Da raça dos suevos, mais dos godos;
O valente soldado gasta o dia
Em falar das batalhas, e nos mostra
Das feridas, que preza, cheio o corpo;
O louco namorado não descansa
Enquanto tem quem ouça as aventuras,
Que fez com as madamas, mais senhoras,
Benzendo-se mil vezes, quando chega
Aos lances apertados de ser visto
Dos maridos, dos pais e dos parentes,
Em que, só por milagre, não foi morto.
Assim, assim, também, o teu Critilo
Não cansa de escrever-te, enquanto encontra
Do tolo Fanfarrão, do indigno chefe,
Estranhas bandalhices, que te conte.
Ah! sofre, amigo, que te gaste o tempo,
Pois conter-se não pode, bem que queria,
Que a força da paixão assopra a chama,
A chama ativa do picante gênio.
Já sabes, Doroteu, aonde chega
Do nosso Fanfarrão a bizarria,
Em premiar serviços de uma dama.
Agora, nesta carta, vou mostrar-te
Até aonde chegam as grandezas
Que fez com os marotos, por que tenhas,
Do seu fidalgo gênio, noção clara.
Qual negra tempestade, que carrega
As nuvens de cupins e de formigas,
Que criam, com as chuvas, longas asas,
Assim o nosso chefe traz consigo,
Arribação infame de bandalhos,
Que geram, também, asas, com a muita,
Nociva audácia que lhes dá seu amo.
Na corja dos marotos aparece
Um magriço mulato, a quem o chefe,
Por ocultas razões estima e preza.
Talvez que, noutro tempo, lhe levasse
Os miúdos papéis às suas damas.
Ocupação distinta, que já teve
Um famoso Mercúrio, que comia
Sentado à mesa dos mais altos deuses.
Deseja o nosso chefe que este lucre
Quatrocentas oitavas, pelo menos,
E, para que não saiam de seu bolso,
Descobre esta feliz e nova idéia:
Dispõe dos bens alheios como próprios.
No público teatro de Lupésio
Ordena, Doroteu, se represente
Uma vista comédia, por que fiquem,
Para o velho mulato, os lucros dela.
Ordena, ainda mais, que o seu Robério
Os boletos reparta pelas damas,
Pelos contratadores opulentos
E por quantos casquilhos os quiserem
Pagar, ao menos, por dobrado preço.
Robério assim o faz; supõe, coitado,
Que prometeu pedir alguma missa.
E, junto c’o mulato, vai entrando
Em uma e outra casa, aonde deixa
Ou selado papel, para a platéia,
Ou, com tábua pendente, a velha chave.
Ah! nota, Doroteu, que ação tão feia!
Aquele bruto chefe que não paga,
As pessoas mais nobres, o cortejo
Sequer por um criado, agora manda
Que o seu próprio Robério, o seu bom aio.
Ande de porta em porta, qual mendigo,
Pedindo para um bode a benta esmola!
Então, amigo, a quem? a quem? aos mesmos
Que tem desfeiteado muitas vezes
E às pobres, que é mais, às pobres moças
Que hão-de ganhar, à custa de seu corpo,
Com que possam pagar deste convite
Um tão avantajado, indigno preço.
Maldito sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!
Chegou-se, Doroteu, a noite alegre
Destinada à função, e o vil Robério
Dá nova prova de fervor e zelo:
Vai-se pôr, com o traste do mulato,
Na porta da platéia, e, quando acaba
A primeira jornada, também corre
Os cheios camarotes: fina idéia!
Para ver se os tolinhos, assim, largam,
Na copa do chapéu, que a esmola apanha,
Embrulhos de mais peso ! Ah ! doce amigo,
Quem bandalho nasceu, ainda que suba
Ao posto de maior, morreu bandalho,
Que o tronco, se dá fruto azedo, ou doce,
Procede da semente e qualidade
Da negra terra, em que foi gerado.
Servia-se este chefe de um lacaio,
E, por não lhe pagar salário certo,
Deu neste ardil, também: quando ia às festas
Lhe dava o seu brandão, e as mais pessoas,
Que estavam na tribuna, por obséquio,
Lhe davam as compridas, grossas velas.
Se dava algum despacho, de que vinha
Proveito à parte rica, lho entregava,
Por que fosse ganhar o grande prêmio
Com que os néscios, servidos, o brindavam.
Nas vésperas, amigo, da partida,
Tratou de lhe fazer maior a safra:
Passou atestações a todo mundo
E, sem saber se o mundo lh'as queria,
Mandou ao mesmo servo as entregasse
E os prêmios do trabalho recolhesse!
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!
Havia, Doroteu... mas não gastemos
O tempo em referir mais bandalhices
Da mesma natureza; refiramos
Outras, que sejam de diversa classe.
Não quero, Doroteu, que o justo tédio,
Que infunde a semelhança, te duplique
O tédio, que produz a minha frase.
Fizeram os devotos de uma imagem,
Da festa protetor, ao grande chefe.
Aceita o Fanfarrão do cargo a honra
E medita fazer um grão festejo.
Ordena aos cavalheiros, que vieram
Correr as argolinhas, em obséquio
Do ditoso consórcio dos infantes,
Que esperam, nesta terra, à sua custa,
E que, nos dias da função, repitam
Os feitos jogos, com o mesmo lustre.
Manda que o grande curro, que o Senado
Fez levantar, na praia, permaneça,
E venham os boizinhos, que, por serem
Mais bravos do que os outros, se guardaram,
Mal rapavam o chão e mal corriam,
Atrás do mau capinha, no terreiro.
Eis aqui, eis aqui, amigo, o como
Se fazem coisas grandes, sem despesa.
Manda mais o bom chefe que se aluguem
Os palanques a quatro oitavas d’ouro,
Para que se comprasse um patrimônio,
A sacrossanta imagem, deste lucro.
Que sábias intenções, que fins tão santos!
Celebram-se os festins e não escapa
Um camarote só, que não se alugue;
Mas deste rendimento não se sabe,
Que a compra se meteu, de todo, à bulha.
Não penses, Doroteu, que o nosso chefe
Comeu este dinheiro. Longe, longe
De nós este tão baixo pensamento.
Indo já no caminho, o seu Matúsio
Passou, sobre Marquésio, certa letra.
Para que se pagasse ao Santo Cristo.
Agora considera se este fato
Não mostra que ele zela a consciência.
Agora inquirirás se o tal Marquésio
Pôs na sacada letra o seu "aceito".
Não pôs, não pôs, amigo, porque disse
Que deste passador não tinha efeitos.
Porem o bom Matúsio, mais seu amo,
Levam as consciências descansadas,
Pois não devem supor, pelo costume,
Que a letra não pagasse o mau rendeiro.
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!
Roubou um seu criado a certa escrava
E dentro lha meteu, do seu palácio.
Conheceu o senhor quem fez o furto,
E foi pedir ao chefe que mandasse
Que o terno roubador restituísse
A serva, com os lucros! pois cedia
De toda a mais ação, que a lei lhe dava.
Que entendes, Doroteu, que obrou o chefe?
Que fez um sério exame sobre o caso?
Que, conhecendo ser a queixa justa,
Meteu, em duros ferros, ao criado?
Que não lhe perdoou, enquanto o mesmo
Ofendido queixoso não lhe veio
Suplicar o perdão da culpa grave?
Devias esperar que assim fizesse,
Mas, quando a razão pede certa coisa,
Ele, então, executa o seu contrário.
Não zela, Doroteu, a sã justiça,
Nem zela a honra própria, maculada
Na sua habitação, que o servo muda
Em torpe lupanário. Não, não zela;
Antes, prezado amigo, austero, estranha
Ao mísero queixoso, que se atreva
A supor que os seus servos são capazes
De poderem obrar excessos destes.
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso.
Passados alguns tempos, Ludovino
Encontrou, uma noite, a sua escrava
E à casa conduziu do bom Saônio,
Aonde, em hospedagem, se abrigava.
Aqui lhe perguntou a longa história
Da fugida que fez, e a triste serva,
Com animo sincero, assim lhe fala:
"Ribério me induziu a que fugisse,
Meteu-me no seu quarto, aonde estive,
Fechada, muitos dias. Alugou-me,
Depois, uma casinha; aqui me dava,
Dos sobejos da mesa de seu amo,
Para eu alimentar a pobre vida.
Tive dele dois filhos; o demônio
Enganou-me, senhor, cuidei... “E, nisto,
Queria mais dizer, porem, de pejo,
As lágrimas lhe estalam, e se cortam
As últimas palavras, com suspiros.
Agora dirás tu, amigo honrado:
"Agora, agora sim, agora é tempo,
Insolente Ribério, de nós vermos,
Para exemplo dos mais, o teu castigo.
Os soldados já marcham, já te prendem,
Já vens maniatado, já te metem
Na sórdida enxovia, já te encaixam,
No pescoço, a corrente, e vais marchando
Com rosto baixo, a ver Angola ou Índia.”
Devagar, devagar com essas coisas:
Os servos de palácio são os duques
Do nosso Santiago, e não se prendem
Por essas, nem por outras ninharias.
Atrevidos soldados já se aprontam,
Mas não para prenderem a Ribério,
Sim para conduzirem, entre as armas,
Ao pobre Ludovino e à sua serva,
Que já buscando vão à sua casa,
Que dista desta terra muitas léguas.
É o mesmo Ribério quem
A fazer, Doroteu, a diligência,
Cobrindo a testa da insolente esquadra.
Já viste, Doroteu, insultos destes?
Já viste que pertenda um homem sério
Que, à força, um bom senhor de si demita
A escrava desonesta, porque possa
Ficar na mancebia? Já, já viste
Que se mande prender ao ultrajado
Pelo mesmo ladrão? Ah! caro amigo
Que, destas insolências que te conto,
Apenas pode ver quem mora em Chile!
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!
Há, nesta grande terra, um homem sábio
E o único formado em medicina.
A este bom doutor estimam todos,
Por sua profissão, por seus talentos,
Por seu afável modo e, mais que tudo,
Pelas muitas virtudes que respira.
Curava o nosso sábio a certo enfermo
E, vendo a vária febre e os mais sintomas,
Ordena que ele tome um copo d’água
A que dá de Inglaterra o povo o nome.
Manda-lhe o boticário uma botelha,
Que já servido tinha; o sábio, atento
A que ela poderia ter perdido
A força natural, a não aprova
E passa a receitar outro composto,
Que possa produzir o mesmo efeito.
Chorando, o boticário sobe ao chefe
E diz-lhe que o doutor a rejeitara.
Por ser seu inimigo e, desta sorte,
Tirar-lhe, da botica, o bom conceito.
Manda o chefe chamar aos boticários
E manda que examinem a garrafa;
Concordam os doutores que não tinha.
Ainda, corrupção, talvez por verem
Que ainda conservava algum amargo.
Então, então o chefe, enfurecido,
Ordena ao ajudante que, ali mesmo,
Avise ao professor que ele tem ferros,
Cadeias e galés, com que reprima,
Se neles prosseguir, os seus excessos.
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!
Pensavas, Doroteu, que o nosso chefe
Passasse à insolência, que refiro,
De insultar, por amor de um vil mulato,
Um velho professor tão bem aceito,
Um velho professor, alem de sábio,
Na terra singular, no seu oficio?
Não, meu prezado amigo, não pensavas;
Pois quero, Doroteu, dizer-te a causa:
Esta grave ameaça e grave insulto
Foi feita em tom de paga, porque o bode
Curava, cuidadoso, ao próprio chefe,
De mal oculto, que a modéstia cala.
Maldita seja tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!
Ah! dize, Doroteu, por que motivo
O pai de Fanfarrão o não pôs antes
Na loja de algum hábil sapateiro,
C’os moços aprendizes deste oficio?
Agora dirás tu: "Nasceu fidalgo
E as grandes personagens não se ocupam
Em baixos exercícios." Nada dizes.
Tonante, Doroteu, é pai dos deuses:
Nasceu-lhe o seu Vulcano e nasceu feio.
Mal o bom pai o viu, pregou-lhe um coice
Que o pôs do Olimpo fora, e o pobre moço
Foi abrir uma tenda de ferreiro.