Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/As trez cidras do amor
Era uma vez um principe, que andava á caça; tinha muita sêde, e encontrou trez cidras; abriu uma, e logo ali lhe appareceu uma formosa menina, que disse:
— Dá-me agua, senão morro.
O principe não tinha agua, e a menina expirou. O principe foi andando mais para diante, e como a sêde o apertava partiu outra cidra. D’esta vez appareceu-lhe outra menina ainda mais linda do que a primeira, e tambem disse:
— Dá-me agua, senão morro.
Não tinha ali agua, e a menina morreu; o principe foi andando muito triste, e prometteu não abrir a outra cidra senão ao pé de uma fonte. Assim fez; partiu a ultima cidra, e d’esta vez tinha agua e a menina viveu. Tinha-se-lhe quebrado o encanto, e como era muito linda, o principe prometteu casar com ella, e partiu d’ali para o palacio para ir buscar roupas e leval-a para a côrte, como sua desposada. Emquanto o principe se demorou, a menina olhou d’entre os ramos onde estava escondida, e viu vir uma preta para encher uma cantarinha na agua; mas a preta vendo figurada na agua uma cara muito linda, julgou que era a sua propria pessoa, e quebrou a cantarinha dizendo:
— Cara tão linda a acarretar agua! não deve ser.
A menina não pôde conter o riso; a preta olhou, deu com ella, e enraivecida fingiu palavras meigas e chamou a menina para ao pé de si, e começou a catar-lhe na cabeça. Quando a apanhou descuidada, metteu-lhe um alfinete n’um ouvido, e a menina tornou-se logo em pomba. Quando o principe chegou, em vez da menina achou uma preta feia e suja, e perguntou muito admirado:
— Que é da menina que eu aqui deixei?
— Sou eu, disse a preta. O sol crestou-me emquanto o principe me deixou aqui.
O principe deu-lhe os vestidos e levou-a para o palacio, onde todos ficaram pasmados da sua escolha. Elle não queria faltar á sua palavra, mas roia calado a sua vergonha. O hortelão, quando andava a regar as flôres, viu passar pelo jardim uma pomba branca, que lhe perguntou:
«Hortelão da hortelaria,
Como passa o rei
E a sua preta Maria?
Elle, admirado, respondeu:
— Comem e bebem,
E levam boa vida.
«E a pobre pombinha
Por aqui perdida!
O hortelão foi dar parte ao principe, que ficou muito maravilhado, e disse-lhe:
— Arma-lhe um laço de fita.
Ao outro dia passou a pomba pelo jardim e fez a mesma pergunta; o hortelão respondeu-lhe, e a pombinha voôu sempre, dizendo:
— Pombinha real não cáe em laço de fita.
O hortelão foi dar conta de tudo ao principe; disse-lhe elle:
— Pois arma-lhe um laço de prata.
Assim fez, mas a pombinha foi-se embora repetindo:
— Pombinha real não cáe em laço de prata.
Quando o hortelão lhe foi contar o succedido, disse o principe:
— Arma-lhe agora um laço de ouro.
A pombinha deixou-se cair no laço; e quando o principe veiu passear muito triste para o jardim, encontrou-a e começou a affagal-a; ao passar-lhe a mão pela cabeça, achou-lhe cravado n’um ouvido um alfinete. Começou a puchal-o, e assim que lh’o tirou, no mesmo instante lhe appareceu a menina, que elle tinha deixado ao pé da fonte. Perguntou-lhe porque lhe tinha acontecido aquella desgraça, e a menina contou-lhe como a preta Maria se viu na fonte, como quebrou a cantarinha, e lhe catou na cabeça, até que lhe enterrou o alfinete no ouvido. O principe levou-a para o palacio, como sua mulher, e diante de toda a côrte perguntou-lhe o que queria que se fizesse á preta Maria.
— Quero que se faça da sua pelle um tambor, para tocar quando eu fôr á rua, e dos seus ossos uma escada para quando eu fôr ao jardim.
Se ella assim o disse, o rei melhor o fez, e foram muito felizes toda a sua vida.
(Porto.)
Notas
editar46. As trez cidras do amor. — Apparece pela primeira vez citado na tradição portugueza, por Soropita, Prosas e Versos, p. 103. Este escriptor pertence ao fim do seculo XVI. Cita-se nas obras de Nicoláo Tolentino, p. 93. (Ed. J. Torres.) Publicamos uma versão popular nos Estudos da Edade Media em 1869, p. 65, quando iniciámos estas investigações. Ha outra versão nos Contos populares portuguezes, e nos Contos populares do Brazil, colligidos por Sylvio Romero, n.º XIV, vem com o titulo A moura torta, e variantes. Stanisláo Prato, no seu opusculo Quatro Novelline popolare livornesi, p. 11 e seguintes, traz bastantes versões italianas d'este conto: La bella dei sette Cedri, I tre cocomeri, Le tre melangele d'amore, Bianca como la neve e rossa como il sangue, Le tre noci fatate, Il giardino del orso, La dea Venere. Sobre esta novella apresenta em seguida um largo estudo comparativo (p. 46 a 91 in-4°) sobre as versões colligidas por Pittré, Basile, Imbriani, Berti, Comparetti, Corazzini, Gubernatis, Gradi, Gozzi, Laura Gonzenbach, Schneller, Lippi, Busk, Ive, Visentini, Deulin, Afanasieff, Makban, Buemosci, Schott, Grimm, Kennedy, Brueyre, Asbjornsen (Dasent), Köhler, Maspons y Labros, Schmidt, Eredelgi Stier, Hahn, Benfey, Stefanovic, Jawis Schiefner, Zingerle, Cavallius, etc. Todos estes nomes representam collecções de novellas populares italianas, gregas modernas, allemãs, hungaras, russas, inglezas, escocezas, hespanholas, suecas, aváricas, suissas, por onde se vê que este conto é verdadeiramente universal. Stanisláo Prato interpreta este conto como sendo o mytho do Hercules roubando os pômos de ouro do jardim das Hesperides. Gubernatis, na Mythologie des Plantes, t. II, p. 81, tambem apresenta uma interpretação mythica.
Na collecção de Maive Stokes, Indian Fairy Tales, n.º XXI, The Bél-princess, ha uma versão oriental d'este conto. — Na Biblioteca de las Tradiciones populares españolas, t. I, p. 109, vem uma versão, La Negra y la Tórtola, colligida no Chili, na povoação de Santa Joanna; traz os estribilhos:
— Hortelanito del rey,
Que hace elrey con su negra mora?
«A veces canta y a veces llora.
— Hui, hui, hui! triste de mi
Por el campo sola.