Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O achado da bolsa
Havia um mercador muito rico, e assim como cada dia se lhe iam acrecentando suas riquezas, assim n'elle se lhe ia multiplicando tanta avareza, que em outra cousa não trazia o sentido senão em ajuntar dinheiro. Este estando um dia vendendo suas mercadorias, tomou quatrocentos cruzados em ouro, que havia vendido, e deitou-os em uma bolsa, e despois de recolher seu fato se foi para sua casa enthesourar. Indo pelo caminho fazendo suas contas com a imaginação, lhe acertou a cahir a bolsa, e até que chegou a casa a não achou menos. Esteve para perder o juizo juntamente com a bolsa. Com grande dôr e paixão se foi ao Duque, que era senhor d'aquella cidade, e lhe pediu que mandasse sua excellencia em seu nome apregoar que quem achasse uma bolsa com quatrocentos cruzados em ouro, que os trouxesse diante d'elle, que lhe daria quarenta cruzados de achado. Foi dado o pregão pela cidade, e sendo ouvido de todos, chegou a ouvidos de quem tinha achado a bolsa, que era uma mulher viuva, muito pobre e virtuosa. E ouvindo dizer, que davam quarenta cruzados de achado foy mui leda, entendendo que ficar com a bolsa seria infernar sua alma. Assim com esta determinação se foi diante do Duque e lhe poz em sua mão a bolsa que havia achado assim e da maneira que o mercador a havia perdido. Vendo o Duque a pobreza d'esta mulher, e que era digna de ser grandemente favorecida, logo mandou chamar o mercador e lhe disse como a bolsa havia já apparecido, que não faltava mais que cumprir sua promessa áquella mulher honrada que a havia achado. Folgou em extremo o avarento mercador, porém achegou-lhe á alma o vêr que havia de dar os quarenta cruzados que tinha promettido de achado, e assim imaginou logo n'aquelle instante um ardil para os não dar, e foi que tomou a bolsa e vasou o dinheiro em uma meza que ali estava, e contou-o, e posto que o achasse certo, comtudo isso revirando para a mulher que o havia achado, lhe disse:
— Molher de bem, aqui n'esta bolsa faltam trinta e quatro escudos venezianos, que estavam de mais dos quatrocentos cruzados em ouro que aqui estão.
A boa velha affrontada e corrida, lhe disse:
— De maneira, senhor, que crêdes de mim que vos havia de furtar o vosso dinheiro! Quem me obrigava, tendo eu em meu poder essa bolsa, a trazel-a aqui, senão não querer eu o alheio?
Não deixava o mercador de gritar e dar vozes dizendo que lhe fosse buscar os trinta e quatro escudos venezianos que faltavam, se queria que lhe désse o achado que tinha promettido. O Duque, conhecendo a malicia do mercador e tudo aquillo que fazia e dizia era a fim de se escusar de dar o que promettera, entendendo que quanta era a bondade da virtuosa mulher tanta era a maldade do avarento mercador, imaginou que a maior pena que podia dar a um homem tão ruim como aquelle era fazer que com seu engano se offendesse a si mesmo, e a esta causa, virando-se para elle, lhe disse:
— Vinde cá; se isto é assi como dizeis, porque me não declarastes que a bolsa levava mais esses escudos de ouro? Ora eu tenho entendido que vós sois tal que quereis fazer o alheio vosso, e que esta bolsa que essa mulher honrada achou não é vossa, pois n'ella faltam esses ducados venezianos que dizeis; antes essa bolsa que se achou sem duvida nenhuma é uma que esse proprio dia perdeu um meu criado com esta mesma somma de dinheiro que essa tem, e pois sendo assim como é, a mim e não a vós pertence.
E dizendo isto, virou-se para onde estava a velha, e lhe disse:
— Boa mulher, pois que achastes esta bolsa com estes cruzados de ouro, eu vos faço graça d'ella com o dinheiro que tem.
Não se atreveu o inconsiderado avarento a replicar ao que o Duque dizia; antes arrependido de não haver cumprido a palavra que promettera se foi para sua casa chorar seu desastre.
(Trancoso, Ibid., Parte III, conto VII.)
Notas
editar169. O achado da bolsa. — Acha-se tambem no Patrañuelo, n.º VI, de Timoneda (Ed. Ribadaneyra); no fabliau Du Marchand qui perdit sa bourse (Recueil de Fabliaux, p. 101, da Bibliotheque choisie); nas Novellas de Geraldo Cynthio, X, e no Novellino italiano. O conto de Trancoso, n.º XV, anda como episodio no conto do Justo juizo largamente estudado por Benfey e Köhler, sobre as versões russas, thibetanas, indianas e allemães. Nos Contos nacionaes, n.º III, Porto, 1883, vem uma versão popular portugueza, que nos leva a crêr que Trancoso poucas vezes recorreu a fontes litterarias.