Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Da Novellistica Popular

DA NOVELLISTICA POPULAR

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SUA ORIGEM, PERSISTENCIA E TRANSMISSÃO


Os phenomenos que mais directamente nos tocam são os que mais tarde e difficilmente se observam. A sciencia social é a ultima que veiu a constituir-se como o desenvolvimento final da synthese objectiva realisada pelas sciencias cosmologicas e biologicas tornadas positivas; a maior parte dos estudos necessarios para o estabelecimento d’essa sciencia do phenomeno social, têm-se dividido em sciencias concretas, como a Ethnologia, a Philologia, a Mythographia, a Litteratura comparada e tantas outras, que explicando o presente pelas suas relações ininterruptas com o passado, nos revelam estados primitivos da consciencia, e esse periodo emocial d’onde saiu o accordo affectivo das primeiras sociedades humanas. Uma vez achado este criterio, muitos factos que passariam desapercebidos ou sem sentido, projectam uma luz immensa sobre as concepções mentaes, sobre os costumes sociaes do presente, logo que elles se aproximam de factos similhantes que existiram ou ainda subsistem entre povos que nunca se conheceram, entre raças incompativeis entre si, ou entre civilisações de differente gráo e caracter. Descobertas historicas importantes determinaram esta modificação do criterio scientifico; a comparação dos caracteres das raças humanas pelos antropologistas, o confronto dos costumes dos povos selvagens pelos viajantes, a descoberta do sanskrito dando a base para o estabelecimento da filiação mutua das linguas indo-europêas, a leitura dos caracteres cuneiformes e hieroglyphicos da Chaldeia e do Egypto desvendando os livros sagrados d’essas civilisações, as suas ideias moraes e estheticas, a renovação dos estudos classicos pela approximação das litteraturas dos dados archeologicos, e por ultimo o interesse pelos documentos da Edade media da Europa na qual foi elaborada a civilisação moderna, tudo isto convergiu para dar á intelligencia um mais elevado ponto de vista pela relação de factos que isoladamente não apresentavam sentido algum e que eram como lettra morta. Assim pelos usos populares, por costumes locaes, por locuções repetidas automaticamente, por anexins, por parlendas infantis, por habitos domesticos pôde Jacob Grimm reconstruir o systema religioso da antiga raça germanica obliterado sob a cultura romana e pela assimilação catholica. Com a intuição de genio creador, encetou Jacob Grimm a investigação dos Contos populares nos varios estados da Allemanha, no começo d’este seculo, quando esta fórma tradicional, desnaturada pelas divagações litterarias, parecia condemnada a perder-se na transmissão oral inconsciente. Jacob Grimm e seu irmão publicaram entre 1812 e 1814 a collecção do Kinder und Hausmarchen, revelando que essas narrativas espontaneas continham uma riqueza de phantasia que ultrapassava todo o poder da invenção artistica, e mais ainda, que essas situações dramaticas, esses personagens phantasticos eram os ultimos restos das concepções mythicas dos povos áricos, que se foram transformando para se adaptarem á corrente da civilisação moderna. A these era fundamental; se não era possivel dar-lhe logo a evidencia da demonstração, pelo menos o confronto com tradições similares de outros povos levava a critica a considerar esses productos, apparentemente caprichosos, como documentos ethnicos e psychologicos de alta importancia, provenientes de um fundo primitivo commum, ou correspondendo a epocas e cruzamentos de raças anteriores aos tempos historicos. D’esta comprehensão séria nasceu o interesse com que começaram a ser investigados os Contos populares em todos os paizes, alargando-se cada vez mais o campo comparativo e facilitando-se por esse meio a organisação de determinados cyclos de ficções, e a demonstração dos elementos mythicos de que elles são o ultimo vestigio. Jacob Grimm foi seguido immediatamente em 1817 por Frederico Schmidt, que na sua traducção de desoito contos da collecção das novellas italianas de Straparola ajuntou a maior somma de elementos comparativos colhidos nos novellistas da Renascença, nos fabliaux da Edade media, e nos livros orientaes; o proprio Grimm, em 1822, annotando a sua collecção systematisava o processo critico da Novellistica tornando-a um capitulo essencial da Mythographia. Se para Michelet a historia era uma resurreição, e o que penetrava os documentos da antiguidade passava o rio dos mortos, pela nova direcção achada por Jacob Grimm era possivel remontar através das affluentes do curso das tradições poeticas á nascente primitiva de todas as concepções intellectuaes — o Mytho.

A importancia do problema foi comprehendida em toda a Europa, publicando-se successivamente collecções de contos populares dos povos slavos e das raças amarellas, dos povos romanicos e germanicos, e até das populações selvagens da Africa. Os trabalhos de Theodoro Benfey, sobre o Pantchatantra da India, ajudaram enormemente a restabelecer a cadeia tradicional do Oriente para a Europa, bem como os trabalhos de Silvestre de Sacy vieram esclarecer a acção directa da transmissão dos Arabes; os estudos e recensão sobre as Fabulas de Esopo restabeleceram a continuidade das tradições greco-romanas, que Robert accentuou nos fabliaux dos troveiros francezes, e pela investigação das fontes do Decameron de Boccacio se fixou esse fundo de persistencia litteraria das tradições novellescas que se encontra nos Exemplos moraes dos prégadores da Edade media, desde o Gesta Romanorum até aos Novellistas cultos da renascença na Italia.

A critica litteraria, coadjuvada pelos modernos trabalhos de philologia, tem procurado fazer alguma luz n’este complicado problema da Novellistica, em que se distingue por um saber especial o Dr. Reinhold Köhler, da bibliotheca de Weimar; podem-se reduzir a trez as questões d’este intrincado problema:

1.ª Qual a origem d’estes contos, communs a quasi toda a humanidade.

2.ª Qual a fórma da sua transmissão entre as differentes raças e civilisações.

3.ª Qual o gráo de persistencia nas sociedades modernas.

A estas differentes questões tem-se respondido com mais ou menos intuição, mas sem a segurança de um methodo scientifico. É certo que os contos têm relações com mythos primitivos, de que são a ultima transformação; porém, esses mythos não estão sufficientemente esclarecidos, d’onde resulta que a interpretação novellistica cada vez mais se confunde. Ha raças que pela sua situação só desenvolveram os mythos solares, e outras que exerceram a sua imaginação formando mythos sideraes; por aqui se vê quanto perigoso não será para o critico o reduzir a interpretação dos contos a um systema unico. As analogias de contos asiaticos com outros que apparecem entre as populações negras da Africa obrigam á formação de hypotheses gratuitas sobre o modo de transmissão pelo contacto com os viajantes europeus. A investigação dos contos das raças da America veiu complicar mais o problema, e tornar inefficaz a theoria dos mythos solares para a interpretação da Novellistica.

Desde Huet que a transmissão das fabulas e contos se deriva da India; Silvestre de Sacy, Loiseleur des Longchamps, Benfey e Max Müller, no seu ensaio sobre a Migração das Fabulas, adaptam esta corrente tradicional. Porém a descoberta de contos tradicionaes na civilisação do Egypto, e a origem semitica de muitas fabulas e mythos hellenicos; levam a reconhecer outros fócos de irradiação. Por ultimo, a grande persistencia dos contos nas raças amarellas, tendencia aproveitada pela revolução religiosa do Buddhismo, e que ainda hoje se observa nas raças nomadas da Alta Asia, nos Kalmucos, nos Ávaros, no elemento tartaro dos povos slavos, onde esta vivacidade tradicional é enorme, coadjuvam a fixar melhor o problema das origens ligando a investigação do sentido mythico ao exame da situação social representada nos contos. Assim esses trez dados do problema devem ser estudados simultaneamente. Vamos tentar uma coodernação da Novellistica segundo estas indicações.

Assim como nas religiões mais abstractas e nos cultos mais humanos, como o prova Tylor, subsistem concepções e ritos persistentes de estados moraes inferiores, tambem nos Contos populares das nações ainda as mais civilisadas conservam-se elementos da phantasia e do modo de ver das tribus selvagens. É por aqui que se deve começar a genealogia das ficções. O facto de existirem contos communs ás tribus negras da Africa e ás civilisações da Europa, indica-nos o caminho para restabelecer a evolução mental, subindo das concepções concretas até as noções as mais abstractas. Na morphologia dos Contos ha um desdobramento gradual que corresponde ao progresso mental; a Fabula, nascida de uma simples comparação material, eleva-se ao intuito moral no Apologo, fixando-se na fórma litteraria, e dissolvendo-se na corrente oral que apenas conserva a conclusão ou moralidade do Anexim. A fabula, depois da Metaphora, é a fórma a mais rudimentar do conto; nasce d’esse estado mental subjectivo, e d’esse sentimento religioso do animismo em que se dá falla ás cousas inanimadas como as pedras; esta faculdade subsiste ainda nos processos rhetoricos da prosopopêa, e na imprecação espontanea do povo. Nos habitos populares aquelle que descreve reduz tudo á fórma de narrativa dialogada, e o que escuta muitas vezes confunde a expressão concreta da figura de linguagem com uma realidade. É frequente nos contos populares a antropophagia; e os poderes magicos de pedras, de plantas e de animaes representam um estado mental a que corresponde na religião o periodo fetichista. É este o verdadeiro ponto de partida para a investigação da origem dos contos; os mythos sideraes ou solares correspondem já a um elevado estado mental em que predominam as concepções polytheistas, em que as forças da natureza se antropomorphisam, e por isso os Contos não podem ser exclusivamente interpretados por um systema de concepções mais adiantadas do que muitas das situações que encerram. Nos contos ha o conflicto de sêres malévolos, elemento preponderante na credulidade fetichista, e os poderes magicos são um caracteristico de cultos decahidos e de raças escravisadas, que jâ se não encontram nas epopêas polytheistas. A concepção de Augusto Comte sobre a successão dos periodos religiosos da humanidade, começando pelo fetichismo, elevando-se ao polytheismo e depois ao monotheismo, tendo a vantagem de coordenar a evolução do espirito partindo das noções concretas para as ideias abstractas, coadjuva immensamente a achar o nexo entre estas creações ideaes, mas inteiramente subjectivas dos Contos.[1] Grandes philologos e mythographos, desconhecendo esta transição natural dos systemas religiosos, assim como foram levados ao absurdo de affirmar a existencia de um monotheismo inicial da humanidade, tambem collocaram o campo de elaboração dos Contos exclusivamente no período da actividade mythica do polytheismo, e de um modo indistincto sem observarem se esse polytheismo era semitico ou árico, porque fazem entre si profundas differenças. Por isto se vê que o problema das raças é tambem indispensavel para a intelligencia dos Contos; a não consideração d’este dado fez com que derivassem os Contos europeus directamente da India, sem discriminarem o elemento que compete ás raças negroides, Kuchitas e Dravidicas, e ás raças amarellas, quer as da Alta Asia, quer as que precederam os Arias na occupação da Europa. Se ainda hoje existem usos e superstições dos periodos ante-historicos da humanidade e das raças ante-historicas da Europa, porque se não terão conservado alguns contos? As lendas das cidades arrasadas, está hoje demonstrado que derivam da tradição das cidades lacustres. Os anões habilidosos, que possuem riquezas, são o vestigio das populações metalurgicas mongoloides, como os Calybes e os Dactylos; os Peixes salvadores, do maravilhoso popular, levam-nos para esse mundo accadico, como as Serpentes beneficas, que se transformam em donzellas ou em principes, pertencem ao pantheon kuschito-semita. Os themas dos contos estão muito confundidos; importa separar-lhes os seus elementos constitutivos pelos dados da ethnographia e da hierologia, e por este processo é que nos apparecerão como uma concepção mythica, que começa no animismo, até chegarem á edade actual exprimindo situações modernas e historicas , anedocticas, e obras litterarias ou moraes. Na linguagem popular existem locuções demarcando as epocas da credulidade, taes como Quando as pedras fallavam, Quando Deus andava pelo mundo, e ainda um vago periodo historico, como o dos Tartaros para a Europa, e o tempo dos Mouros para a peninsula hispanica.

O fetichismo, como fórma espontanea da religião, representa tambem o estado do espirito humano na sua exclusiva concepção concreta; o homem anima todas as cousas, dá-lhes vontade propria, fal-as causas de si mesmas. Se esta capacidade se reflecte na linguagem pelas metaphoras arrojadas, e no symbolismo material que nos trouxe âs concepções abstractas, como o jus e a justiça, ella exerceu-se tambem pela narrativa novellesca da lucta das forças malévolas, e dos triumphos da argucia contra a ferocidade brutal. A antropophagia nos contos, o ardil do fraco, as cavernas dos ogres, e a cooperação dos objectos inanimados são os vestigios d’este período immensamente poetico do fetichismo, ainda persistente nas crianças e no povo. O fetichismo apresenta uma evolução na sua credulidade, começando pela crença animista e culto dos objectos inanimados (Manituismo), depois o culto dos corpos celestes (Sabeismo), e por fim o culto dos productos naturaes e cousas vivas (Totemistno). Nos contos populares ainda nos apparece o manitu na boneca que se agarra ou que dá riqueza, na cacheira que desanca; o sabeismo, em Tom Puce, Petit Poucet ou João Feijão representando uma estrella da Grande Ursa; o totem, que nos apparece nos nomes de Grillo, de Feijão, dos anões e ladinos tradicionaes, é a fava que se transforma em criança, é a raposa na sua lucta com o lobo, representando os conflictos das tribus fetichistas.

O conto, n’este periodo social e religioso, tem outras causas que provocam a sua invenção; é uma d’ellas o metaphorismo da linguagem. Quando a criança falla, ainda hoje mythifica. Max Müller queria considerar o mytho como uma doença da linguagem; mas o mytho antes de ser expresso pela palavra é uma concepção do espirito, é um estado mental. Hoje mesmo se fabricam espontaneamente contos entre o povo nascidos de analogias etymologicas, ou de equivocos de linguagem; e o que se repete com frequencia em uma edade de critica, era geral em uma edade de syncretismo mental, em que não havia uma justa relação entre a realidade e as noções subjeclivas. A linguagem não podia exprimir relações geraes e abstractas; por assim dizer significava, adstricta ao sentido concreto e esse por meio de comparações. Na China o vocabulo que exprime a Fabula significa comparação (Pi-yu). Foi comparando as coisas entre si, por meio de prosopopêas que se fizeram as Fabulas onde raras vezes entram mais de dois personagens. Os homerides representavam Achilles comparando-o ao leão cercado de caçadores e os troyanos a um bando de grous. As comparações, assim como produziram a Fabula emquanto a differenças, produziram os Enigmas pela aproximação mais ou menos pittoresca das similhanças. Estas duas fórmas tradicionaes encontram-se muitas vezes confundidas pela contiguidade da origem; os contos de Enigmas (Rathsalmärchen) são uma das fórmas mais antigas da Novellistica, pelo estado mental que representam. A propria linguagem subordinada á expressão de um pensamento, era uma figuração dramatica; fallar é derivado de fabular, o modo de communicar concretamente um pensamento, e a palavra é a Parabola, uma comparação trazida para uma situação determinada, e já com intuito moral. O poder das palavras, que corresponde ás religiões fetichistas propiciatorias e esconjuratorias, apparece com frequencia nos contos populares; e essa relação entre o Nomen, o Omen e o Numen, que Max Müller vê nos mythos, é um metaphorismo da linguagem, porque deriva de um estado mental animista. A palavra desdobra-se como epitheto em entidades independentes; o perstigio augural faz com que se transite para a lição moral, como na phrase: perceber a linguagem dos passaros; o homem desabafa em prosopopêas espontaneas, como ainda hoje a criança quando se molesta em qualquer objecto material; Polyphemo desabafa com os seus carneiros, Heitor faz discursos aos seus cavallos, e Rolland falla com a sua espada. Nos contos populares ha o poder maravilhoso das Pedras (Lapidarios), das Plantas (Viridiarios), das Aves ( Aviarios); os animaes como o lobo, a raposa, o leão e o cavallo, têm relações moraes com o homem; estas situações não podiam nascer e conservar-se sem um sentido real, e esse é o de provirem de uma primitiva concepção fetichista; os horoscopos do nascimento, que se personificaram na acção das fadas, são a consequencia da phase sabeista do periodo fetichico. Assentada esta base, é facil de inferir em que povos se originaram as Fabulas, e como ellas se desenvolveram passando como themas consagrados para outras civilisações que lhe deram intuito moral no Apologo. A raça negra é que ainda se não elevou do culto fetichista, e as raças amarellas, como os Accadios e Chinezes, desenvolveram o seu Fetichismo de um modo abstracto synthetisando-o na abobada celeste, An, Zi-An ou Thian. É n’estas duas camadas que devem ser procurados os typos rudimentares dos contos, ainda na fórma de lapidarios e bestiarios. Assim tornam-se de facil explicação os factos extraordinaríos da simultaneidade das fabulas do cyclo da Raposa na Europa da Edade media e nas populações selvagens da Africa, como se vê pela collecção do Dr. Bleck, e da similhança dos contos dos zulus com os europeus, como notou Max Müller, analysando as Nursery tales, traditions and histories of the Zulus, colligidas por Callaway.

Por outro lado já vêmos sem surpreza a tradição chineza Dos membros e do estomago apparecer ali com a fórma de A Cabeça e o rabo da Serpente, [2] quando nunca Tito Livio teve conhecimento d’essa fonte para a transportar para a bocca do Mnenio Aggrippa, nem tão pouco Sam Paulo para a aproveitar nas suas Epistolas. A lenda celtica de Sam Kadoc, que fica extatico á espera que se choque o ovo que um passarinho lhe pôz na mão, apparece na China, no conto de Buddha e os ovos de passaro; [3] a fabula de Lafontaine e os contos facetos do amante que é depilado das cans pela amásia moça e dos cabellos pretos pela velha, apparece na fórma chineza sob o titulo O marido que depena a barba; [4] emfim, até a anedocta corriqueira do sovina que vae fazer a barba a Cacilhas, e que se julgava local, lá se repete no extremo oriente com o titulo O crédor e o devedor. [5] O celebre conto da Matrona de Epheso foi encontrado por Abel Remusat na litteratura chineza. É, portanto, necessario discriminar estas duas camadas antropologicas, o elemento negroide, representado pelos Kuschitas, e o elemento mongoloide, representado pelas tribus da Alta Asia, elemento tartaro da Russia, da Hungria e da Turquia, e a persistencia do elemento iberico em todo o Occidente da Europa no periodo ante-historico; é n’estas duas camadas que se elaboraram todas essas variedades de contos que só uma imaginação fetichista pode criar directamente mythicos, mas com intuito artistico. As tribus nomadas da Alta Asia são ainda hoje ávidas de narrativas; as fabulas, na civilisação hellenica representavam ainda no seu titulo a sua proveniencia, chamavam-se lybicas, ethiopicas ou esopicas, como quer Lassen. Foi entre as raças amarellas que o Buddhismo se propagou com as lendas do Pantchatantra, da mesma fórma que o Christianismo se generalisou nos povos da Europa por meio das lendas kuschito-semitas do Pentateuco, e por meio dos Exemplos dos prégadores tirados dos contos arabes. A India teve os seus mythos, que desenvolveu na fórma popular dos Puranas, como a Asia semitica teve outros que os doutores rabbinicos compilaram; mas não são estes o elemento ou fundo commum onde se encontram os germens dos contos geraes entre os dois continentes.

O Barão de Eckstein caracterisa as civilisações, que precederam as indo-europêas baseadas sobre as noções scientificas, com as seguintes palavras:

«O mundo primitivo póde dividir-se em trez grandes caracteristicas: ou o pensamento é expresso por signaes e estes signaes se explicam por hieroglyphos; ou o pensamento se exprime por tropos e estes tropos se explicam por paraholas; ou emfim o pensamento se exprime por mythos, e os mythos se explicam por legendas.» Estes caracteres quadram perfeitamente com o grande grupo de civilisações comprehendidas sob o nome de turanianas e kuschito-semitas. Os povos, que como o Egypto, a Chaldêa e a China se elevaram da representação ideomorpha e icastica á generalisação hieroglyphica, desenvolveram um portentoso genio artistico, quer na perfeição dos detalhes, como o chinez, quer nos effeitos geraes e na grandeza, como os egypcios e os chaldeo-babylonicos. Os povos que levaram a figuração material até á representação abstracta dos tropos, elevaram-se ás creações mais extraordinarias da poesia, criaram a capacidade mythica e inventaram as epopêas espontaneas, como as raças semiticas, essencialmente evehmeristas na sua historia; a parabola, que deriva da fórma elementar do tropo, é tambem o rudimento de expressão das noções moraes. O mytho é já um systema de concepções geraes para explicarem a complexidade dos phenomenos e é essa tendencia racional explicativa que o dissolve em legendas; a não ser esta caracteristica o mytho reduzia-se á simplicidade de um tropo. É esta a phase intellectual em que nos apparecem as raças áricas antes de se elevarem ás noções scientificas que caracterisam a civilisação greco-romana, e que lhes deram a hegemonia da humanidade.

Tanto nas raças amarellas, como entre a cananêa ou kuschito-semita, o fetichismo foi exclusivo, e d’ahi o caracter concreto e activo da sua civilisação, immobilisada no imperativo das ideias moraes. As fabulas das cousas e dos animaes destinadas pela sua comparacão á inferencia de uma ideia moral, tornaram-se uma fórma litteraria, quer com um caracter philosophico como o Apologo, ou com um sentido religioso como a Parabola. Em sociedades que nunca se elevaram acima da constituição patriarchal, e em que a familia se dissolvia na tribu, as narrações fictícias tornavam-se uma necessidade da communhão moral, e isto mesmo vêmos nos costumes dos arabes, o ramo semita mais retardatario, que tinha os seus rawi ou narradores na epoca em que as tribus não estavam ainda unificadas pelo islamismo, e adoravam os seus fetiches, de que a pedra negra da Caba se tornou o principal. É a um elemento negroide ou kuschita que se deve attribuir esta persistencia de elementos tradicionaes entre os Semitas; no livro dos Reis, se lê da actividade especulativa de Salomão: «E elle tratou de todas as arvores, desde o cedro que cresce sobre o Libano até ao pequeno hysope que cresce nas paredes; e elle tratou dos quadrupedes, das aves, dos reptis e dos peixes.» Renan entende a natureza d’este saber como «moralidades tiradas dos animaes e das plantas, analogas áquellas que nós lemos nos Proverbios (cap. XXX) e ás do Physiologus, que foram tão populares na edade media». [6] A proveniencia d’este movimento intellectual que se não continuou em Israel, é attribuida pelo mesmo semitologo ao elemento idumeu: «A Iduméa sobretudo, parece ter contribuido contribuido em grande parte para este movimento de philosophia parabolica; a sciencia de Théman (tribu idumita) tornou-se proverbial; o heroe e os interlocutores do Livro de Job são arabes ou idumeus.» Remontando ao fundo do problema ethnico, Renan deduz dos trabalhos dos modernos assyriologos, que uma mesma população industrial, commercial e materialista forneceu elementos communs ás civilisações do Egypto, do Tigre e Baixo Euphrates: «A côr obscena das religiões da Assyria e da Phenicia, tão opposta ao pudor natural dos Semitas e dos Arias, o mytho cepheniano de Joppe, o culto kuschita de Sandan ou Sandak e de Adonis, as genealogias fabulosas que fazem descender Agenor e Phenix de Belus, de Lybia, de Egyptus, e os põem em relação com Cepheo e os Ethiopes, a lenda que os liga a Mémnon, explicam cabalmente esta hypothese.» Aproveitando esse elemento commum á India e á Arabia, como negroide, como o reconhece Weber, e que Renan considera com os antigos aditas da primitiva civilisação do Yemen, elle recompõe muitos caracteres ethnicos dos kuschitas: «Lokman, o representante mythico da sabedoria adita, lembra Esopo, cujo nome pareceu a Welcker conter uma origem ethiopica (Aisopos, Aithiops).» Reforçando esta inferencia pelas conjecturas de D’Herbelot, accrescenta: «Tambem na India a litteratura dos Contos e dos Apologos parece provir dos Sudras. Por ventura este modo de ficção, caracterisado pelo papel que n’elle representa o animal, discrimina um genero de litteratura proprio dos Kuschitas.» [7] Em nota acrescenta Renan, que o culto e a preoccupação constante do animal são um dos traços mais salientes das raças kuschitas e africanas. Eckstein identificava os Sudras com us kuschitas, considerando-os representantes da raça negroide da India os Kaucikas; foi entre esta raça que se propagou o Buddhismo por meio dos seus contos e apologos, e foi pela irradiação do Buddhismo que um grande numero de Contos transmigraram para o Occidente e até para o Christianismo.

A descoberta do Conto dos dois Irmãos no papyrus hieratico d'Orbygny, vem explicar de um modo plausivel a passagem dos mythos kuschitas para a fórma litteraria de novella, redigida sobre a lenda elaborada pelo povo. Lenormant estabelece a transição dos mythos extranhos ao Egypto para essa narrativa dos passatempos da XIX dynastia, principalmente do joven principe que veiu a ser Seti II. Diz Lenormant, fallando do scriba egypcio: «Fez como o nosso Perrault; deu uma fórma fixa e litteraria a um conto popular, e este conto, como a maior parte dos outros entre todos os povos, não era senão um mytho degenerado, despido do seu caracter religioso.»[8] Como estrangeiros ao Egypto esses mythos foram tratados sem respeito, com a espontaneidade popular da transmissão legendaria; a epoca em que se determina a entrada de elementos cultuaes estrangeiros no Egypto é na XVIII dynastia, e esses mythos eram phrygios como o de Atys, phenicios e syrios como o de Adonis, ou gregos como o de Zagreus. Conclue Lenormant, do confronto da acção do conto com os dados d’estes mythos similhantes: «São estes trez mythos famosos, e particularmente o de Atys, de que o romance dos Dois Irmãos reproduz todos os dados fundamentaes, e em certos casos até nos detalhes minimos e mais caracteristicos.» A traição de uma mulher desattendida, thema das lendas da vingança da mulher de Putiphar contra José, e de Phedra contra Hyppolito, é a base do conto passado entre os dois irmãos Anpu e Batu, o seduzido pela cunhada. Estes odios feminis apparecem no mytho de Atys, por não ter accedido aos desejos de Cybele; como o joven deus phrygio Batu tambem se emascula, circumstancia a que allude egualmente o mytho de Adonis. Batu confunde a sua vida com a de um cedro, onde guarda o coração, da mesma fórma que Atys se transforma em pinheiro. Lenormant desenvolve este parallelismo, achando o accordo com os complicados episodios do conto, e concluindo: «que o romance dos Dois Irmãos não é outra cousa senão a transformação em contos populares do mytho fundamental nas regiões da Asia anterior, do joven deus solar morrendo, e tornando successivamente á vida, mytho de que temos a versão syro-phenicia na fabula de Adonis, a versão pbrygia na de Atys e finalmente a versão hellenisada em uma epoca ainda agora impossivel de determinar, na lenda de Zagreus.»[9] O dominio dos Pharaós da XVIII e XIX dynastias sobre a Syria, determinou um certo syncretismo religioso como se vê na associação dos cultos de Byblos e do Baixo Egypto e na legenda de Osiris-Adonis;[10] os deuses cananeos Baal, Anat, Qedesch, Astart e Sutekh entraram no pantheon egypcio. N’estes syncretismos religiosos ha a decadencia de muitos elementos mythicos, e por isso uma successiva reelaboração em lendas e contos; a crise religiosa do Buddhismo na India reflectiu-se ainda com este caracter na Asia anterior;[11] o Orphismo na Grecia e o Christianismo na Europa provocaram nas imaginações esta fórma secundaria da ficção, ou o typo do conto ou lenda. O conto dos Dois Irmãos restabelecendo-nos o caminho da sua derivação mythica, tem um paradigma actual entre os Bechuanas, o que nos confirma a necessidade de procurar a fórma de certos mythos, ou o typo da sua degeneração novellesca, nas raças selvagens e no elemento negroide.[12]

O que vêmos com a civilisação kuschita em relação aos mythos semitas, dá-se tambem com a civilisação turaniana no seu contacto com os Arias. Husson considera os Peixes salvadores dos contos populares como provenientes das lendas chaldeo-babylonicas; e Belloguet vê nas figuras dos Ogres e dos Cyclopes, em rivalidade com os Ulysses e Petit Poucet, como um antagonismo nos elementos das raças do Occidente.[13] Dos mythos que se acham na epopêa finlandeza do Kalevala, e que se reproduzem nos contos populares europeus, deduz Gubernatis que primitivamente as raças turanianas e áricas se acharam em contacto, tendo entre si certas conformidades, hoje desconhecidas pelos differentes gráos de civilisação em que se acham.[14] Bergmann, no seu trabalho sobre os Getas, explica cabalmente este problema; tambem pelos Contos populares Esthonianos, publicados por Frederico Kreuzwal, e annotados por Köhler, em 1869, apparecem narrativas que parecem as fórmas completas de muitos contos europeus; ahi apparece a velha feiticeira que tem prezas as donzellas, os jovens principes perdidos na floresta, o segredo da linguagem dos passaros, os cavallos magicos, as transformações maravilhosas, o anão intelligente e a boneca-fada. O vigesimo conto esthoniano é uma variante do Barbe bleu, commum a todos os povos da Europa. Gubernatis interpreta o sentido mythico d’esses contos, o que é mais plausivel quanto mais atrazado está o povo a que pertencem, sendo esse o meio de pelo processo eomparativo vir a determinar a intenção mythica perdida na novellistica dos povos mais civilisados. Nos Awarische Texte, publicados por Schieffner, acha-se tambem um conto popular bastante desenvolvido similhante ao nosso intitulado os Dezeseis quintaes, que se encontra tambem na collecção siciliana de Laura Gonzemback. Outro mysterio da tradição , desde que se desconhecer o contacto primitivo das raças nomadas da Alta Asia com os Arias; a essas raças pertencem o grupo turaniano, e os povos que sob o nome de Lybios e Iberos, e de Eusk e Aquitanios, nos apparecem occupando o Occidente da Europa. Se um certo numero de costumes e superstições tem sobrevivido até hoje na civilisação moderna d’essas edades ante-historicas, porque não subsistirão os contos como ultimos restos de mythologias extinctas? O Tributo das Donzellas é considerado como uma degeneração mythica, como se deduz da comparação com outras lendas que tornam mais evidente essa relação. O contacto das raças nomadas ou mongoloides com os Arias[15] é que nos explica como um certo numero de fabulas e contos chinezes, como o da Matrona de Epheso, apparecem na Europa sem que seja possivel descobrir uma connexão historica entre as duas civilisações. Apresentaremos um facto além de muitos já observados no dominio dos costumes e superstições populares.

Gregorovius, no seu livro sobre a Corsega, cita um canto popular no gosto dos romances peninsulares, que nós encontramos na tradição oral do Minho em fórma de conto em prosa, adaptado aos interesses da vida moderna. Eis o vocero corso:

«Um rapaz das montanhas deixa sua mãe, pae e irmã e vae para a guerra sobre o continente. Ao cabo de muitos annos regressa feito official. Caminha para as suas montanhas; ninguem dos seus o reconhece. Só se dá a conhecer a sua irmã, cuja alegria é indizível. Elle depois diz ao pae e á mãe, que ainda o não tinham conhecido, que preparem para o dia seguinte um esplendido banquete, para o qual dará bastante dinheiro. Á noite pega na sua espingarda e vae para a caça. No quarto deixou o seu sacco, onde tinha bastante ouro. O pae vê estas riquezas e planêa malar o estrangeiro durante a noite. O terrivel crime é commettido. Eis que o dia chega, sôa o meio dia, e como o irmão não apparece, a irmã pergunta novas do estrangeiro: no seu terror, ella revela aos paes quem elle era. Precipitam-se então para o quarto, o pae, a mãe, a irmã, — eil-o prostrado no proprio sangue. Então começa o lamento da irmã.»

Gregorovius accrescenta sobre este dado do vocero corso: «Esta historia é verdadeira …» Eis a versão portugueza:

Na tradição popular do Minho, é um rapaz que regressa do Brazil muito rico; procura a cabaninha de seus paes na serra, e encontra-os muito pobres e já velhos; não se lhes dá a conhecer, e pede pousada para dormir aquella noite, na esperança de se dar a conhecer no dia seguinte. Durante a noite os velhos vão vêr a mala do forasteiro, e para se apoderarem da sua riqueza matam-n’o e enterram-n’o. Passados dias é que souberam da chegada do filho, e confirmada a tremenda apprehensão do seu remorso, a mãe endoudece e o pae vae entregar-se á justiça.

Para nós é este um thema primitivo, proprio de uma sociedade rudimentar que produzia situações brutaes como a que se celebra na Silvaninha, no Rico Franco, no Dom Pedro e outros romances tradicionaes. A sua approximação do vocero corso obriga-nos a remontar a sua origem a uma antiguidade pre-árica; na Corsega ainda existe na fórma de verso, mas adaptada a situação ao periodo das guerras continentaes de Napoleão do principio d’este seculo; em Portugal ha ainda vestigios de fórma poetica no romance da Pastorinha e Linda Pastora, porém a parte repugnante caiu totalmente, ficando apenas a fórma vulgar de um caso restricto á provincia do Minho, que é a que alimenta mais a emigração para o Brazil.

Alguns contos populares actuaes correspondem ainda á linguagem symbolica das tribus scythicas, onde nasceram como modo de expressão; é assim que Plutarcho conta como o monarcha scytha Skilvarus, para mostrar aos seus cincoenta filhos que a união faz a força, manda juntar cincoenta varas, que reunidas não podem ser quebradas.[16] A acção emblematica transformava-se espontaneamente em uma narrativa allegorica, na fórma de comparação (no chinez pi-yu; no goth. gajuko), ou na fórma de parabola enigmatica (no goth. frisahts). Todas estas fórmas persistem na novellistica popular; a crença religiosa dos povos scythas, de que a lua é a mansão dos mortos, persiste ainda em toda a Europa na lenda do homem que foi arrebatado para a lua. A deusa Artin-paza, ou a propria lua, é que recebia em si as almas dos mortos;[17] a universalidade da lenda só se pode explicar pela dissolução de uma crença commum.[18]

O restabelecimento da cadeia tradicional só pode conseguir-se procurando os elementos ethnicos e antropologicos communs aos differentes povos. É assim que a enorme dispersão das raças mongoloides para o occidente e norte da Europa, bem como o seu fetichismo inicial, nos explicarão as condições de unidade de certas fabulas e contos europeus que ainda hoje se vão encontrar no extremo Oriente. Os philologos não se atreviam a recuar para traz das raças áricas, e por isso estes problemas, muitas vezes incompativeis com as concepções polytheistas, eram explicados por communicações historicas forçosamente recentes. São enormes as relações dos contos e crenças do povo portuguez com o folk-lore da Russia; este facto toma uma verdadeira importancia quando se vê que se generalisa ao occidente europeu. Diz Gubernatis: «Tem causado certa impressão a grande parecença dos contos sicilianos com uma dada serie de contos russos; mas todo o pasmo deve cessar, se se pensar simplesmente que a proveniencia de um grande numero de contos russos e sicilianos é commum, isto é, essencialmente byzantina.»[19] A causa da unidade é mais remota; a Russia foi povoada por uma enorme camada de elemento mongolico, e o elemento lybico e iberico do Mediterraneo, vindos da Asia meridional, pertenceu a essa mesma raça. Assim se determina esse fundo ethnico commum, pelo qual se comprehende a identidade das tradições da Russia com as da Sicilia e Portugal, phenomeno tambem notado por Max Müller entre as tradições dos Zulus com as da Europa, bem como das awáricas e kalmucas, e especialmente das tradições chinezas com a Europa occidental.[20] Nos estudos da Novellistica ainda se não tinha determinado este fundo proto-historico da civilisação humana, attribuindo-se estes documentos similares de tradições importantes á phrase vaga — identidade dos processos do espirito humano, quando elles são os fragmentos que ficaram de uma raça que formou as concepções fetichistas, as quaes para outras raças mais especulativas se conservaram como ficções.

Nas civilisações que chegaram ao periodo das religiões polytheistas, é que os mythos tendendo a uma unificação espontanea, recebem quasi que exclusivamente uma representação antropomorphica. Comte notou o modo d’essa unificação, como na arvore que synthetisa a floresta, e no homem que é a manifestação da vontade. As raças Semitica e Arica distinguem-se das raças e civilisações anteriores pela sua elevação ao polytheismo, conservando em si os elementos recebidos do contacto com os kuschitas e mongoloides. Ha entre estas duas raças superiores differenças provenientes não só dos seus cruzamentos ethnicos, como já notámos, mas do seu meio ou habitat; o polytheismo dos semitas é antropopathico, ao passo que o dos árias é antropomorphico. Na investigação dos mythos primitivos que subsistem ainda nos Contos populares, importa distinguir esta dupla proveniencia, sem o que infallivelmente se vae cair em um systema artificial de allegorias. No seu estudo sobre as origens do Petit Poucet, Gaston Paris parte d’esta distincção essencial: «Sabe-se que os povos indo-europeus não possuem e nunca possuiram religião propriamente sideral. Os deuses da nossa raça são a personificação mais ou menos distincta e mais ou menos antiga dos grandes phenomenos naturaes. Nascidos provavelmente em um paiz de montanhas, sob os climas violentos da Alta Asia central, a religião indo-europêa tem em cada um dos seus mythos o vestigio da alegria ou do medo que lançavam na alma ainda quasi que unicamente sensivel dos homens d’outr’ora as convulsões terriveis, mas muitas vezes beneficas, que elles tinham de soffrer sem recursos de defeza.» É por isso que os principaes mythos se baseam sobre os phenomenos da successão do Verão e do Inverno, o grande drama mythico de todos os povos indo-europeus, conservado ainda nos costumes e festas civis de toda a Europa; o Vento e as Nuvens, o Relampago, o Sol repellindo as sombras da Noite, a Aurora sendo seguida pelo Sol, ou no crepusculo vespertino sendo sepultada pela Noite, eram representados no drama religioso do culto, nas tradições sociaes ou naçionaes da Epopêa, e nas conversas e lendas domesticas dos Contos e Enigmas. A vida pastoral era transportada para os phenomenos metereologicos, e as nuvens eram as Vaccas, o sol era o Pastor, o vento o Rakchasa ou ladrão que as escondia na caverna, finalmente o céo era a grande Arvore da vida que cobria o mundo. Foram estes mythos, que persistiram na civilisação dos diversos ramos áricos, o thema commum que se transformou em narrativas sem sentido religioso, mas com o interesse das aventuras dos contos populares.

A maior parte d’esses contos póde ser reduzida ao typo geral em que os personagens se identificam com os mythos do Sol, da Aurora e da Noite, da Primavera e do Inverno. Applicar este processo a contos de origem kuschita ou mongoloide, ou ainda a tradições de proveniencia semitica, é um erro de exegese, que impossibilita o desenvolvimento scientifico da Novellistica como complemento da evolução mythica.

O polytheismo semita tem outro caracter, a que chamamos antropopathico. Gaston Paris reconhecendo a differença que existe entre os dois systemas de religiões, escreve: «As grandes planicies em que se desenvolveram as primeiras civilisações semitas não apresentam os espectaculos grandiosos e deslumbrantes das pastagens montanhosas onde a divindade se revelava nas tempestades; a serenidade das noites, a transparencia do ár, a ausencia de linhas que attrahissem o olhar, tudo contribuia para transportar para o céo os olhos dos pastores que conduziam os seus rebanhos por estes immensos prados. Segundo a tradição da antiguidade, foram os Chaldeus os primeiros astronomos; e antes que tivessem a ideia de observar scientificamente os astros, adoraram o seu explendor. Eu quero sómente constatar, que as religiões indo-europêas não apresentam nada que se pareça com o culto planetario. Jacob Grimm admirava-se de achar esta lacuna entre os Allemães; porém ella é commum aos seus irmãos. Os povos da Europa, pelo menos, não parece terem tido nomes para designar os planetas, etc.»[21] A differença de meio, reflectindo-se na differença dos costumes, repete-se na diversidade das religiões dos Arias e Semitas; portanto os seus mythos não tendo a mesma base de concepções, ao degenerarem na fórma de contos hãode apresentar não só o caracter dos elementos ethnicos primitivos (kuschitas e mongoloides) como a personificação dos phenomenos sideraes e metereologicos. Dissemos que os mythos semitas eram antropopathicos; no Egypto o curso solar era equiparado ao da existencia humana; Rã, o sol, passava da mansão da luz ou da vida, para a das trevas ou da morte, e n’esta successão representava diversas entidades divinas; na sua existencia nocturna era Tum, brilhando no meridiano era , e alimentando a vida, Khéper. Os deuses systematisados pelos sentimentos humanos foram divididos em masculinos ou representando a força activa e em femininos. Osíris, sol do hemispherio inferior, representava os destinos de uma existencia além da morte; e os phenomenos moraes do bem e do mal foram tambem personificados, como Typhon e Suttekh. Para os Chaldeus os astros foram representações de entidades divinas, que systematisaram por meio de hypostases em vastos systemas religiosos, de que os Syro-Phenicios apenas conservaram o lado sensual dos ritos e as suas fórmas concretas. O mytho principal em quasi todos os povos semitas, que desenvolveram o culto das divindades femininas, é o do Sol expirando e resuscitando rejuvenescido, como na paixão de Christo; pertencem a este grupo os mythos de Atys, da Phrygia, o mytho de Adonis dos Syro-Phenicios, e o de Dionysos Zagreus, dos Grecos, conservado nos mysterios Eleusinos ou renovado pelos Orphicos;[22] mesmo no Egypto o mytho osiriano veiu a confundir-se com estes mythos asiaticos, transformando-se n’essa fórma épica com que a descrevera Plutarcho e tal como se acha no Ritual dos Mortos. A influencia dos cultos das divindades femininas é que determinou a decadencia dos mythos dos jovens-deuses solares em contos como o dos Dois Irmãos ou como o de Joseph e da mulher de Putiphar, ou o conto de Sansão, que entre os Assyrio-babylonicos ainda nos apparece como o deus Simson. A passagem dos mythos chaldeo-babylonicos para lendas populares ou historicas entre os Semitas está hoje determinada pela aproximação dos nomes dos Patriarchas do Genesis dos deuses decahidos, como Henok com Anak, Set ou Schet com Schita, Noé com o peixe salvador Nuah.[23] Thamuz, ou o mancebo chorado pelas mulheres nas montanhas da Judeia, fôra, antes de decahir em heroe epico, uma divindade Dumuzi; esta decadencia observa-se em outras divindades, que como Istar adorada pelos Phenicios se tornou um diabo, Astaroth entre os Hebreus.

A extraordinaria tendencia dos semitas para tudo personificarem, lançou-os n’uma invenção mythica permanente de modo que apenas elaboraram em epopêas e contos os mythos da paixão do joven-deus morto, chorado e resuscitado; dos nomes dos seus deuses fizeram patriarchas, e dos patriarchas regiões geographicas, fabricando segundo as necessidades da interpretação lendas etymologicas segundo a inintelligencia da linguagem archaica dos seus livros. Renan, fallando das lendas etymologicas do Genesis, escreve em nota que este phenomeno é commum a muitos outros povos, tendo originado uma grande quantidade de mythos; exemplifica com a lenda de Dido, que toma posse do terreno abrangido pela pelle de um boi, a qual ella cortou em tiras tenuissimas. Esse terreno chama-se byrsa, que em syriaco significa a fortaleza; iuterpretado este nome por uma lingua estranha, byrsa em grego significa o couro; d’aqui a invenção da lenda da acquisíção do terreno de Carthago.[24] Nos contos populares é frequente a intervenção do peixe com o poder protector, dos gigantes poderosos como Sansão, e dos diluvios e serpentes de sete cabeças, como nos mythos babylonicos que se transformaram na civilisação dos semitas. Husson, no seu livro sobre o Encadeamento das Tradições, indicou a necessidade de alargar as investigações além das antigas migrações áricas e das infiltrações indianas de epocas posteriores «procurando-as com certa reserva entre as raças chamiticas, e porventura tambem entre as raças turanianas[25]

A ideia mythica fundamental da comparação e analogia dos phenomenos da natureza com a vida do homem, apparece com intuito theologico nos primeiros seculos do christianismo. Minutius Felix exclama: «Vêde como a natureza inteira para nos consolar, parece occupar-se da ressurreição futura, e produz diante de nós as imagens d’ella. O sol põe-se e levanta-se, os astros fogem e tornam, as flôres morrem e renascem, as arvores envelhecem e revestem-se de folhas novas, as sementes corrompem-se para reviverem. Tambem o corpo no tumulo, como a arvore no inverno, occulta um principio de vida sob uma apparencia enganosa de morte. O corpo tem a sua primavera; é preciso saber esperal-a.» A concepção mythica do homem primitivo vendo os phenomenos physicos através da sua subjectividade, persiste com um novo sentido moral de allegoria theologico-metaphysica. Tertuliano desenvolve estes mythos indo-europeus em considerações abstractas: «Eu lanço os olhos sobre as manifestações do poder divino: o dia morre para dar logar á noite, e sepulta-se por toda a parte nas trevas. O ornamento do universo occulta-se sob os funereos véos: tudo é sombrio, silencioso, consternado; por toda a parte a interrupção dos trabalhos! A natureza enluctou-se para chorar a perda da luz… Mas eis que ella revive para todo o universo, com a sua magnificencia e com a sua pompa nupcial, sempre a mesma, sempre inteira, immolando a morte, isto é, a noite, rasgando a sua mortalha, isto é, as trevas, e sobrevivendo a ella, até que a noite volte outra vez e traga comsigo os lugubres aprestos. Então accendem-se as estrellas, que a claridade da manhã extinguira. Os planetas, um momento exilados pelo dia, são trazidos em triumpho… Sobre a terra, a mesma lei que no céo; depois de terem sido fanadas, as flôres reapparecem com suas côres, os campos cobrem-se uma segunda vez de verdura. O que é, pois, esta perpetua revolução da natureza? Um testemunho da ressurreição dos mortos.»[26]

Podem-se aproximar d’esta passagens analogas dos Vedas; então se notará que a concepção dos phenomenos é a mesma, havendo apenas uma interpretação allegorica sobre a impressão subjectiva. Nos espiritos mais elevados, a imagem poetica incide inconscientemente sobre esta mesma ordem de comparações, tendo já perdido o caracter de realidade mythica; em Metastasio, o fino poeta cesareo do seculo XVIII, lê-se este esboço do mytho primitivo:

Primavera, giuventu dell’anno,

Giuventu, primavera della vita.

Se nos espiritos cultos, através dos dogmas religiosos e das idealisações artisticas se não perdeu o typo mythico, com mais rasão deve elle persistir entre as camadas populares.

Nas locuções vulgares existem elementos dos mythos primitivos, cuja importancia só se nos revela pelo processo comparativo. A Aurora é representada como uma Donzella engulida por um Dragão, ou a Noite, como se observa nos mythos de Andromeda, de Hesione, de Santa Margarida, do qual vem a ser libertadas por um heroe, ou ellas mesmas é que rasgam o ventre do monstro. Tylor, diz que se reconhece no conto do Petit chaperon rouge o mytho do sol crescente e do sol no occaso,[27] isto é, da Aurora matutina e da Aurora vespertina. Na linguagem popular diz-se o romper da Aurora, e de facto o rompimento deriva de uma concepção mythica primitiva; diz Tylor: «Os christãos representavam voluntariamente Hades como um monstro que engulia os homens na morte. Tomemos exemplos pertencentes a diversos periodos: o Evangelho apocrypho de Nicodemus, na narrativa da descida aos Infernos, faz fallar Hades como uma pessoa, queixando-se de dôres no ventre quando o Salvador se prepara para descer e dar a liberdade aos santos retidos prisioneiros desde o começo do mundo. Na Edade media, quando se queria pintar esta libertação, chamava-se-lhe o rasgamento do inferno…»[28] Esta prisão das trevas, ou a noite, é o thema mythico conservado na locução do romper da Aurora, a qual se completa por outro vestigio do mesmo mytho na locução á bocca da Noite. Aqui o sentido preciso é o do começo das trevas, que, como o dragão, ahre a bocca para engulir a donzella; sobre este ponto diz Tylor: «Por toda a parte onde a Noite e Hades se personificam em um mytho, póde esperar-se o entrontrar concepções, taes como aquella que exprime a palavra sanskrita que significa a noite, rajanimukha, isto é, a bocca da noite. Tambem os Scandinavos fallam de Hell, a deusa da morte, que abre a garganta como faz seu irmão Fenrir, o lobo devorante da lua; e uma velha poesia allemã representa-nos o abysmo de Hell, que bocejando se abre do céo á terra.»[29] Temos ainda uma outra locução, o olho do sol, para significar a acção intensa do seu calor ou luz; Tylor acha esta metaphora solar em povos selvagens, Mata-ari (o olho do dia) em Sumatra e Java, e Maso-Andro, com o mesmo sentido em Madagascar; na Nova-Zelandia o mytho torna-se completo, sendo o sol o olho de Mani, e entre os Arias é Chakshuh Mitrasya, o olho de Mitra, ou o olho de Jupiter, como lhe chamavam os antigos romanos, como o refere Macrobio.[30] Se a linguagem vulgar conserva esta impressão indelevel dos mythos primitivos mais caracteristicos dos povos indo-europeus, com mais rasão devem elles persistir nas narrativas dramaticas ou novellescas em que esses mythos se desdobraram.

Os phenomenos sideraes e atmosphericos foram personificados, identificados com a figura e habitos moraes do homem; é este um dos caracteres mais fundarnentaes do polytheismo: Nos Contos populares que pertencerem ás raças que se elevaram ao polytheismo, devem persistir estas concepções mythicas, muitas vezes já não comprehendidas por causa da substituição de um mais adiantado estado mental. Os contos de Psyche, de Crescencia, de Genoveva, da Imperatriz Porcina, de Merhuma, (do Tuti-Namé, I, 7), de Cendrillon, derivam dos mythos da Aurora perseguida ou libertadora, tal como apparece nos hymnos dos Vedas.[31] O Sol seguindo a Aurora, personifica-se no mytho de Eros, no esposo de Melusina, de Helias, do Cavalleiro do Cysne, e no esposo de Eurydice.[32] Já vimos atraz como se personificava a Noite, no lobo que devora, na velha que esconde a donzella, ou a transforma e se torna negra, como no conto das Trez Cidras do Amor. O vento acha-se mythificado nas botas de sete leguas, commum a todos os povos áricos;[33] a nuvem, é a toalha que se estende e dá sempre que comer com abundancia, a qual nos Vedas é tambem representada pela vacca, que ainda apparece nos contos populares.[34] Muitas vezes, os contos derivam de uma mythificação espontanea, como se vê pelas locuções populares, outras vezes são o effeito de uma decadencia de mythos systematisados; assim a sala prohibida do conto do Barbe-Bleu é considerada como uma obliteração do thesouro de Ixion;[35] o roubo dos bois pelo Petit-Poucet aproxima-o do mytho de Hermes; a guarda do boi Cardil ou boi Bragado é o mytho de Mercurio e Argus.[36] Poderiamos ampliar as referencias a systemas mythicos da antiguidade que ainda subsistem nos contos populares, mas basta-nos deduzir da lei da sua formação o limite preciso dos themas novellescos. Gaston Paris é de opinião que os themas tradicionaes se fixam em um determinado numero de typos; é o que se deduz dos dois systemas polytheistas, o antropomorphico e antropopathico. Indicaremos esses typos fundamentaes, aproximando-os das personificações dos Contos:

O SOL é o principe encantado, o heroe que salva, o amante que perde a fórma horrenda, é o doente que morre prematuramente e que renasce, é o cavalleiro que mata o dragão, é o thesouro.

A AURORA é a criança, a donzella, a orphã, a recem-nascida, a filha da feiticeira negra, velha e feia; é a Psyche que tem o marido sobrenatural; é a Melusina, ou esposa sobrenatural que abandona o marido, e a Penelope ou esposa fiel que recupera o seu marido.

A NOITE é a velha fefa e ruim, a ogresse, a madrasta que maltrata a enteada, finalmente o lobo devorador, o sacco em que é furtada a menina, ou a cova em que estão enterrados os principes.

Os DIAS são os filhos desejados que tomam fórmas monstruosas, as victimas de um voto, as crianças abandonadas, ou que tem um nascimento maravilhoso.

Os CREPUSCULOS matutino e vespertino são os dois irmãos gemeos; são os pequenos maltratados; são o irmão que mata o irmão ou o salva.

Além d’estes typos, nos costumes populares de toda a Europa conservam-se as ceremonias dramaticas da entrada do VERÃO e sahida do INVERNO, o rapto da PRIMAVERA, nas lendas do Caçador feroz, na morte do Dragão, na libertação da donzella, como Andromeda, na revivescencia do cavalleiro como Arthur, Barba Roxa ou Dom Sebastião. Nas festas religiosas é que se conserva nas fórmas cultuaes o mytho do nascimento do FOGO ou o menino, o medianeiro ou o salvador. Assim dos dois grupos de phenomenos solares e sideraes se deduzem os typos ou themas mythicos que mais persistem nos Contos populares, sendo essa tambem uma das causas da sua universalidade. Uma boa classificação novellistica é, portanto, uma synthese baseada sobre estes dados concretos. Os contos populares têm sido compilados sem nexo, por causa da sua extraordinaria complexidade, apesar de terem sido já reconhecidos os episodios mais frequentes em todos elles. Esta deficiencia tem obstado á sua apreciação. Von Hahn apresentou urna classificação descriptiva artificial, que só serve para tornar monotonos os contos colligidos segundo esse agrupamento exterior. Essa classificação foi adoptada pelo Folk-Tale Commitee de Londres; depois d’esta, conhece-se a classificação de Baring-Gould , com o mesmo espirito, variando apenas pelo arbitrio. A unica classificação racional dos Contos é a que se funda nos themas tradicionaes derivados dos typos mythicos, corno acima indicamos; para realisar este trabalho é preciso conhecer a successão dos estados mentaes da humanidade, as capacidades das raças, e só assim é que se verá como os mythos derivam já da comparação, como as fabulas do fetichismo, já da analogia, como nas personificações polytheistas, já da plausibilidade, como nas epocas em que existe um certo gráo de abstracção tendente para o monotheismo, e em que o mytho subsiste na fórma da parabola, e em que a lenda se converte em historia. Tylor define o valor d’esta successão mental: «Este desenvolvimento opera-se com tanta uniformidade, que se torna possivel tratar o mytho como uma producção organica da humanidade inteira, na qual as distincções de individuos, de nações e mesmo de raças, são subordinadas ás qualidades universaes da intelligencia humana.» [37] Reduziremos este pensamento de Tylor ao seguinte schema:


CLASSIFICAÇÃO DA NOVELLISTICA POPULAR


I. Concepções fetichistas (Peculiares aos povos selvagens e persistentes nas Civilisações kuschitas e mongoloides):

Lapidarios — Viridiarios
a) Comparação por differença: Fabula. — Bestiarios — Astrologia,
Animismo ou transição mythica.
b) Persistencia d’esta concepção
com intuito moral e fórma litteraria: Apologo.
c) Dissolução popular em Locuções
proverbiaes e referencias allusivas: Anexim.

II. Concepções polytheistas (Das Sociedades rudimentaes, apparecendo desenvolvidas nas Civilisações semiticas e áricas):

Do Sol, da Aurora e da Noite.
a) Mythos antropomorphicos: Contos Do Céo, das Nuvens e das Estrellas.
Comparação por analogia: Dos Dias e dos Crepusculos.
1.º — Domestica (Enigmas).
2.º — Nacional (Epopêa).
3.º — Sacerdotal (Theogonia).
O Sol hibernal e estival,
ou o Joven heroe que
morre e ressuscita.
b) Mythos antropopathicos: Epopêa (Achilles, Sigurd.)
A Primavera, ou a dozella
raptada. (Sila, Helena.)


III. Concepcões monotheistas (Das sociedades superiores em que preponderam as ideias abstractas):

O Principe, A Donzella,
a) Obliteração dos themas mythicos: Fabula. A Velha, O Thesouro,
entre o povo. O Lobo, O Ogre.
b) Renovação pelas fórmas litterarias: Novellas e Lendas.
c) Mythificação racional na comparação
por plausibilidade: Exemplos e Parabolas.

Quando começou o estudo dos contos, por Huet, Sylvestre de Sacy e Loiseleur des Longchamps, consideraram-se geralmente de proveniencia oriental. Benfey e Max Müller fixaram no Pantchatantra este vehiculo de transmissão para o Oriente e Occidente, e os contos foram considerados de origem árica. Chegados a este ponto, era pela unidade dos mythos áricos nos povos indo-europeus, gregos, romanos, celtas, teutonicos e slavos, que se explicava a similaridade dos contos populares entre as varias nações da Europa. Os contos foram considerados como a decadencia de mythos que perderam o sentido religioso e systematicamente especulativo, tornando-se lendas persistentes na phantasia popular. Assim para interpretarem os Contos muitos philologos aproximam-os immediatamente dos mythos áricos, ou agrupam em serie todas as versões conhecidas do mesmo conto para por uma simplificação dos episodios accidentaes determinarem a lenda primitiva que póde mais facilmente relacionar-se com o mytho. São errados estes dois processos; existiram outras civilisações além da árica, que fizeram contos sem dependencia de mythos, e por isso aproximal-os dos mythos vedicos é forçal-os a analogias fortuitas; quando porém o mytho se dissolveu em lenda, foi por effeito de uma revolução moral, a ruina de um culto, e portanto o mesmo mytho dá logar a muitas lendas simultaneas, sem typo unitario. Pretender achar a lenda proveniente do mytho pela comparação de muitos contos do mesmo thema, é um trabalho infructifero que a nada conduz. O conto é uma mythificação da linguagem; nasce da palavra, do epitheto, da synonimia, da homonymia, como Daphne, a aurora e o loureiro, e Byrsa, a fortaleza e a pelle de boi, sobre que se formou a lenda da edificação de Carthago. Depois de ter percorrido toda a sua evolução quer com sentido religioso, historico ou moral, intuitos que influem nos accidentes dramaticos do seu thema e na particularidade ou universalidade da sua transmissão, o Conto ou se torna um molde sobre que se adaptam novos episodios, ou acaba pela simples locução proverbial d’onde partira. Citaremos alguns exemplos portuguezes; ainda hoje se diz untar as mãos como meio de conseguir mais facilmente o que se pretende, mas ninguem se lembra do conto da Edade media d’onde esta locução deriva;[38] o anexim A fé é que nos salva, e não o páo da barca, ainda tem a fórma de conto na Italia;[39] o mesmo com A fé do carvoeiro.[40]

A passagem dos contos para a fórma litteraria foi na India devida á propaganda buddhica, cujas lendas moraes foram colligidas no Pantchatantra; na Grecia os Contos escreveram-se com intuito artistico, foram os loci communes das escolas dos rhetoricos,[41] attingindo rapidamente a perfeição em Apuleio, e em Roma em Petronio. O Catholicismo procurando combater o polytheismo no occidente, serviu-se do processo do buddhismo, deu fórma escripta aos Contos n’esses Exemplos dos prégadores medievaes, e nas lendas agiologicas como a de Barlaam e Josaphat tirada do Lalita vistara.[42] Accidentes historicos provocaram o encontro das fontes tradicionaes populares com as eruditas; taes foram as causas da decadencia do polytheismo entre os povos indo-europeus, que abraçando o Catholicismo nem por isso esqueceram os seus mythos nacionaes, acceitando ao mesmo tempo a lição moral prégada nos Exemplos.

A entrada dos Arabes na Europa, fez com qµe se vulgarisasse a traducção do Pantchatantra, traduzindo-se do arabe para grego por Simeo Seth, para latim por João de Capua, para castelhano com o titulo de Calila e Dimna, e na epoca da Renascença para italiano, francez, inglez.[43] Com a primeira Renascença, em Boccacio, Sachetti, Gower e Chaucer, o Conto recebe a fórma litteraria que os humanistas cultivaram, já com o espirito sensual e sarcastico da epoca, já com o pedantismo moral que lhes fez esquecer a graça e ingenuidade popular; é incalculavel a somma de collecções de Novellas sobretudo nas grandes litteraturas romanicas, especialmente a italiana. Esta actividade não deixou de influir na revivescencia popular, e a necessidade de preencher um certo numero de contos de collecções artificiaes, como o Decameron, o Pentameron e Heptameron, obrigava a recorrer ás narrativas popnlares para supprirem na falta de invenção.[44] Ainda sob a fórma quasi que exclusivamente litteraria da Novella, é aonde os costumes antigos se acham mais pittorescamente esboçados. Os escriptores foram-se approximando conscientemente da tradição do povo, como Pérrault, mas d’ahi até possuirem essa mão casta para colher as flores da tradição, como o fez Grimm no começo d’este seculo, distava um espaço que só pôde ser transposto pela sciencia, com os seus variados recursos da philologia comparada, da mythographia, da ethnologia, que nos revelaram o criterio que torna intelligivel este antiquissimo documento humano.

Referências

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  1. No Curso de Philosophia positiva, t. v, p. 25, Augusto Comte caracterisa o Fetichismo: «pelo impulso livre e directo da nossa tendencia primitiva a conceber todos os corpos exteriores quaesquer, naturaes ou artificiaes, como animados de uma vida essencialmente analoga á nossa, com as simples differenças mutuas de intensidade.» E mais adiante: «os primeiros ensaios de todas as bellas-artes sem exceptuarmos a poesia, remontam incontestavelmente até á edade do fetichismo.» (Ib., p. 51.)
  2. Avadanas, t. I, p. 152. Trad. de Stanisláo Julian.
  3. Ibidem, t. II, p. 41.
  4. Ibidem, t. II, p. 138.
  5. Ibidem, t. I, p. 185.
  6. Histoire générale des Langues semitiques, pag. 129.
  7. Op. cit., pag. 321.
  8. Prémières Civilisations, t. I, p. 377.
  9. Ibidem, p. 391.
  10. Ibidem, p. 395.
  11. Renan, Hist. générale des langues sémitiques, p. 281.
  12. Husson, La Chaine traditionalle, p. 99.
  13. Ethnologie gauloise, t. III, p. 47.
  14. Myth. zoologique, t. I, p. 164 a 184.
  15. Eschylo cita uma fabula lybica, dizendo: «Uma fabula lybica conta que um dia a aguia ferida contemplou as pennas da flecha que a ferira, e disse: — São as nossas proprias azas que prestam o instrumento da nossa perda. (Plutarcho, De Musica, XVII. Ap. Guizot, Menandro, p. 15). Menandro, para justificar a precocidade do seu talento, conta uma fabula da Porca e dos bacorinhos que nasciam sabendo praticar um certo numero de actos. (G. Guizot, Menandre, p. 7.)
  16. Bergmann, Les Getes, p. 146.
  17. Ibidem. p. 216.
  18. Vide sobre esta lenda o estudo de Stanislao Prato L’Uomo nella luna, onde vem bastantes dados comparativos.
  19. Mythologi des Plantes, t. II, pag. 36.
  20. Além da Fabula dos Membros e do Estomago, e da Matrona de Epheso, communs á China e á Europa, temos, entre outras já citadas, a do Joven Brahmane que suja o dedo (Avad., pag. 223), que se repete em Portugal, na Allemanha e na Escossia (Contos populares portuguezes, pag. VIII); a disputa dos dois demonios (Avadanas, II, pag. 8) analogo ao conto da cacheira, botas de sete leguas e toalha-meza. Dá-se egual similaridade com o romance da Donzella que vae á guerra.
  21. Petit Poucet, p. 3 e 5.
  22. Lenormant, Prém. Civilisations, t. I, p. 378.
  23. Na minha Hist. Universal, t. II, p.55.
  24. Hist. gen. des Langues semitiques, p. 125.
  25. La Chaine traditionelle, p. 102.
  26. De ressurrect. carnis, cap. XII.
  27. As Civilisações primitivas, t. I, p. 391.
  28. Ibidem, p. 389.
  29. Idem, ibidem, p. 397.
  30. Ibidem, p. 401.
  31. Gubernatis, Myth. zoologique, t. I, p. 131.
  32. Brueyre, Contes populaires de la Grande Bretagne, p. 184.
  33. Brueyre, ibidem, p. 28.
  34. Ibidem, p. 139.
  35. Ibidem, p. 125.
  36. Violier des histoires romaines, p. 205.
  37. La Civilisation primitive, t. I, p. 481.
  38. O Fabliau intitula-se De la vieille que graissa la main du Chevalier (Rec. de Fabliaux, p. 142). Acha-se tambem no Democritus ridens, p. 173; nos Enfants sans Soucis, p. 258; nas Facecie, Motti et Burle da Ludov, Domenichi, p. 284; e no Moyen de Parvenir, de B. de Verville.
  39. Publicado por Bernoni, Veneza, 1875, ap. Gubernatis, Mythologie des Plantes, t. 1, p. 17. Este anexim portuguez é o resto de um conto, hoje totalmente esquecido em Portugal. Um conto popular veneziano narra como um individuo atacado de febre recebeu uma receita, que só ficaria curado se tomasse como remedio um pouco do páo da Cruz de Christo. O doente deu muito dinheiro ao da receita para lhe ir procurar a cruz, mas o astuto mesinheiro foi gastar o dinheiro onde quiz e trouxe um cavaco de uma barca velha, que fez ferver em uma panella, dando depois ao doente a beber um xarope. O doente ficou livre das febres, e d’ahi veiu o proverbio veneziano:

    Siropo de barcazza

    La freve descazza.

  40. Este proverbio pertence ao seculo XV; nasceu de uma anedocta popular. Conta Estanisláo Osio que o grande polemista theologo Alonso Tostado perguntára por desenfado a um carvoeiro: — Em que crês? Respondeu-lhe o pobre homem: «No Crédo.» — E em que crês mais? «No que crê a santa madre Egreja.» — E em que crê a Egreja? «Crê no que eu creio.» O carvoeiro nunca foi tirado d’este circulo vicioso. Por isso no fim da sua vida, quando perguntavam a Tostado em que cria, respondia sempre: Como o carvoeiro, como o carvoeiro. E assim ficára a phrase em proverbio entre os theologos desde o seculo XV. No nosso livro Adagiario nacional (inedito) estudamos mais detidamente os proverbios e locuções populares derivados de Contos e mesmo de Fabulas classicas. Citaremos aqui: Parirão os montes, nascerá um ratinho (Jorge Ferreira, Eufrosina, p. 27); Perolas orientaes aos porcos não as lanceis (Sá de Miranda, Obr., p. 97); Gralhas com pennas de pavão; Estão verdes (allusiva á Fabula da Raposa e das uvas); Trocar o certo pelo duvidoso {allusiva ao cão e a pósta de carne); Contar com o ovo ainda na gallinha; Mais vale magro no mato, que gordo no prato; o Conto das Trez Cidras do Amor chegou á fórma aphoristica, como vêmos pelo refrem colligido por Santillana: «Fadas malas me ficieron negra, que yo blanca era.» Muitas facecias populares tambem se generalisaram na fórma proverbial, como: Comei mangas; Gracias a mis manos, que voluntat de Dios visto avias; Quem não te conhecer que te compre, verá o burro (ou a prenda) que leva; a Manta do Diabo e Pintar a manta, etc.
  41. Ott. Müller, Hist. de la Litteratura grècque, II, 522.
  42. A Reforma, na Allemanha, tambem produziu o desenvolvimento escripto das Fabulas, como se vê pela oollecção de Burkhard Waldis, franciscano que esteve em Portugal por 1540; essa collecção, sub o titulu de Esopus, foi publicada em 1862 por Heinrich Kurz. Durante o seculo XVI (1548-1584) tivera seis edições.
  43. Max Müller, formou o schema d’esta migração das Fabulas da India para a Europa.
  44. No segundo volume d’esta collecção tratamos da Litteratura dos Contos populares.