Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O caso do tio Jorge Coutinho
Era uma vez uma mulher, que era casada e tinha um amigo, e quando o marido ia para o trabalho mandava chamar o amigo. Passou um pequeno, e ella disse-lhe:
«Oh rapaz, que és mui malino,
Queres-me ir a um recadinho?
— Sim senhora, vou depressa;
Mas guarde-me essa panella.
«Vae a casa do tio Jorge,
Que a tua tia Guiomar
Que te manda lá dizer
Que me venha cá fallar;
Que o marido não 'stá em casa,
Pois elle foi trabalhar;
Que te dê lá o convite,
Que eu não tenho que te dar.
O rapaz foi, e disse:
— Oh meu tio Jorge Coutinho,
Diz minha tia Guiomar
Que lhe vá já lá fallar,
Que o marido não 'stá em casa,
Pois elle fui trabalhar;
Que me dê cá o convite
Que ella não tem que me dar.
— «Rapaz, tu vens-me enganar,
Que ella havia de te pagar!
— Se eu engano a meu tio
Deus do céo permittirá
Que o marido cedo venha
E ache meu tio lá.
O homem foi ter com ella; quando a mulher depois foi vigiar para elle sahir, viu o marido pela rua abaixo:
«Aqui d'el-rei, quem me acode
Que eu morro sem confissão,
Que aqui vem o meu marido,
Mas vem c'os pés pelo chão.
Se a comadre me encobre,
Ou por artes ou por manha,
Eu heide-lhe dar em janeiro
Cinco quartas de baganha.
— Minha comadre bem sabe
Que eu que sou segredeira,
O que me cahiu no papo
Cahiu-me na coalheira.
— Deus venha com meu compadre
Vem em boa occasião,
Estamos fazendo uma apósta
Para ganhar um tostão.
— «Quem m'o dera pr'a tabaco,
E Deus sabe a precisão.
— É meu compadre metter
A cabeça n'este talhão.
E depois elle metteu a cabeça no talhão, e o amigo da mulher saiu para a rua. Agora vem o rapaz:
— Oh minha tia Guiomar,
Dê-me cá a minha panella
Mais o convite com ella.
Diz o marido:
— «Não me dirás tu, mulher,
Aquelle rapaz que quer?
— Por ir a uma braza de lume
Quer convite, e faz queixume.
Diz-lhe agora o rapaz:
— Bota lá pozes nos olhos
A esse pobre innocente,
Quem quizer alcoviteiros
Hade-lhe pagar adiente.
Agora a mulher disse ao marido:
«Toma lá este barretinho
Chega á porta, põe e tira
E dize esta cantiga:
É gosto meu,
E de minha mulher;
Hade entrar e sahir
Quantas vezes quizer.
Agora responderam os visinhos:
Quem o é, e consente
É bem que lh'o chamem sempre;
Quem não consente e não sabe
Deus tenha d'elle piedade.
(Ilha de S. Miguel — Ponta Delgada.)
Notas
editar108. O caso do tio Jorge. — Recebemos esta facecia colligida na Ilha de S. Miguel pelo nosso eminente zoologista Francisco de Arruda Furtado. Conheciamol-a em prosa. Existe um pequeno fabliau sobre esta aventura, na litteratura franceza da Edade media.