XXXVIII


AS TRES LEBRES


Havia n'outros tempos um rei que tinha uma filha, que dizia que só casaria com o homem que fosse capaz de inventar uma adivinhação que ella não adivinhasse. Correram ao palacio muitos principes e fidalgos, mas todos se foram sem que as suas adivinhações ficassem por adivinhar. Foi-se passando muito tempo e estas noticias corriam por muitas partes, até que chegaram aos ouvidos de certo aldeão muito esperto e elle ao saber isto dispoz-se logo a partir para o palacio, sem saber ainda o que havia de perguntar á princeza. Montou a cavallo, sem mais bagagem do que o seu livro de orações, e sem farnel de qualidade alguma. Durante o caminho teve fome, e sede, mas não havia ali em tal descampado nem comer, nem agua; então o aldeão, olhando, viu morto no chão um coelho, tomou-o, e depois de o esfolar, fez uma fogueira do seu livro de orações, assou o coelho, e comeu-o. A sede, era porém, cada vez maior; elle então fez correr muito o cavallo até que o suor lhe caia em bica; apanhou-o no seu chapeu e bebeu-o, e depois continuou a sua viagem. Chegado ao palacio viu muitos fidalgos, que perguntavam adivinhações, á princeza, e ella tudo adivinhava. Então elle depois de todos terem fallado levantou-se e disse:


«Comi carne sem ser caçada
Em palavras de Deus assada;
Bebi agua que não foi do ceo caida,
Nem tambem na terra nascida.


Adivinhae agora, princeza, se de tanto sois capaz.» Então a princeza, disse que pedia tres dias para adivinhar, pois era esta a que maiores voltas lhe havia fazer dar á cabeça. Ficou o aldeão no palacio á espera que a princeza adivinhasse; mas logo ao primeiro dia se foi ter com elle uma aia da princeza que lhe disse: «Explicai-me o que hoje perguntaste á princeza, e fazer-vos-hei tudo que me pedirdes.» Respondeu o aldeão: «Explicar-vos-hei tudo d'aqui a tres dias, se me deixardes ficar esta noite no vosso quarto.» Disse logo a aia que sim, e fez uma cama no chão para o aldeão dormir n'ella. Deitou-se o aldeão, e a aia julgando que elle já dormia, deitou-se tambem; mas logo que viu que ella estava deitada, tirou-lhe uma saia que ella tinha despida, e saiu do quarto. No dia seguinte foi ter com elle outra aia da princeza, a quem succedeu o mesmo que á primeira. Finalmente, sem saber o que tinha sucedido ás aias, foi a princeza ao terceiro dia ter com o aldeão, e elle disse-lhe tambem o mesmo que tinha dito ás aias; mas em vez de tirar uma saia á princeza tirou-lhe o seu chambre de dormir que era de finas rendas. No quarto dia, logo de manhã, foi o aldeão explicar a adivinhação ás aias e á princeza; e á hora em que a côrte estava toda reunida para ouvirem, a princeza respondeu logo: «A carne sem ser caçada, em palavras de Deus assada, era um coelho que encontraste morto no caminho, e que assaste no teu livro das orações. A agua sem ser da terra nascida, nem do céo caida, era o suor do teu cavallo.» «É verdade disse o aldeão.» Então o rei, levantando-se, ordenou ao aldeão que se fosse para a sua terra pois nada tinha a esperar. Mas elle disse logo. «Já que a princeza é tão intelligente, peço-lhe que advinhe agora esta:


Quando n'este palacio entrei
Tres lebres encontrei,
Todas tres esfolei;
E as pelles d'ellas mostrarei.»


Ia para mostrar as saias das aias, e o chambre da princeza mas esta levantou-se logo e disse: «Basta, basta, serás meu esposo, pois és o homem mais esperto que aqui tem vindo.

(Coimbra.)