Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O rei de Napoles



43. O REI DE NAPOLES

Um rei tinha um filho, e como era o unico, queria que elle casasse; mas o principe respondia-lhe sempre, que não casaria senão com uma filha do rei de Napoles se elle tivesse alguma.

O principe tratou logo de indagar bem se o rei de Napoles tinha alguma filha; mas não achava pessoa que lhe désse a certeza. Depois de muitas indagações partiu para Napoles, e armou-se a deitar um decreto, dizendo que dava esmolas a todos os velhos que quizessem lá ir. Era para vêr se algum lhe dava noticias se o rei tinha alguma filha. Todos com quem elle fallava lhe diziam que tinham sido nados e criados e que tal cousa nunca tinham ouvido. Indo um dia á esmola a casa do principe uma velha, perguntou-lhe se ella sabia do rei ter alguma filha?

Respondeu a velha:

— Oh senhor, eu aqui nasci, e d’aqui sou, mas nunca ouvi d’elle ter nenhuma filha. Agora, passando eu o outro dia por uma esquina do palacio, vi de dentro de uma fresta uma cara tão linda, que me pareceu ser de princeza. Mas não posso dar mais certeza.

O principe prometteu á velha de lhe pagar bem, se ella descobrisse se era a princeza. Um dia indo a velha pela esquina, viu á fresta a tal cara linda e chamou-a para lhe vir fallar. Ella veiu; perguntou-lhe a velha se queria comprar joias, que sabia quem as tinha bem boas.

A princeza disse que sim, e combinou a hora em que iriam ter á fresta. A velha foi muito contente dizer tudo ao principe, que tinha visto a princeza, que tinha fallado com ella, e combinado a hora d’elle ir com as joias. O principe vestiu-se em trajo de adello, e chegou á esquina a apregoar joias.

N’este tempo ouve uma voz, que vinha da fresta, chamar:

— Oh homem das joias!

O principe voltou para traz mui contente, e a princeza disse-lhe que entrasse por aquella escadinha. Assim fez; mostrou-lhe as joias, ella estava satisfeita, e disse depois de escolher:

— Vamos agora ao preço.

— Se a senhora está contente com essas, em casa tenho outras ainda melhores, e trago-as cá ámanhã.

Quando chegou a casa a velha aconselhou-o a que vestisse por baixo os seus fatos de principe, e por cima com o trajo de vendilhão das joias, para quando chegasse ás escadinhas despir-se e fallar á princeza como quem era. Assim fez; a princeza quando o viu feito principe assustou-se, mas elle expôz-lhe a sua pratica e a diligencia que tinha feito para chegar áquelle lugar, e que o seu sentido era de casar com ella.

A princeza acceitou o pedido, e assentou a hora da noite muito em segredo em que elle a iria buscar, porque o rei seu pae não queria que ella casasse. O principe pelo muito grande desejo que tinha de a ir buscar, foi logo de serão para o logar da escadinha; mas cançado de esperar, encostou o cotovello sobre a sella do cavallo e pegou a dormir.

N’este tempo passou um homem de meia tigella pelo pé do principe, e quiz vêr se o conhecia; n’isto ouviu uma voz que dizia:

— Vamos, vamos, que já está o escaler n’agua á nossa espera.

O tal homem viu descer uma donzella muito linda, e pegou n’ella com toda a riqueza que trazia; metteram-se no escaler e partiram.

O pobre do principe ficou ali até amanhecer. Quando acordou julgou que a princeza o tinha enganado, e foi para outra terra, e quando lá chegou começou outra vez a dar esmolas aos pobres, para descobrir por algum se o rei de Napoles tinha alguma filha.

A princeza, quando amanheceu, que se viu com aquelle homem, disse comsigo:

— A primeira vista não é vista; mas isto não é o principe meu senhor.

O ladrão do homem como a via desgostosa perguntou-lhe:

— Sabe a menina com quem vae?

— Com o principe meu senhor.

— Pois saiba que vae com um ladrão.

A princeza começou a chorar, e foram andando, andando e chegaram lá a uma terra chamada das Junqueiras.

Elle varou a lancha, deixou ficar ali a princeza e foi-se embora; havia ali só uma mulher viuva com a sua filha.

A princeza ficou a chorar muito n’aquelle escampado, por se vêr sósinha, e tudo isto era de noite. Disse a filha á mãe:

— Estou ouvindo chorar, e parece-me ser mulher.

— Não, filha; isso podem ser os ladrões, para nos enganarem e virem roubar-nos.

Tornou a dizer a filha :

Será o que Deus quizer;

Mas aquelle chorar é de mulher.


Foram ambas, e deram com a princeza, que ellas não conheciam, e tomaram-na para a sua companhia.

O principe continuava a dar esmolas aos pobres, e perguntava a todos se o rei de Napoles tinha alguma filha. Todos diziam que não, que nunca o tinham ouvido.

Afinal foi lá um velho e fez-lhe esmola, e repetiu a pergunta do costume; o velho respondeu:

— Se o senhor soubesse o que eu passei com ella! sempre se havia de rir um bocado.

O principe pucha uma cadeira e senta o velho ao pé de si. O velho contou:

— Eu vinha um dia do jogo das tábolas, e passei pelo palacio do rei; estava lá n’uma esquina um cavalleiro dormindo, por signal com um cotovello na sella do cavallo; fui ao pé d’elle para vêr se o conhecia, e a este tempo ouvi dizer: «Vamos, vamos, que já está o escaler na agua á nossa espera.» E foi contando timtim por timtim o caso do roubo da princeza até a ir deitar na terra das Junqueiras.

Assim que chegou a este ponto, o principe não se teve em si, pucha de um punhal e crava-o na cabeça do velho e matou-o. Os outros velhos que estavam ali, gritaram logo:

— Aqui d’el-rei, que mataram o nosso irmão.

Acudiu logo a justiça para levarem o principe para o Limoeiro; chegou o dia em que ia a enforcar, e elle pediu mais uma hora de vida. Chamou um dos homens que ali estava, que fosse ao palacio pedir ao rei um livro de pastas vermelhas, que estava á cabeceira do principe. O rei assim que ouviu isto deu-lhe um baque o coração, e conheceu que só o principe é que podia fazer aquelle pedido. E como já ha muitos annos andava ausente do reino, foi vêr se seria elle; metteu-se na carruagem e foi ter com elle, e trouxe logo para o palacio o filho, que lhe contou todos os seus trabalhos:

— Agora, meu pae, dê-me licença para ir á terra das Junqueiras buscar a princeza.

O pae mandou apromptar uma das melhores náos, e o principe assim que chegou á terra das Junqueiras viu uma casinha, e bateu, e quem lhe veiu fallar foi a dona. As perguntas do principe, disse que morava ali com duas filhas. O principe disse se ella dava licença, que as queria vêr. E ella, que não, que não tinham roupinha capaz de apparecerem a sua alteza. Tanto teimou que ellas appareceram, e o principe logo a conheceu, e disse que ia ali por causa d’ella, para a levar para o palacio. A princeza disse que estava bem, e que para enganos só bastava uma vez. Elle disse que levaria tambem para o palacio as suas companheiras, que seriam tratadas como pessoas reaes. Foram-se embora e casaram, e ficaram vivendo todos como Deus com os anjos.

(Ilha de S. Miguel — Açores.)


Notas editar

43. O rei de Napoles. — Nas Nuits facetiennes, de Straparola (ed. elz.), IX, fab. 1.ª, vem este conto com a mesma situação das joias e da donzella escondida pelo pae.